Após décadas de expropriação, indígenas brasileiros lutam para reaver terras

Populações indígenas são alvo de ataques armados na luta para reaver terras ancestrais. Agricultores que adquiriram os terrenos recusam sair sem compensações financeiras.

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© Lunae Parracho / Reuters

Três anos depois de ter sido baleado, o líder indígena Elpidio Pires ainda não consegue esquecer o cheiro da pólvora.

“Vieram matar-me”, disse o índio Guarani-Ñandeva de 50 anos, apontando para uma cicatriz nas suas costas.

O ataque, que ocorreu perto da fronteira do Brasil com o Paraguai, foi perpetrado por um atirador a soldo de um proprietário de terras, disse Pires. Em causa estava a disputa em torno de terras na zona de Paranhos, no Mato Grosso do Sul, 1180 km a sudoeste de Brasília.

Não foi a única vítima do ataque. “O meu cunhado foi atingido no braço e uma mulher foi violada e cortaram-lhe o cabelo todo”, disse Piries à Thomson Reuters Foundation.

“Sofremos ataques como este todos os dias”, disse à margem de um encontro entre líderes indígenas, decorrido em Agosto em Caarapó, no Mato Grosso do Sul.

O local onde o encontro teve lugar também é conhecido pela designação indígena de Guyraroka, e também se encontra no centro de uma disputa entre os índios Kaiowa e os agricultores. Em 2000, as terras que os índios Guarani-Ñandeva reivindicavam, conhecidas pelo nome indígena de Potrero Guacu, foram oficialmente reconhecidas pelo Ministério da Justiça brasileiro como pertencendo à tribo, depois de estudos antropológicos terem provado as suas ligações ancestrais àquelas terras. Mas o processo de demarcação foi suspenso depois de os agricultores terem recorrido aos tribunais, recusando sair da zona sem receber qualquer compensação monetária.

O ataque de há três anos, de que Pires foi alvo, é apenas um exemplo da violência associada a disputas de terras entre indígenas e agricultores no estado de Mato Grosso do Sul. Dezassete indígenas foram assassinados no último ano naquele estado, tornando-o no terceiro com mais mortes registadas em incidentes semelhantes em todo o Brasil, de acordo com um relatório de Setembro do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), um observatório de assuntos indígenas ligado à igreja.

O Cimi afirma que são muitos os homicídios ligados a conflitos por causa de terras, e que a ausência de direitos fundiários está por trás de muitos dos problemas que afligem a população indígena do Brasil. As autoridades admitem que, provavelmente, os números reais da violência podem ser ainda mais altos.

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“Sem dúvida que a violência aumentou”, disse o procurador federal Marco António Delfino de Almeida, enquanto se deslocava entre plantações de soja e cana-de açúcar para assistir ao encontro entre líderes indígenas.

Almeida disse que a ausência de direitos fundiários era um problema fundamental: o censo de 2010 demonstrou que Mato Grosso do Sul tinha cerca de 73 mil habitantes que se autodeclaravam indígenas, o estado com o segundo maior número de indígenas, apenas atrás dos 169 mil indígenas da Amazónia.

Porém, têm direitos de propriedade sobre menos de 1% do território do estado, disse Almeida. No estado da Amazónia, o valor é de 30%, de acordo com o Instituto Socio-Ambiental (ISA), um grupo de defesa dos direitos indígenas. “É um número desproporcional”, disse.

Impasse

Almeida disse que a batalha judicial por terras ancestrais entre agricultores e indígenas já dura há décadas e fez com que os índios ocupassem outras áreas para poderem ganhar a vida.

A perda de terras deve-se maioritariamente à produção pecuária, disse: o governo estimou que vivem 2,7 milhões de pessoas no estado de Mato Grosso do Sul, em conjunto com 22 milhões de cabeças de gado, de acordo com a FAMASUL, uma associação de agricultores do estado.

E, enquanto muitos indígenas noutras partes do Brasil procuram obter títulos de terras públicas e intocadas, Almeida diz que esse não é o caso em Mato Grosso do Sul: nesse estado, os índios contestam a propriedade de terras ancestrais que foram entretanto vendidas – e oficialmente transferidas – a agricultores ao longo do século XX.

O resultado, disse, é um impasse entre os indígenas e os agricultores, com os últimos a recusar entregar as propriedades sem qualquer compensação.

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A FAMASUL disse por e-mail que, apesar de os seus membros terem adquirido legalmente as suas terras há mais de 50 anos, um “número significativo” de agricultores viu os seus títulos serem postos em causa e 143 propriedades foram invadidas.

“Estas situações são prova da insegurança legal experienciada no nosso estado ao longo de décadas, resultante da ausência de uma resposta definitiva por parte do governo para garantir a paz nas zonas rurais”, disse a FAMASUL.

O relatório da Cimi contabilizou 102 reivindicações de terras apresentadas nas duas últimas décadas. Muitas, segundo o relatório, estavam paradas em tribunal, com os agricultores a preencher os seus próprios pedidos reconvencionais. Almeida diz que a ausência de vontade política provocou a paragem do processo.

O Ministério da Justiça não respondeu aos pedidos de comentário da Reuters.

Reserva lotada

Muitos dos indígenas de Mato Grosso do Sul perderam as suas terras devido à colonização e aos agricultores ao longo dos últimos 150 anos, disse Crizantho Alves Fialho Neto da FUNAI, a agência governamental para os direitos dos povos indígenas.

Durante esse tempo, acrescentou, muitos foram também expulsos pelo governo das suas terras ancestrais e mudaram-se à força para reservas indígenas. Desde 1900, o estado criou oito reservas indígenas, disse, incluindo a reserva de Dourados, a localidade indígena mais populosa do Brasil actualmente, com 16 mil habitantes. “O Mato Grosso do Sul tem uma das situações mais dramáticas de expropriação indígena do país”, disse Fialho Neto.

Sem ligações ancestrais às reservas e sem terras que lhes possam providenciar sustento, muitos indígenas não conseguiram adaptar-se à vida nas reservas e tentaram reaver as suas terras ancestrais, disse o antropólogo Levi Marques Pereira.

“Na prática, estas reservas tornam o modo de vida indígena inviável… Uma vez que o processo para obter o título das terras está parado, a violência tem aumentado nas áreas que estão a tentar reaver”, disse Pereira.

Priscila Maciel Duarte Lopes é uma das pessoas que – depois de ter passado a sua vida na reserva Dourados – se mudaram recentemente para um acampamento na fronteira dessas terras, onde um grupo de indígenas tenta reaver o seu território.

“Não há espaço na reserva para cultivar e ganhar a vida”, disse a índia Kaiowa de 56 anos, acrescentando que os seus antecessores foram enterrados naquelas terras. “Estas terras pertencem-nos… O nosso cemitério está aqui.”

Mas, disse Priscila, que ela e os outros indígenas têm sido vítimas de níveis crescentes de violência, por parte dos agricultores.

“Têm disparado contra nós. Os atiradores não nos deixam descansar”, disse, enquanto segurava seis balas que recolheu depois de um ataque ao acampamento há dois meses e que provocou vários feridos.

Maciel admitiu que estava com medo, mas disse que não ia desistir da Tekoha – uma palavra em Guarani que descreve as terras ancestrais e que significa “um lugar onde podes estar.”

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Pires, o chefe indígena, também sonha com o dia em que a sua comunidade irá usufruir da propriedade total da sua Tekoha. Em 2015, ele e cerca de 160 famílias mudaram-se para algumas dessas terras, com mil hectares, e apenas um quarto da área total que reivindicam como sua. “Temos direito a estas terras. Já foram reconhecidas pelo governo. Não queremos mais conflitos”, disse.

Tradução de Ana Silva