Morte de cadela grávida dá pena de prisão inédita mas condenações diminuíram
Confrontado com gravidez de pastor alemão, dono não encontrou melhor forma de resolver o problema senão esventrá-lo para lhe retirar ninhada. Ficou proibido de ter animais de estimação durante cinco anos.
A condenação de um homem a prisão efectiva por ter morto a sua cadela grávida é considerada histórica: até ontem nunca tinha havido uma sentença tão pesada desde que entrou em vigor a lei que transformou em crime os maus tratos aos animais domésticos, em 2014.
Porém, uma análise das estatísticas disponíveis mostra que apesar de as queixas relativas a maus tratos ou a abandono dos animais de companhia apresentadas na PSP e na GNR terem vindo sempre a crescer desde aí, o mesmo não sucede com as condenações. Assim, em 2016 registaram-se 40 sentenças condenatórias, que baixaram para 29 no ano passado. Mas o último Relatório Anual de Segurança Interna reporta quase dois mil crimes participados. No que respeita a 2018 apenas a GNR forneceu estatísticas: registou 758 delitos deste tipo entre Janeiro e o final de Setembro.
O caso que na quarta-feira foi alvo de uma sentença de 16 meses de cadeia – o máximo legal que a lei permite são dois anos – tem contornos particularmente cruéis. Confrontado com uma gravidez indesejada de uma cadela sua, o dono, um antigo pára-quedista sexagenário, não encontrou melhor forma de resolver o problema senão esventrar o animal para lhe retirar a ninhada.
O Tribunal de Setúbal deu como provado que Hélder Pasadinhas fez a operação a sangue frio para retirar seis fetos e que quatro animais — a própria cadela e três nados vivos — vieram a morrer devido à sua actuação. A incisão feita na cadela foi “grosseira e irregular”, alguns dos fetos não foram retirados e o homem – que fez um curso de enfermagem quando esteve na guerra do Ultramar – suturou o corte apenas na parede abdominal, não tendo cosido a parede do útero. Os cachorros que retirou foram de imediato colocados num saco de plástico e metidos no lixo, onde vieram a morrer de fome e frio. A cadela Pantufa, que costumava manter acorrentada e muitas vezes sem alimentar e à sede, foi deixada num canto da casa após a operação, sem assistência veterinária. Morreu horas depois.
Tudo aconteceu na Venda do Alcaide, no concelho de Palmela, a 3 de Fevereiro de 2016. O juiz sublinhou o “sofrimento atroz” provocado à cadela, uma pastor alemão cruzada. Na sentença, chega a falar em barbárie. Na sala de audiências explicou que aquilo que a sua decisão censura é a crueldade. “Sou juiz de direito, não sou fundamentalista dos animais. Sou fundamentalista contra a crueldade”, assegurou, acrescentando que a “ênfase” que coloca nesta decisão na defesa dos animais não é maior do que a que coloca nos casos de ofensas a pessoas.
“Este homem tem de estar na cadeia. Se a cadeia não serve para a crueldade, serve para quê?”, interrogou o magistrado, admitindo que o cenário da cadela em sofrimento, “com as tripas de fora”, lhe assaltou a memória “várias vezes”. Daí que tenha afastado a possibilidade de a pena ser substituída por trabalho comunitário ou ser cumprida no domicílio, com pulseira electrónica. Afinal, não é a primeira vez que o arguido teve problemas com a justiça: já tinha sido condenado duas vezes por conduzir sem carta. Desta vez ficou proibido de ter animais de companhia durante cinco anos, pelo que os cães que ainda possui serão entregues para adopção.
Embora tenha revelado que tem um cão, o magistrado de Setúbal sublinhou que não se trata da decisão do “juiz amigo dos cãezinhos”, porque, segundo defendeu na sentença, este caso não é apenas de crimes contra animais.
“Não é só isso. Este processo respeita à humanidade, àquilo que nós somos”, disse, depois de recordar o dever do ser humano de coabitar com os demais seres vivos no planeta e a condição especial dos cães na relação com as pessoas, que “faz parte integrante do bem-estar do ser humano, porque [o] realiza”. “Este processo marca a minha vida”, disse ainda o juiz.
Um segundo homem que segurou a cadela durante a operação foi condenado a uma multa de 360 euros. Diz que não vai recorrer da pena, porque a considera justa. “Ele disse-me que tinha sido enfermeiro no Ultramar, que sabia os procedimentos e vi que tinha os instrumentos. Depois verifiquei que estava a correr mal e fui-me embora”, conta Pedro Brinca. E acrescenta que acabou por ir almoçar com Hélder Pasadinhas nesse dia, porque entretanto foi ver o animal e pareceu-lhe estar bem de saúde. “Vi a cadela, estava ligada, sentada, pareceu-me bem”, refere.
A viver de biscates, Hélder Pasadinhas justifica o que fez com o facto de não ter dinheiro para levar Pantufa ao veterinário (ver outro texto). Uma desculpa que o juiz de Setúbal não aceita: “O município de Palmela assegura um veterinário para pessoas carenciadas”. Essa é também a posição do bastonário dos Veterinários, Jorge Cid: “Há sempre alternativas. O que ele tinha de fazer era procurar auxílio”.
Tanto a Provedora dos Animais de Lisboa, Marisa Quaresma dos Reis, como um procurador especializado neste tipo de questões, Paulo Sepúlveda, consideram a decisão judicial histórica. Até agora, as condenações por maus tratos apenas tinham estabelecido multas ou penas suspensas, nunca cadeia efectiva. E muitos dos casos terminam antes de chegarem a tribunal, por via das chamadas suspensões provisórias dos processos, em que os autores confessos destes crimes ficam sujeitos a determinado tipo de obrigações legais mas não são submetidos a julgamento, por se tratar de delitos considerados de pequena monta.
“Está a abrir-se uma porta nesta matéria que vai dar mais coragem aos decisores judiciais”, observa a provedora dos Animais, que defende um aumento das molduras penais do crime de maus tratos — que segundo a lei em vigor tem como limite máximo os dois anos de cadeia. “São molduras penais que não fazem sentido e que mais tarde ou mais cedo vão ter de ser revistas. É a sociedade que o pede”, diz Marisa Quaresma dos Reis, explicando que neste momento destruir um objecto — um cão de louça valioso, por exemplo — é teoricamente susceptível de dar origem a uma condenação mais pesada do que matar um animal de companhia. Isto, apesar de os animais terem deixado de ser objectos à luz da lei há perto de dois anos, tendo assumido um estatuto intermédio entre pessoas e coisas, o de chamados “seres sencientes”.
Trata-se de uma sentença que abre um precedente, concorda Cristina Rodrigues, do PAN – Partido Pessoas-Animais-Natureza: quem maltrata fica a saber a partir de hoje que pode “não escapar impune, nem com uma mera multa”. A jurista assinala que ainda recentemente um homem foi condenado a 12 anos de cadeia nos EUA por maus tratos a animais.
Especialista em Direito Civil, a docente da Faculdade de Direito de Coimbra Mafalda Miranda Barbosa diz que um acto como o que deu origem à sentença não podia ficar impune, dada a sua crueldade. E tanto a jurista do PAN como Rita Silva, da associação Animal, sublinham que era expectável que uma decisão como esta surgisse em Setúbal, já que se trata do único tribunal do país onde foi criada uma equipa para investigar este tipo de fenómenos, em colaboração com a GNR.