Reformas antecipadas? Ou eternamente adiadas?
Pergunta-se: com este regime o ministro Vieira da Silva pretende que os licenciados não possam aposentar-se antecipadamente nunca?
Entre nós, cidadãos, e os critérios com que o ministro Vieira da Silva tem encarado a relação entre carreiras contributivas longas e reformas antecipadas há uma nuvem que se adensa à medida que a legislatura se aproxima do fim. Nos últimos dias, sucederam-se informações confusas e contraditórias acerca da proposta incluída no Orçamento, designadamente quanto a manterem-se ou não as actuais condições de reforma antecipada a par das novas propostas. Recorde-se que Vieira da Silva tinha considerado como carreiras longas apenas as daqueles que têm pelo menos 46 anos de serviço e se inscreveram na CGA ou no regime geral de segurança social com pelo menos 14 anos; ou então as dos que contam 48 anos de serviço. Agora prevê-se a eliminação do factor de sustentabilidade (actualmente 14,5%), mas apenas a quem aos 60 anos de idade contar 40 anos de carreira contributiva. Trata-se de uma situação geradora de desigualdades. Não se tem falado muito dela porque o facto de Vieira da Silva ter afirmado que o regime contemplado no Orçamento seria aplicado em alternativa ao actual concentrou as atenções. A formulação usada no documento é esta: “O Governo aprova a legislação que procede à criação do novo regime de flexibilização da idade de acesso à pensão de velhice.” É portanto suficientemente vaga para comportar duas leituras, e os partidos vão debater a questão.
Uma primeira injustiça
Se ter 40 anos de descontos aos 60 de idade passar a ser a condição de acesso à reforma antecipada (e não apenas condição de não aplicação do factor de sustentabilidade, como inicialmente foi dito), as pessoas entre “61 anos/40 de descontos” e “66 anos/45 de descontos” deixarão em absoluto e para sempre de poder reformar-se antecipadamente. Ou seja, se passarmos a ter apenas este regime, o quadro será de tal modo injusto que o ministro fala agora de uma fase de transição. Mas – note-se – não disse ainda se manteria em paralelo as condições do regime actual. Disse apenas que estas se devem manter na CGA por mais algum tempo.
Uma segunda injustiça
Mas consideremos que em 2019 até se mantém o regime actual, desde logo na CGA. As pessoas que não contavam 40 anos de descontos aos 60 anos terão, tal como agora, acesso à reforma antecipada com os cortes habituais: 6% por cada ano de idade em falta para a idade de aposentação (=0,5% por mês), acrescidos do factor de sustentabilidade. Na prática, e para dar um exemplo, uma pessoa com 63 anos de idade e 42 de descontos terá uma penalização da ordem de 20,5%+14,5%=35%. Entretanto, de acordo com o novo regime constante da proposta de Orçamento do Estado, uma outra pessoa com os mesmos 63 anos mas com 43 de descontos terá, a partir de Outubro de 2019, um corte de 20,5%, com isenção do factor de sustentabilidade. A diferença entre ter 42 ou 43 anos de descontos gerará um agravamento da penalização na ordem dos 14,5% (ou seja, mais de duas vezes os habituais 6% de penalização por cada ano). Incompreensível? Sim, e injusto.
Uma perplexidade
E também não é fácil perceber por que motivo pessoas que têm mais idade e mais anos de descontos ininterruptos serão objecto de um critério mais lesivo (sendo penalizadas pela idade e pelo factor de sustentabilidade), quando comparadas com as que têm 40 anos de serviço aos 60 anos de idade. Com o modelo “40 anos de descontos aos 60 de idade”, os licenciados com 60 anos ou mais não poderão nunca ter a reforma antecipada. Só os que começaram a trabalhar aos 20 anos (enquanto estudantes de primeiro ou segundo ano) preencherão o critério de ter 40 anos de descontos aos 60 anos). E em muitos casos nem sequer esses, pois bastará ter começado a trabalhar um dia depois de ter completado 20 anos para não preencher nunca mais a condição de ter 40 anos de descontos aos 60. Na grande maioria dos casos, será preciso ter começado a trabalhar aos 19 anos para ter direito à reforma antecipada; ou – na interpretação do Orçamento que começou por ser divulgada e Vieira da Silva pôs depois em causa – para não ser objecto da aplicação do factor de sustentabilidade.
Da parte dum Governo que tem insistido (e bem!) na importância da formação de nível superior para o desenvolvimento do país, penalizar a este ponto aqueles que até aos 21 anos estavam a fazer a licenciatura, mesmo se trabalhadores-estudantes, é profundamente injusto. Com o critério “40 aos 60”, a noção de carreira contributiva longa aplicar-se-á apenas a não licenciados, com raras excepções. Pergunta-se: com este regime o ministro Vieira da Silva pretende que os licenciados não possam aposentar-se antecipadamente nunca? É que mesmo os que foram trabalhadores-estudantes podem ter mais idade e mais tempo de serviço que, mesmo assim, serão muito mais penalizados do que aquelas pessoas que têm 40 anos de descontos aos 60 anos. Por outro lado, e aceitando que existe uma relação entre o salário e o nível de formação, resta também saber quantos dos que perfazem 40 anos de descontos aos 60 de idade terão salários que suportem os extensivos cortes previstos, ainda que estes sejam apenas em função da idade.
Não seria possível construir regras em progressividade, e portanto mais justas? É evidente que a antecipação da reforma tem que ser acompanhada de cortes. Mas a este ponto? E que critério é este? A maior parte das pessoas que têm actualmente entre 40 e 46 anos de descontos (excepção feita dos que se inscreveram aos 14 anos) mais não têm visto do que aumentarem-lhes anualmente o factor de sustentabilidade e a idade de aposentação... Na prática, a situação destas pessoas acaba por estar pior agora do que na legislatura anterior. A pretexto de beneficiar alguns, o que o ministro promete é piorar a situação de muitos mais. Só que isto não é mostrado com clareza. Não haverá frustração de expectativas, diz Vieira da Silva. Mas o que propõe sugere que sim, e muito.