Fascismo de convicção e fascismo de ocasião
O que sei é que os fascistas de ocasião são tão ou mais perigosos quanto os fascistas de convicção, porque são eles que levam os outros ao poder, para poderem chegar ao poder agarrados a eles.
Uma das perguntas recorrentes sobre a política atual é: olha lá, mas achas que metade dos brasileiros (ou húngaros, ou filipinos, ou estadunidenses) são fascistas? E essa é uma pergunta que é impossível de responder sem perguntar de novo: vocês acham que os italianos dos anos 20 eram todos fascistas e os alemães dos anos 30 eram todos nazis?
Basta ler as descrições da chegada de Mussolini ou Hitler ao poder para perceber que a resposta a essa pergunta não era evidente nem sequer na época em que não se pode negar que o fascismo fosse fascista. Um autor como Sebastian Haffner, que viveu a ascensão de Hitler ao poder e escreveu das análises mais clarividentes sobre o que se passou, não descreve a sociedade alemã dos anos 30, nem sequer o eleitorado do partido nazi, de forma homogénea.
Entre os eleitores de Hitler, havia os que acreditavam em toda a parafernália ideológica do nazismo. Havia os que queriam mudança, mesmo que fosse para ver o circo pegar fogo, e que se escondiam por detrás do aspecto bufão de Hitler (como de Mussolini) para votar nele dizendo acreditar numas partes do que ele dizia e não levar a sério outras partes do que ele dizia. Todos tinham votado noutros partidos antes, como hoje acontece. E havia — como há sempre — os oportunistas, os ex-falhados da vida, os ambiciosos que não tinham conseguido subir as escadas do poder nas velhas estruturas republicanas e que se aproveitavam da convulsão política para se tornarem fascistas de ocasião. Muitos desses até poderiam ter sido indiferentes antes aos temas e lemas do fascismo e do nazismo. Mas se era o que estava a dar, alinhavam no jogo e já papagueavam anti-semitismo, violência e nacionalismo como se fossem o “abre-te sésamo” para o sucesso no novo regime — porque eram, como hoje há quem diga umas tretas sobre as elites, os globalistas, os imigrantes e o Soros e ache que a receita está feita. E mesmo assim Hitler não ganhou as eleições e ainda precisou da pusilanimidade das elites conservadores para chegar ao poder. A partir daí nunca mais houve eleições justas.
Os ex-falhados, oportunistas e fascistas de ocasião são recorrentes entre as biografias dos anos 20 e 30. A começar pelo próprio Hitler, que falhou sistematicamente nas suas repetidas tentativas de chegar à fama como artista — até ao momento em que foi extremamente bem sucedido em levar a Europa à guerra e o seu país à ruína. Para os dois tipos de fascista, tanto o convicto como o de ocasião, as consequências não têm importância. O caos faz parte do plano e sem ele, nada — nem o seu talento, nem a sua capacidade de trabalho, nem a sua trajetória ou a sua obra — justificaria que se lhe entregasse o poder.
O fascista convicto e o fascista de ocasião são duas faces da mesma moeda, ontem como hoje. Bolsonaro é um militar expulso do Exército por incompetência e insubordinação que passou 30 anos como deputado cumprindo com todos os piores defeitos da política brasileira em triplicado (como se não bastasse, meteu dois filhos no Congresso Federal, incluindo aquele que agora ameaça fechar o Supremo Tribunal “com um cabo e um soldado”). Mas por cada Bolsonaro há vinte bolsonaristas de ocasião: como Wilson Witzel, o candidato a governador do Rio de Janeiro que era juiz e que agora sabe que só pode ganhar ao macaquear as posturas autoritárias e violentas do seu mentor (prometeu dar voz de prisão ao seu adversário em pleno debate). Ou como José Ivo Sartori, candidato a governador do Rio Grande do Sul pelo Movimento Democrático Brasileiro (!) que desce à indignidade de alterar o seu nome na propaganda eleitoral para pedir votos em “Sartonaro”, seguindo aliás uma moda comum de agregar o nome de Bolsonaro ao nome de candidatos sem espinha, sem vergonha e sem escrúpulos que querem chegar ao poder no meio da confusão.
O Brasil está hoje cheio de bolsonarinhos, como os EUA estão cheios de trumpinhos. Serão eles fascistas convictos? Quem sabe? É impossível ler-lhes a alma. O que sei é que os fascistas de ocasião são tão ou mais perigosos quanto os fascistas de convicção, porque são eles — e a cobardia das velhas elites — que levam os outros ao poder, para poderem chegar ao poder agarrados a eles. E sei também outra coisa: na Itália andariam de camisa verde e seriam separatistas há uns anos e nacionalistas agora, na Polónia dir-se-iam católicos mas detestariam o Papa, no Reino Unido defenderiam o Brexit mais extremista possível. E, sim: na Venezuela andariam de camisa vermelha e proclamar-se-iam bolivarianos. Muda a estética do movimento mas há um certo tipo de oportunista que é sempre igual e aparece sempre nestas ocasiões.
E atenção, Portugal: no próximo ano também vamos ver alguns destes por cá. Já há sinais de que há quem nos queira pôr a discutir o óbvio — se a democracia, o estado de direito e os direitos humanos valem mesmo para todos ou só para alguns. Eles sabem que não têm talento para mais e que só assim é que conseguem aparecer nas redes e nas notícias. E só há uma maneira de os parar: deixar bem claro que não estamos dispostos a ceder em nada.
O autor escreve segundo o Novo Acordo Ortográfico