Para vinho novo, odres novos
Bergoglio retomou a verdade do axioma sobre o ecumenismo: Ecclesia semper reformanda.
1. Como diz o físico Carlo Rovelli, a natureza do tempo talvez seja o maior mistério. Estranhos fios o ligam aos grandes mistérios não resolvidos: a natureza da mente, a origem do Universo, o destino dos buracos negros, o funcionamento da vida. A dança a três gigantes do pensamento – Aristóteles, Newton e Einstein – levou-nos a uma mais profunda compreensão do tempo e do espaço: existe uma estrutura da realidade que é o campo gravitacional; esta não é separada do resto da física, não é o palco em que o mundo flui: é uma componente dinâmica da grande dança do mundo, semelhante a todas as outras; interagindo com as outras, determina o ritmo das coisas a que chamamos fitas métricas, relógios e o ritmo de todos os fenómenos físicos. Pouco depois, o próprio Einstein verificou que esta não era a última palavra sobre a natureza do espaço e do tempo [1].
Há mais de dois mil anos, depois de João Baptista ter sido preso, Jesus foi para a Galileia proclamar: “completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-vos – mudai de vida – e acreditai no Evangelho”, se quereis que o mundo encontre a perfeita alegria [2].
Quando S. Marcos escreve isto, já o Espirito de Cristo tinha assumido outro ritmo do tempo: o dos jovens com visões novas e dos velhos renascidos, cheios de sonhos de um mundo outro [3]. Cedo, porém, se deram conta de que o tempo e o espaço das Igrejas não eram um palco em que elas se pudessem desenvolver, puras e santas, sem estranhas interacções religiosas, sociais, económicas ou políticas, desde o Pentecostes até hoje. A necessidade de reformas faz parte da sua história.
Em Novembro de 1950, Yves Congar, O.P. publicou uma obra famosa, Vraies et fausses réformes dans l´Église, que lhe causou muitos e graves sofrimentos romanos. Angelo Roncalli, futuro João XXIII, era, nessa altura, núncio em Paris. Este livro, sublinhado página a página, fazia parte da sua biblioteca. Eleito Papa, recupera o maldito Congar e as suas perspectivas de reforma. É inspirado nele que concebe o Vaticano II, como um concílio de aggiornamento da Igreja no mundo contemporâneo.
O Vaticano I (1869-1870) tinha concentrado tudo no primado do Papa e na sua infabilidade, quando se pronunciava ex-cathedra, em assuntos de fé e de moral. Era tudo resolvido por ele e pela cúria. Pio XII foi o último da famosa série os Pios.
Na preparação do Vaticano II, a herança da Cúria e do chamado “Santo Ofício” tentaram controlar os desvarios de João XXIII. Não conseguiram.
2. Importa saber quais foram as reformas mais importantes deste Concílio. É difícil responder, mas um dos seus historiadores mais importantes, John W. O’Malley, sj [4], propôs um critério: uma reforma é tanto mais importante quanto maior é a resistência que suscita. Nenhuma doutrina ou reforma teve mais resistências do que a colegialidade episcopal do capítulo III da Lumen Gentium. A sua doutrina sublinha que, por essência, os bispos têm uma responsabilidade não só nas suas respectivas dioceses, mas em toda a Igreja quando actuam colegialmente e com o Papa. Reencontrava-se, assim, uma antiga tradição obscurecida pela centralização, quase absoluta, da Santa Sé.
Desde que começou o debate sobre o referido capítulo III, a chamada minoria do Concílio opôs-se-lhe de todas as formas. Quando se sentiu vencida procurou debilitá-lo. Essa resistência continuou, sem tréguas, até à sua rectificação, dias antes do encerramento do concílio. Note-se que até ao pontificado do Papa Francisco, a colegialidade era um ideal que descansava nas páginas dos documentos conciliares. É verdade que o instrumento que Paulo VI tinha pensado para a aplicação do referido capítulo III era o Sínodo dos Bispos. No entanto, o modo como o concebia era mais um instrumento da Santa Sé do que uma aplicação da colegialidade. Apesar disso, o Concílio aceitou-o como expressão da colegialidade, no decreto sobre a função pastoral dos bispos (Christus Dominus nº 5).
3. Até aos dois Sínodos sobre a Família, a que presidiu o Papa Francisco, os sínodos episcopais eram apenas a rectificação dos textos preparados pela Cúria. A mudança foi radical. Ele tinha dito com clareza: nos sínodos, as opiniões devem expressar-se livremente e o documento final deve ser o produto do próprio Sínodo. Houve, de facto, nesses últimos sínodos divergências de opinião e consternação em certos sectores. Daí resultaram muitos ataques ao Papa, acusando-o até de várias heresias, mas apesar desta “desordem”, esta situação, a médio e a longo prazo, poderá ser mais sadia do que um controle rígido sobre o funcionamento dessas assembleias.
Com a colegialidade, o Vaticano II tratou também a reforma da Cúria Romana que, desde o começo, tentou controlar o Concílio. A animosidade da maioria contra o chamado “Santo Ofício”, hoje Congregação para a Doutrina da Fé, levava alguns a propor a sua abolição pura e simples. A reforma da Cúria não estava, inicialmente, na ordem do dia do Concílio, mas logo no final do primeiro período tornou-se claro que os bispos a enfrentariam. As críticas foram duras e exigiam medidas radicais. Paulo VI disse que era normal a qualquer instituição reformar-se de vez em quando, mas deixou isso para depois do Concílio. Nem as suas medidas nem as de João Paulo II tiveram qualquer efeito.
As tarefas empreendidas pelo Papa Francisco têm, sem dúvida, a sua origem na crise actual e nas suas heranças. Mas ao mesmo tempo fazem parte da ordem do dia inacabado do Vaticano II e de problemas que atravessam a história da Igreja. Bergoglio retomou a verdade do axioma sobre o ecumenismo: Ecclesia semper reformanda, a Igreja deve viver em permanente processo de reforma.
A Constituição Apostólica sobre o Sínodo dos Bispos (15.09.018) faz parte desse processo. O seu espírito e as suas normas exigem novas formas de escuta e de representação que matem, na raiz, as tentações de um renovado clericalismo [5]. O Sínodo dos Jovens tem de mostrar, a toda a Igreja, que estamos a inaugurar tempos novos em todos os lugares. Para vinho novo, odres novos. Ninguém espere que vá ser fácil.
[1] Cf. Carlo Rovelli, Talvez o maior mistério de todos seja o tempo, Rev. LER, nº 150, pp 92-105
[2] Jo 15, 11; 1Jo 1, 1-4
[3] Act. 2, 14 -24
[4] Cf. Reforma de la Eglesia. Reflección de un historiador, Selecciones de teología, nº 227, 2018, pp 188-194
[5] Este texto nasceu na celebração dos 21 anos do Movimento Nós Somos Igreja, em Portugal, cujo lema foi Com o Papa Francisco reformar a Igreja, Convento de S. Domingos, 20.10.2018