Demissões no Governo e rebelião interna deixam o “Brexit” de May ligado às máquinas
Ministro do “Brexit” foi um dos que bateu com a porta e tories eurocépticos lançaram processo que pode levar à destituição da primeira-ministra. Isolada, May resiste.
A aprovação em Conselho de Ministros do esboço do acordo de saída do Reino Unido da União Europeia, apresentado e defendido com unhas e dentes por Theresa May, atirou o país para o caos e a incerteza. Quinta-feira arrancou com demissões no Governo britânico, acolheu um coro interminável de críticas ao documento e testemunhou o início de uma revolta interna no Partido Conservador para derrubar a primeira-ministra. Mas May não cede. Numa série de intervenções ao longo do dia e em nome do “interesse nacional”, reduziu o leque de escolhas em cima da mesa a três: o seu acordo, nenhum acordo ou nenhum “Brexit”.
Entre os membros do executivo que bateram com a porta, o destaque vai para Dominic Raab. O homem que substituiu David Davis em Julho como ministro do “Brexit” justificou a decisão por não conseguir “conciliar os termos do acordo proposto com as promessas feitas ao país”. Raab defende que o acordo é “prejudicial para a economia” britânica e para a “confiança da população na democracia”, para além de ter o potencial de vir a deixar o país “indefinidamente preso às regras europeias”.
A ministra do Trabalho Esther McVey, o secretário de Estado para a Irlanda do Norte Shailesh Vara e o vice-presidente do Partido Conservador Rehman Chisti foram outras figuras de topo dos tories que abandonaram o barco, desiludidas com o documento de 585 páginas sobre o acordo do “Brexit” divulgado na quarta-feira à noite.
Tal como se previa na véspera, a sessão de perguntas e respostas na Câmara dos Comuns foi explosiva. E confirmou uma Theresa May mais isolada do que nunca, no mesmo palco onde, se sobreviver a uma eventual disputa interna pela liderança, terá de fazer aprovar um acordo – algures em Dezembro – que não parece agradar a ninguém.
“A escolha é clara: sair [da UE] sem acordo, arriscar não ter qualquer ‘Brexit’ ou unirmo-nos e apoiar o melhor acordo que conseguimos negociar”, resumiu a primeira-ministra.
Entre acusações e clamores ao texto técnico, protagonizadas por deputados de todos os partidos políticos com assento parlamentar – incluindo os Conservadores –, foi preciso esperar quase uma hora para se ouvir a primeira intervenção de apoio de um deputado tory ao “Brexit” de May – prontamente abafada por interjeições e risos de escárnio.
O registo foi quase sempre o da crítica. Jeremy Corbyn, do Partido Trabalhista, denunciou o “salto no escuro” e o “falhanço estrondoso” trazido pelo acordo. Liberais-democratas e nacionalistas escoceses também juntaram as suas vozes ao protesto. Os primeiros exigindo novo referendo, os segundos alertando que o estado actual das coisas fortalece as aspirações independentistas na Escócia.
E Nigel Dodds, do Partido Democrático Unionista (Irlanda do Norte) – que suporta a maioria parlamentar conservadora –, acusou a primeira-ministra de “simplesmente não ouvir” os apelos dos unionistas para evitar a desintegração territorial do Reino Unido.
Liderança em risco?
O ritmo de episódios e declarações hostis à líder do executivo foi de tal forma intenso durante quinta-feira, que em alguns momentos deu a sensação de que deter o mais alto cargo político do Reino Unido pode não ser sinónimo de deter efectivamente o poder que ele confere.
Face à sucessão de demissões, desautorizações e críticas ao plano de divórcio acordado entre o Governo e Bruxelas, a intransigência de May em agarrar-se a ele até às últimas consequências acabou por se transformar na narrativa secundária do dia. Particularmente quando se deu conta de estar oficialmente em marcha uma guerra aberta dentro do seu partido, promovida pela ala “hard-brexiter”.
Ainda a primeira-ministra respondia à avalanche de perguntas na câmara baixa e numa outra sala de Westminster juntavam-se dezenas de membros do European Research Group (ERG) – que junta os tories eurocépticos –, para discutir estratégias para a afastar.
Minutos depois, Jacob Rees-Mogg, líder do ERG, confirmava a um batalhão de jornalistas acotovelados à porta do Parlamento que, uma vez que May falhara nas promessas de retirar o Reino Unido da união aduaneira, de proteger a integridade territorial do país e de libertar o território da jurisdição do Tribunal Europeu de Justiça, não havia outra solução senão iniciar um processo para uma moção de desconfiança à líder do partido.
Para tal é necessário que pelo menos 48 deputados (15% dos actuais 315) enderecem uma carta a dar conta dessa intenção ao líder do 1922 Committee – que reúne os todos os parlamentares conservadores. Vários deputados tories publicaram nas redes sociais imagens das referidas missivas e May reagiu, aceitando o desafio e afirmando que os seus colegas “devem fazer o que acreditam ser o mais correcto”.
Uma vez atingidos os números necessários, os media britânicos sugerem a próxima terça-feira como eventual data para a votação. Se 158 deputados votarem a favor, a primeira-ministra cai e inaugura-se nova corrida à liderança, que se pode arrastar durante meses. Caso contrário, ganha uma imunidade de 12 meses, durante os quais não pode ser desafiada.
Demasiados cenários
Ao início da noite Corbyn escreveu aos militantes trabalhistas, esclarecendo que a estratégia é empurrar Theresa May para eleições antecipadas, mas oferecendo hipóteses alternativas: “Se não for possível, apoiaremos todas as opções que continuam em cima da mesa, incluindo fazer campanha por um referendo”.
As dúvidas que assaltam a liderança do Labour – favorito em caso de eleições legislativas –, ajudam a perceber o grau de incerteza que paira sobre o Reino Unido e a multiplicidade de cenários possíveis.
Partindo do princípio que os 27 Estados-membros da UE aprovam o texto definitivo do tratado de saída do Reino Unido na cimeira extraordinária do dia 25 de Novembro e assumindo que May mantém a intenção de não tentar renegociar o acordo alcançado com Bruxelas, de não estender a data de saída para lá do dia 30 de Março de 2019 e de não convocar novo referendo, o grande desafio do Governo britânico é fazer passar o documento pela Câmara dos Comuns.
Passando, vai ao Parlamento Europeu e entra em vigor no fim de Março. Mas em caso de chumbo – a hipótese mais previsível tendo em conta as posições assumidas por DUP, Labour, SNP, Liberais Democratas, Verdes e dezenas de deputados conservadores –, a possibilidade de novas eleições ganha força. E com ela os cenários rejeitados por May, com todo o tempo e preparação que isso implica: renegociação do acordo, segundo referendo ou extensão do artigo 50 do Tratado da UE.
Somando a tudo isto uma potencial batalha pela liderança do Partido Conservador, que tradicionalmente dura entre dois a três meses, não parece haver outra maneira de pôr a questão: o “Brexit” de May corre o risco de implodir antes mesmo de existir. E a primeira-ministra será a primeira implodir com ele.