À procura de raízes nos labirintos da história e da arte

El Jardín de los senderos que se bifurcam, de Juan Araujo, e As Raízes Também se Criam no betão, de Kader Attia são duas exposições que convivem no mesmo espaço. Partilharão sensibilidades, discursos, questões ou algo, irremediavelmente, as separa? Na Culturgest de Lisboa, descobrem-se, entre as obras, caminhos que sugerem respostas.

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No exterior das galerias da Culturgest de Lisboa, há coisas que assinalam a presença de duas exposições. De um lado, uma barreira, daquelas que se vêem nas manifestações, na qual estão incrustadas pedras que alguém arremessou. Do outro, duas pinturas projectadas nas paredes, que evocam a história do modernismo. Para o visitante, a distinção aparece clara. A primeira exposição remeterá para o mundo que excede o da arte: o da rua, do espaço público, do conflito social. A outra vinca-se no território auto-reflexivo da pintura, com as suas histórias e narrativas paralelas ou cruzadas. Os títulos insinuam a distância. A primeira tem por título As Raízes Também se Criam no Betão e o seu autor é o franco-argelino Kader Attia (1970), a segunda chama-se  O jardim dos Caminhos que se Bifurcam, e é uma exposição de Juan Araujo (1971), artista venezuelano que reside em Portugal.

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Kader Attia é um dos artistas mais interessantes da actualidade. Os materiais e os suportes que usa são diversos: colagens, esculturas, filmes, instalação, imagens de arquivo, materiais orgânicos. Todos ao serviço de um fazer que discute, que evoca, que torna visível, que faz aparecer. “O quê?”, perguntará o leitor. A resposta é extensa: o trânsito de formulações culturais entre geografias, os dilemas e as feridas do enraizamento do emigrante, a violência e a discriminação que sobre ele se abate, as relações entre a França e a Argélia. As promessas falhadas de um século XX. Os traumas, mas também as memórias.

Uma paisagem fora de campo

É o equilibro entre a crítica e a memória, entre a reflexão e a experiência dos sentidos, que torna As Raízes Também se Criam no Betão uma exposição sedutora e violenta. Escuta-se, vê-se e (como se verá) cheira-se. No centro da primeira sala, uma construção de metal replica a arquitectura de um edifício das banlieues (subúrbios) parisienses. E há música, sons. Vêm de excertos de dois filmes franceses, em televisores situados nos cantos da sala: Pépé le Moko, de Julien Duviver (1937) e Mélodie en sous-sol (1963), de Henri Verneuil, ambos protagonizados por Jean Gabin. O primeiro dá a ver imagens, documentais e feitas em estúdio, da casbá de Argel; no segundo, vemos a personagem interpretada pelo actor a atravessar uma urbanização em obras, cruzando-se com trabalhadores (que, pelo sotaque, parecem portugueses) em busca da casa onde viveu. É um homem que não reconhece a paisagem.

Da China, via email, onde tem estado nos últimos dias, Kader Attia junta-se a esta visita. E acrescenta: “Os dois excertos remetem para o mesmo contexto, embora em décadas diferentes. Descrevem lugares onde vivi com a minha família: a casbá de Argel e a zona de Sarcelles, em Paris”. Mas há outro aspecto a salientar, sublinha: “É que a arquitectura e a especificidade urbana da casbá teve uma forte influência naquele que é o pai da habitação social moderna de Sarcelles. Falo de Le Corbusier”. A influência da arquitectura do Magrebe no modo como um certo modernismo concebeu a arquitectura dos subúrbios de Paris manifesta-se na sala seguinte, mais silenciosa, em que focos de luz iluminam o desfile de colagens e associações visuais. Grupos de adolescentes à espera do futuro, trabalhadores da construção civil, edifícios, paisagens de urbanizações nos arrabaldes de Paris, vistas sobre a casbá. Arquitectura vernacular e moderna, africana e europeia numa dança nem sempre harmoniosa. Por momentos, tudo se sobrepõe, tudo se confunde, num curto-circuito que ainda não se apagou. Para Kader Attia esta sala começa a mostrar o que os filmes ainda escondiam: “O cinismo da promessa de um conforto que a habitação social supostamente ofereceria, especialmente em Sarcelles, onde vivi. Aquilo que ficou ‘fora de campo’ nesses filmes, que não vemos. Uma cidade de pobreza, crime, violência policial, bairros degradados”.

E das colagens e da história da arquitectura, o artista transporta-nos para o presente, convidando-nos a ver o vídeo Les héritages du corps: le corps  postcolonial. É um momento de desaceleração, da pausa, de escuta. Filósofos, psicólogos, antropólogos e ativistas comentam violência policial que, em Fevereiro de 2017, nos arredores de Paris, brutalizou o jovem Théo Luhaka. E desse evento, discursam sobre os dilemas da assimilação e da integração, sobre o desejo de visibilidade e invisibilidade daqueles que são negros, magrebinos, muçulmanos, emigrantes em França. O formato lembra a experiência de certos documentários da televisão, nos quais é dado tempo e à espaço às pessoas. Para que possam falar.

Um lugar para os amantes

“Vivemos num mundo dominado pela velocidade e pelo consumo espontâneo de tudo. Gosto de tornar as coisas mais lentas, de ouvir aqueles que raramente escutamos”, diz o artista. “Por isso, nos meus filmes, entrevisto académicos e não académicos. Há tanta gente que tem coisas para nos dizer se as ouvirmos. Se arranjarmos tempo para desacelerar, podemos pensar na possibilidade de reparar as nossas vidas, mesmo quando há coisas que não são reparáveis”. Noutra sala, a reflexão dá lugar ao movimento do corpo sobre uma inesperada instalação. Caminhamos sobre réplicas de telhados da casbá (feitos dos mais diversos materiais) que preenchem a totalidade do chão enquanto na parede vemos, projectada, a imagem de um edifício moderno, conhecido como Tour Le Robespierre, em Vitry-sur-Seine, Île-de-France. A arquitectura e a sociedade assoma de novo, numa relação inescapável.

“Esse edifício foi construído, para os migrantes que habitavam as bidonvilles, como sinónimo do sucesso da modernidade, reunindo uma estética radical a uma funcionalidade ética. Com a instalação dos telhados, quis lembrar significado dos terraços na cultura mediterrânica do Norte de África. É um lugar para onde fugimos do tédio, um lugar para os amantes, para aqueles que que durante o Ramadão querem fumar e divertir-se”. A ideia de juntar as duas peças surgiu depois de uma conversa com o curador Delfim Sardo. “Os significados dos dois tipos de arquitectura, uma vernacular, orgânica, ao outra vertiginosa e vertical, combinam muito bem”, considera o artista. “A justaposição cria um terceiro trabalho, que é dado pelo som. Sobre os telhados, evocam-se os fantasmas da vida urbana”.

As evocações tornam-se mais autobiográficas na sala seguinte, onde encontramos uma duna feita de couscous em que Kader replicou as habitações da cidade fortificada de Ghardaia (Argélia), outra influência na arquitectura de Le Corbusier, e sobretudo um prato no qual o artista depositou malagueta, cravinho e hortelã cujos cheiros inundam a sala. A referência à memória de um passado faz-se pela entrada do mundo exterior no espaço da arte. Trata-se de uma peça central na exposição pois dialoga com o filme final, la memoire (Reflectir a memória), cujo tema é a perda e o trauma. Perda de membros do corpo, perda do passado, perda do contacto com outros. Cortes e feridas que nem sempre são reparáveis, mas que a cultura e os afectos (dos outros) podem consolar ou tornar menos dolorosas. E daí, fazer crescer raízes.

Copias que são originais

Na exposição de Juan Araújo, os caminhos são outros. Mais labirínticos (o título é uma citação de uma obra de Jorge Luís Borges), mas determinados pelas narrativas da história da arte moderna. É uma exposição constituída por duplos, espelhos, cópias, citações e remissões, exercícios miméticos. Uma teia de sentidos, circunstâncias, ecos, em que o visitante ora reconhece imagens e obras ou se perde na pura experiência das formas e das superfícies. Na primeira sala, vemos um recorte de uma BD apropriada por Roy Lichtenstein, pertencente à colecção do Allen Museum, em Cleveland, EUA. O venezuelano pintou-a, reproduzindo assim o original a partir do qual o artista viria a fazer a sua pintura. Mas não é o único original que está na sala. Um metro ao lado, eis a primeira BD que inspirou Roy Lichtenstein e também ela pintada por Juan Araujo. Mas há mais: vemos também a paleta original e a reprodução dessa BD, levemente esbatida. E ainda uma paleta que replica a trama pictórica feita de pontos que habitualmente associamos ao artista norte-americano. Tudo pintado por Juan Araujo. Este interesse pela cópia e original, pelo processo, repete-se, na mesma sala, com versões espelhadas de uma pintura de Barnett Newman: uma corresponde à original, outra ao seu inverso.

O trabalho de Araújo com obras preexistentes não surge programada, não é lógico, mas fruto de contextos e circunstâncias específicas. A ideia de trabalhar com Roy Lichtenstein surgiu no âmbito de um convite para participar na Trienal de Cleveland, mais exactamente na Casa Weltzheimer/Johnson, desenhada por Frank Lloyd Wright. Foi aí que encontrou os recortes de BD e as pinturas de Lichtenstein (a historiadora de arte e crítica Ellen H. Johnson, uma das proprietárias da casa, foi uma personalidade muito próxima desse e outros artistas que, com frequência, lhe ofereciam obras).

“Os temas, as ideias para cada exposição ou grupo de obras surgem depois de viagens, de pesquisa”, complementa o artista. “Há um desejo de dialogar com o local, seja através da própria arquitectura do edíficio onde exponho ou com a história e a tradição da arquitectura e da arte do país. Os contextos são fundamentais, sejam os lugares onde vou expor ou as pesquisas que estou a desenvolver. Foi o que aconteceu com pinturas do Miguel Ângelo. Realizei-as para a minha primeira individual numa galeria na Itália”. As pinturas a que se refere são das janelas da Biblioteca Medicea Laurenziana de Florença. Descobrimo-las colocadas no interior de um espaço expositivo que, sinalizado por linhas no chão e do tecto, cria a sensação de enclausuramento. À volta daquele, por sua vez, estão pinturas dos frescos da Vila dos Mistérios de Pompeia e uma outra, talvez ainda mais misteriosa: a de uma das célebres e perdidas pinturas que Mark Rothko realizou para as paredes do edifício Four Seasons em Nova Iorque. Juan Araujo não revela qualquer enigma, alude apenas à história e sugere afinidades entre as janelas, as paredes e as telas de Rothko. Entre a arquitectura e a pintura, atravessando séculos.

O verde e os reflexos sobre a geometria

Mark Rothko reaparece noutra pintura. Trata-se de um cartaz do filme Deserto Vermelho (1964), de Michelangelo Antonioni, que nos recorda a amizade pessoal entre ambos, o interesse artístico que os dois artistas manifestaram pela cor.  É uma porta de entrada para um conjunto específico de trabalhos, em que a prática da apropriação cria ficção: no corredor, estão outras pinturas-revistas, trabalhos onde a vertente conceptual se harmoniza com virtuosismo surpreendente de Juan Araujo. São capas inventadas da National Geographic, que noticiam catástrofes apocalípticas em Caracas. Rios de lava, explosões, nuvens tóxicas anunciam um mundo pós-humano e a aniquilação da natureza. Outra capa, agora da revista venezuelana Elite, faz alusão ao terramoto (passado, futuro?) na capital venezuelana com uma pintura das torres de El Silencio, em Caracas, (também conhecidas como Torres Del Centro Simón Bolívar), edifício que simboliza as promessas e os falhanços da modernidade arquitectónica, social, económica e política na Venezuela. Na exposição é o trabalho que mais evidencia o comentário político, aquele em que as narrativas da arte e da arquitectura espelham as convulsões dos sociais e políticas.

“Sim, sem dúvidas. A arquitectura, sobretudo na América Latina, encontra-se ligada ao contexto social, económico e político. Mas na sala em que dialogo com a residência Olga Baeta [desenhada em São Paulo por João Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi em 1956 e representativa da arquitectura brutalista brasileira], a distribuição mondriana das cores no espaço habitacional diferenciando as  áreas também deve ser considerado um acto político do arquitecto”. O artista refere-se às tensões entre a modernidade europeia, com as suas linhas geométricas, impositivas e uma arquitectura que lhes serve como contraponto, trazendo o verde indomável da natureza para o interior, como se pode constatar na quinta sala. É um dos momentos mais bonito da exposição, com o artista a exprimir, a professar o seu gosto – pintando – pelas fotografias de Luisa Lambri, pela arquitectura de Lina Bo Bardi e Oscar Niemeyer, por uma pintura de Kandinsky. Sem esconder as tensões ou os desencontros que as constituem no mesmo espaço. Também Juan Araujo parece à procura de raízes, como a última sala tão bem demostra. Nela, estão pinturas que fez na Villa Planchart de Gio Ponti, em Caracas, considerada um ícone de arquitectura moderna venezuelana, pinturas em que homenageia o abstracionismo do artista venezuelano Alejandre Otero, contaminando a ordem geométrica da pintura deste com o reflexo de uma figura humana.

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