É com as memórias que em Campanhã se exige o futuro
O projecto “Reclaim the Future/Exige o futuro” juntou a comunidade de Campanhã, no Porto, e tem início esta quinta-feira. A "Parada Desatada" é o momento principal do evento.
Albina Pinheiro nunca conheceu outra casa sem ser a que tem em Campanhã. Nasceu com o bichinho do teatro e sempre gostou de actuar, mas agora, com 78 anos e uma freguesia diferente da que conheceu, já “não há quem o faça” naquele local. Em Fevereiro surgiu um projecto que acolheu os seus sonhos e ambições e lhe permitiu retomar uma paixão antiga.
Há vários anos que o projecto artístico “Visões Úteis” trabalha com a comunidade de Campanhã, mas desta vez quiseram ir mais longe e dar espaço à população para falar de si, da sua história e do que exigem para o seu futuro, através da arte.
A população desta freguesia é o rosto português do projecto europeu “Reclaim the future/Exige o futuro”, que envolve cinco parceiros ou companhias artísticas de França, Suécia, Escócia, Letónia e Portugal, com o objectivo de trabalhar com comunidades da periferia, que se sentem afastadas dos centros de decisão por razões políticas, sociais ou económicas. A partir desta quinta-feira e até sábado, o evento chega a Portugal, inserido no programa municipal Cultura em Expansão, e apresenta ao público as memórias do passado e as questões e exigências para o futuro do local.
“Campanhã é um mundo, tem muitos bairros e personalidades diferentes, mas descobrimos este tecido de colectividades, de associações e de pessoas que estão a tentar levar grupos inteiros atrás de si e a tentar recuperar coisas que existiram há muitas décadas atrás e que caíram no abandono”, explica Ana Vitorino, directora artística. O grupo de teatro portuense está a trabalhar com a comunidade, incluindo com Albina, que agora pode voltar a pisar um palco que tão bem conhece.
Num dos ensaios para a “Parada Desatada”, um percurso performativo que se realiza este sábado pelas 17h, há um grupo de participantes que vão ser os “bufões”, pessoas que antigamente eram rejeitadas da sociedade, por viverem na periferia ou não terem capacidades físicas e mentais, e que denunciavam os problemas que existiam. São eles que começam o percurso da parada e encaminham os participantes para o futuro, sem esquecer o que o passado já lhes trouxe. Aqui nada é ensaiado ou encenado, mas sim construído.
“Foi dos bairros mais bonitos que eu conheci”
O bairro de São Vicente de Paulo, demolido entre 2005 e 2008, vai ser o ponto de partida da parada. Um terreno antes ocupado por casas e famílias é agora um espaço vazio, abandonado e que apenas existe na memória dos que lá viveram desde tenra idade. “Este espaço desapareceu, as pessoas foram deslocalizadas, colocadas noutros bairros, é um espaço cheio de passado e de futuro incerto e, por isso, queríamos começar a parada lá”, explica Ana Vitorino.
É aqui que Amélia Queirós vai recordar a casa onde vivia desde os quatro anos. Hoje, com 65 anos, mora no bairro do Falcão e tem um pequeno espaço de costura junto à Praça da Corujeira. As imagens do bairro, essas, não lhe saem da cabeça: “Nós dormíamos de porta aberta. Era um bairro onde as pessoas estavam independentes, não havia vizinhos por cima nem por baixo, mas era muito ligado, toda a gente se entendia. Foi dos bairros mais bonitos que eu conheci”, relembra.
Sempre que fala no bairro, Amélia faz questão o tratar como “seu”, por muito que dele apenas restem alguns pedaços. As questões que coloca são as mesmas que todos os ex-moradores continuam a tentar responder: “Porque é que puseram as pessoas de lá para fora? Nós estamos aqui e todos os dias olhamos para ali e pensamos que saímos de um sítio que gostávamos tanto e agora aquilo está tudo parado”.
Do passado para o presente, a parada vai seguir para a Praça da Corujeira, um lugar central em Campanhã e de passagem frequente. Já as questões sobre o futuro vão ser apresentadas no Matadouro Municipal, antigo “lugar de morte” e hoje um sítio com planos para ser “um grande espaço de acolhimento de artes e indústrias criativas e está só à espera de começar esse futuro”, explica Ana Vitorino.
Para Inês de Carvalho, responsável pela direcção da parada, era essencial que este evento não começasse do nada, mas do que as pessoas já sabem fazer e com o que “já está em curso nas suas mais diversas especialidades técnicas, artísticas e sociais”.
A partilha de histórias e experiências de uma comunidade
Recuperar o passado e sonhar o futuro ganha uma nova dimensão quando é feito em conjunto. As pessoas falam entre si, conhecem cada história e deixam de ser desconhecidos numa comunidade em que a partilha é um dos valores. É também esta a maior marca que o grupo quer deixar na população: “A nossa ideia é precisamente que este projecto sirva de ponto de encontro e que haja tempo e espaço para as pessoas se reconhecerem, porque elas têm relações entre elas ou tiveram há 50 anos ou os filhos têm, ou vão ao mesmo sítio e frequentam o mesmo grupo”, acrescenta Ana Vitorino.
Mas, o grupo não quis ficar por aqui. Não bastava chegar à comunidade, apresentar um espectáculo “e já está”. Era preciso mais. E esse bónus chegou com a recolha das histórias de vida de cada pessoa para, mais tarde, serem partilhadas com toda a gente num livro e numa aplicação para smartphone. “Queremos devolver às pessoas este registo, esta ideia de que o seu passado não desapareceu com o bairro e está documentado. Aquilo existiu, aquelas relações, a memória afectiva que elas têm deste espaço não vive só dentro delas, e a partir de agora ninguém pode ignorar”, explica a directora artística.
O “Reclaim the Future” termina em 2018 com um evento colectivo em Bruxelas, mas em Portugal inicia-se esta quinta-feira, dia 13, com uma conversa sobre arte e comunidade – “Da mesma laia” – às 15h30 no MIRA Fórum. Na sexta-feira, no mesmo local, pelas 21h30, o Visões Úteis e uma companhia de teatro sueca – Teatermaskinen - reconstroem e adaptam os espectáculos de cada um.
Texto editado por Ana Fernandes