O que havia antes do Big Bang era uma grande fábrica de pirotecnia
O humor pode ajudar a lidar com as dificuldades da investigação científica. Talvez seja por isso que alguns cientistas escrevem artigos cómicos, ao estilo das publicações científicas. Ou então, é sem querer. Uma boa gargalhada não dá um Nobel, mas pode valer um Ig Nobel.
“Há pelo menos tantas pessoas na ciência com um sentido de humor bem desenvolvido como em qualquer outra disciplina.” Quem o escreveu foi o biólogo Ralph Arnold Lewin, que ficou conhecido por ser “o pai da genética das algas verdes”, o que pode ter alguma piada, se o imaginarmos a passear todo o ADN de uma alga verde num carrinho de bebé. Talvez por estar farto de tentar mudar as fraldas a algas, em 1983, já depois dos 60 anos, publicou um artigo com o título Humor na literatura científica, numa revista científica muito séria, chamada BioScience, que ainda hoje publica artigos muito sérios.
Lewin conta que a maior parte dos artigos humorísticos que encontrou na literatura científica se enquadram, mais ou menos, no campo da biologia. E propõe uma explicação para que haja tantos biólogos divertidos: “Talvez seja porque a natureza tenha produzido tantas criaturas engraçadas — o rinoceronte, o flamingo, o louva-a-deus (…), já para não falar de alguns protozoários absolutamente ridículos.”
As maleitas dos ursos de peluche
Artigos cómicos nas revistas científicas não são uma coisa assim tão comum como as piadas publicadas no Diário da República. Mas Lewin encontrou várias descrições humorísticas de espécies imaginárias, tal como uma monografia de 34 páginas acerca da ave Eoornis pterovelox gobiensis, publicada em 1926, por um autor que usou o pseudónimo Augustus Fotheringham. A ecologia, a fisiologia, a anatomia e a evolução da ave são todas descritas e ilustradas com detalhes meticulosos, embora falsos. A publicação surgiu depois de uma conferência na Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, onde um suposto cientista com uma barba falsa a apresentou pela primeira vez.
Um outro exemplo aconteceu em 1962, quando foi publicado um livro inteiro sobre uma suposta nova ordem de mamíferos, os Rhinogradentia, animais com estranhas particularidades nasais, alguns com o nariz articulado (imagine que consegue dobrar e mover o seu nariz como se fosse um braço: o jeito que não daria, por exemplo, quando os óculos estão a escorregar; ou para travar rapidamente uma inopinada fuga de muco nasal).
O autor, que usou o nome fictício Harald Stimpke, contou que encontrou estes estranhos animais no arquipélago das Hi-lay. Mas não se apresse para o Google Maps. De acordo com Stimpke, todo o arquipélago foi inundado por uma onda gigante, tendo-se afundado pouco depois de ter completado a sua magistral descrição dos Rhinogradentia. Estes falsos animais acabaram por ser incluídos num guia de 1979 sobre mamíferos, não sendo claro se o autor desse manual para alunos universitários percebeu a piada.
Mas o absurdo pode atingir um patamar ainda maior. Foi o que aconteceu no artigo publicado na edição de 1 de Abril de 1972, na revista científica Veterinary Record, acerca da veterinária dos animais de peluche, pomposamente descritos como a nova espécie Brunus edwardii. Nele pode ler-se que “63,8% das famílias têm um ou mais desses animais” e que “é forçoso que se conheça mais sobre as suas doenças”. A necessidade de estudar os sintomas médicos em ursos de peluche foi enfatizada pelos autores.
Às vezes, os artigos humorísticos publicados em revistas científicas podem ter um propósito relevante. É o caso de uma série de artigos acerca do monstro do lago Ness, publicada em 1972 e 1973, na revista Limnology and Oceanography, que divulga princípios ecológicos importantes. Tendo em conta o tamanho do lago e a exposição solar, pode estimar-se a quantidade de plâncton que poderia estar disponível para alimento. Sabendo o tamanho dos monstros, poder-se-ia estimar quantos lá poderiam viver. Caso existissem, claro.
Mais recentemente, em 2011, foi publicado na Acta Neurochirugica, uma respeitável revista de neurocirurgia, um artigo que faz uma avaliação dos traumatismos cranianos ocorridos nos 34 livros do Astérix, através de sinais indirectos, como olhos esbugalhados. Sem qualquer surpresa, os autores concluíram que o grupo sociocultural mais atingido são os romanos (63,9% das vítimas) e que os gauleses causam a maioria dos traumatismos (87,1%), metade dos quais sendo da responsabilidade directa da dupla Astérix e Obélix.
O artigo foi acompanhado por uma nota do editor, que explica a sua publicação com a necessidade de alertar para os factores de risco associados a traumatismos cranianos, nomeadamente a importância do uso de capacete. Mas nem toda a gente percebeu a piada. Um irredutível grupo de jornalistas ingleses resolveu fazer notícias sobre o assunto, como se fosse mesmo a sério. Vários leitores indignados deixaram comentários chocados com o desperdício de dinheiro dos contribuintes em tão disparatada investigação. O primeiro autor do artigo, o médico Marcel Kamp, veio a público esclarecer a questão. Mas ninguém ligou, e a notícia acerca dos cientistas idiotas que fazem investigação sobre assuntos inúteis acabou por correr mundo.
Treinar para escrever mal
Outro exemplo notável de sentido de humor na ciência foi protagonizado pelo mestre da ficção científica Isaac Asimov. Em 1947, então com 27 anos, já era um autor reconhecido. Para além da ficção, por essa altura andava também às voltas com a ciência. Como parte do seu doutoramento em Bioquímica, Asimov precisava de dissolver cristais de catecol em água, coisa que acontecia instantaneamente. Ocorreu-lhe que, se os cristais de catecol fossem ainda mais solúveis, dissolver-se-iam ainda antes de a água ser adicionada. Também andava preocupado com a escrita da sua tese. Não sabia se era capaz de escrever suficientemente mal, de modo a entregar uma tese com um estilo aceitável para os académicos, pois há vários anos que escrevia profissionalmente.
Com estas ideias a fervilhar na cabeça, decidiu escrever um falso artigo científico, para praticar o tipo de má escrita que considerava necessária para a tese. Para tema escolheu um composto imaginário, inspirado no seu trabalho com o catecol, a que chamou tiotimolina: era tão solúvel que se dissolvia 1,12 segundos antes de a água ser adicionada. Enviou-o para a revista Astounding Science Fiction, impondo que fosse publicado sob pseudónimo, pois receava que o júri de doutoramento não achasse piada. Mas o editor não cumpriu o acordo e incluiu mesmo a prestigiada assinatura de Asimov. Felizmente, o júri de doutoramento teve mais sentido de humor do que Asimov previa: tanto aprovou a sua tese como ainda lhe fez uma pergunta sobre a tiotimolina.
Asimov voltou ao tema anos mais tarde, com um novo artigo intitulado As Aplicações Micropsiquiátricas da Tiotimolina, no qual mostrava como se podia usar a tiotimolina para avaliar algumas perturbações mentais. Considerando que a solubilidade da tiotimolina dependia da determinação da pessoa que juntava a água, no caso de pessoas com personalidades múltiplas, algumas partes da tiotimolina dissolviam-se antes das outras, como consequência das suas diferentes personalidades.
Escreveu ainda, em 1959, uma comunicação ao 12.º Encontro Anual da Sociedade Cronoquímica Americana, uma organização que evidentemente ainda não existe, com o título Tiotimolina na Era Espacial. Neste mostrava-se preocupado com o facto de a União Soviética poder ter tecnologia capaz de antecipar vários dias a dissolução de grandes quantidades de tiotimolina.
De Ig Nobel a Nobel
Além dos falsos artigos científicos, escritos com fins humorísticos, há casos em que verdadeiros artigos científicos têm realmente piada. Para premiar esses trabalhos de investigação que primeiro nos fazem rir e depois pensar, desde 1991 que a revista humorística Annals of Improbable Research atribui os Prémios Ig Nobel, contrapontos humorísticos dos Nobel. Por exemplo, em 2008, o Ig Nobel da Economia foi para uma equipa de investigadores que estudou a relação entre o ciclo sexual feminino e as gorjetas das dançarinas de striptease que fazem actuações ao colo dos clientes (lap dance). Num artigo publicado na revista científica Evolution and Human Behavior, concluem que elas ganham gorjetas mais elevadas quando estão na ovulação. Este trabalho mostra como a investigação exige sacrifícios, se pensarmos nas longas horas que os três autores, todos do sexo masculino, tiveram de passar em estabelecimentos de striptease.
Os Ig Nobel premeiam por vezes investigadores muito empenhados, como é o caso do físico de origem russa Andre Geim, que em 2000 ganhou o Ig Nobel da Física “pela levitação magnética de um sapo” e, em 2010, o Nobel da mesma disciplina, pela descoberta do grafeno, uma forma de carbono que consiste numa monocamada de grafite.
Por cá, a glória da ciência lusa não se esgota com o Nobel da Medicina de 1949, atribuído a Egas Moniz. Em 2018, um grupo de investigadores portugueses ganhou o Ig Nobel da Química, por provar que a saliva é um bom produto de limpeza, tendo publicado as suas conclusões numa revista científica em 2013. A responsável pelos poderes de limpeza é a alfa-amilase, uma enzima que há na saliva, que é uma espécie de máquina de partir açúcares que faz parte do nosso sistema digestivo. Tem graça, mas também dá que pensar.
Nesta linha das secreções humanas, o meu estudo preferido de todos os tempos é um artigo publicado em 2002 na revista Archives of Sexual Behavior, segundo o qual o esperma é um antidepressivo para as mulheres: alunas (293) de uma universidade de Nova Iorque preencheram dois questionários, um acerca da sua vida sexual e outro que avaliava sintomas de depressão. Os dados sugerem que as mulheres que contactam regularmente com esperma no seu sistema reprodutivo têm menos sintomas de depressão, o que pode dar ideias para as melhores (ou piores?) frases de engate de sempre.
“O gato de Schrödinger entra num bar...
… E não entra.” A piada é do norte-americano Brian Mallow, que se auto-intitula o primeiro comediante científico do planeta. É inspirada numa estranha experiência conceptual proposta pelo físico austríaco Erwin Schrödinger, em 1935. Dentro de uma caixa fechada está um gato, um frasco de veneno e um martelo capaz de o partir graças a um dispositivo radioactivo, que obedece à teoria quântica. A vida do gato fica descrita por uma sobreposição de estados quânticos, isto é, existe simultaneamente em dois estados diferentes. Essa indeterminação só é levantada quando se observa: então, ou está vivo ou está morto. Por isso, antes de abrirmos a caixa, e de acordo com uma das interpretações da teoria quântica, o gato estará simultaneamente vivo e morto. Segundo uma afirmação da conhecida figura pública Lili Caneças, “estar vivo é o contrário de estar morto”. Portanto, Schrödinger e Caneças produziram pensamento acerca deste tema. E o pensamento dos dois colide! Não é o único par improvável de pensadores. De acordo com Niels Bohr, físico e excepcional bípede nascido no século XIX, “as previsões são sempre muito difíceis, especialmente acerca do futuro”. João Pinto, popular jogador do Futebol Clube do Porto no final do século XX, retomou esta ideia quando declarou que “prognósticos, só no fim do jogo”.
Podem fazer-se piadas com a ciência, ao estilo do stand-up comedy. Foi isso mesmo que fizeram, de 2009 a 2014, os Cientistas de Pé – um grupo de comédia constituído por investigadores científicos, coordenado por mim e pelo actor Romeu Costa –, como esta, da autoria da bioquímica Sofia Leite, que reflectiu acerca do sexo dos escorpiões:
“Para um escorpião macho, sexo é deixar pacotes de esperma no chão e esperar que a fêmea os encontre e se sente em cima deles. Prático: assim não há necessidade de o macho e a fêmea se encontrarem para ter sexo. ‘Querida, fui para os copos com os amigos, mas deixei o esperma em cima do frigorífico... Mesmo ao lado do do João.’”
A química Ivette Pacheco procurou ganhar a simpatia do público para a investigação com modelos animais: “A esperança de vida de um ratinho fora do laboratório são cinco anos. Dos que trabalham connosco: 12 dias e 20 minutos.”
E, para terminar, uma piada do biólogo Bruno Pinto acerca da origem do Universo: “Se o Big Bang foi uma grande explosão a partir da qual se formou o Universo, então o que havia antes do Big Bang era provavelmente uma grande fábrica de pirotecnia. E o que existe para além dos limites do Universo é, provavelmente, um paraíso fiscal, para onde os extraterrestres corruptos enviam dinheiro.”