O Brasil de novo perdido no seu labirinto?

As dificuldades políticas do Brasil não vão ter fim com a vitória de Fernando Haddad ou de Jair Bolsonaro.

No Brasil, o Partido dos Trabalhadores (PT), com Lula da Silva e Dilma Rousseff, venceu as últimas quatro eleições presidenciais (2002-2006-2010-2014); sabe-se também que de quatro mandatos, os últimos foram atingidos por uma “marolinha” (expressão empregada por Lula para se referir ao baixo impacto da crise de 2008 no Brasil). Em seguida, no ano de 2013, explodiram manifestações massivas, no ínicio motivadas por agendas de partidos e movimentos de esquerda (não é pelos 20 centavos), logo as ruas foram capturadas e novos manifestantes converteram as mobilizações em um fato político “contra todos”, revelando uma insatisfação maior com o sistema político do que com o sistema econômico. Somam-se a isso os ingredientes acrescentados pelas investigações da operação Lava Jato, que, com a divulgação de diversos casos de corrupção, contribuiu para dar volume e características de uma primavera brasileira. O conteúdo dessas manifestações esteve repleto de slogans que demonstraram uma profunda insatisfação do eleitor com o sistema político. Invasão ao congresso nacional e ao Ministério das Relações Exteriores foram momentos representativos do junho de 2013.

Cabe também relembrar que a última vitória do PT, com Dilma Rousseff enfrentando Aécio Neves do PSDB, vencendo de forma muito apertada – 51% contra 48% –, já demonstrava o desgaste de três mandatos consecutivos, oferecendo razões para o candidato derrotado contestar o resultado das urnas e alimentar uma onda parlamentar que levou a Presidente Dilma Rousseff a ser destituída por impeachment do poder executivo brasileiro (367 deputados de um total de 513 votaram a favor de sua destituição).

Na sequência, no bojo da operação Lava Jato, nova derrota para o PT: Lula é julgado em primeira e segunda instância, em um contexto de desconfiança que pesava sobre o sistema de justiça; mesmo assim, é preso e impedido de concorrer a novo mandato presidencial, quando nessa altura gozava de 40% das intenções de voto. Embora o PT divulgasse que não possuía um candidato “plano B”, a campanha “Fernando Haddad é Lula” ganha as ruas e os meios de comunicação e, assim, tem início a nova competição eleitoral no Brasil para o período 2019-2022. Os resultados do primeiro turno colocaram o candidato de extrema-direita, Jair Bolsonaro (PSL), com 46% dos votos, Fernando Haddad (PT) com 29%; Ciro Gomes (PDT) com 12%; Geraldo Alckmim (PSDB) com 4,7%, além de mais nove candidatos que não ultrapassaram a marca de 2,5%, inclusive Marina Silva (1%) (REDE), que na eleição passada havia alcançado a marca de 21% dos votos.

Na turbulenta travessia em que o pleito eleitoral para 2019-2022 se desenrola, após o primeiro turno, três notas são relevantes. Primeiro, há uma profunda mudança em relação aos votos do PT nas cinco regiões brasileiras, visto que nas eleições passadas o PT obteve maioria em três regiões: Norte, Nordeste e Centro-oeste, e neste primeiro turno manteve maioria apenas na região Nordeste, com destaque para o revés que sofreu na região Norte e a forte perda de votos na região Sul. Segunda, a mudança de eixo em relação aos partidos tradicionais da disputa. Desde o período da redemocratização (eleição de 1989), o PT disputou todas as presidenciais, variou quem esteve do outro lado, entretanto, sempre disputando com partidos tradicionais. Nesta eleição, um partido considerado anão, Partido Social Liberal (PSL) de Jair Bolsonaro, grande herdeiro da Lava Jato e das manifestações de junho de 2013, concorre pela primeira vez a uma eleição presidencial e altera o eixo da disputa entre o PT e o PSDB. Terceira, deve-se levar em conta a crise de 2008 para compreender as forças que atuam no Brasil atual, uma vez que os partidos da social democracia não conseguiram convencer o eleitor brasileiro de que o pacto entre desenvolvimento econômico e redistribuição é o caminho mais justo e eficaz. Assim, abriu-se oportunidade para partidos de extrema-direita e partidos ultra-liberais, que desconhecem ou ignoram o pacto social das democracias liberais e propõem políticas públicas polêmicas para enfrentar os novos dilemas do capitalismo.

As consequências dessas mudanças são as seguintes. Primeiro, grandes dificuldades para as narrativas das forças de esquerda e centro se colocarem com êxito na arena pública. Segundo, os partidos e outras forças de direita e extrema-direita inauguram um tipo de luta política que estimula ataques violentos e utilizam com grande sucesso os canais de internet, a ponto de desprezarem as redes de televisão e a participação em debates eleitorais. Terceiro, a formação de um bloco de extrema-direita, que antecede o candidato Jair Bolsonaro, e que se estruturou desde a divulgação dos trabalhos de Olavo de Carvalho (ideólogo de direita), a partir de think tanks internacionais com penetração no Brasil, de ações de movimentos de direita (Movimento Brasil Livre e Vem pra Rua) e de fontes de financiamento obscuras. Quarto, há uma grande perda para os partidos tradicionais de centro-direita: o PSDB e o MDB perderam 39% e 34%, respectivamente, de suas representações no congresso nacional. Num momento em que se esperava mais perdas à esquerda do espectro político, viu-se que o PT manteve grande parte de sua bancada e seguiu como o maior partido do parlamento brasileiro com 57 deputados, perdendo apenas 7% de sua representação. Entretanto, a perda que vem sendo observada está dirigida aos cargos do poder executivo, onde, por exemplo, a taxa de rejeição ao candidato do PT alcança a marca de 37% e corre sério risco de sofrer uma derrota nas urnas. Quinto, ampla renovação do congresso, com grande inclinação à extrema-direita, presença de novos partidos e enorme fragmentação. O Senado teve um dos maiores índices de renovação de sua história, 85%, e a taxa de renovação da Câmara Federal alcançou 43%. O partido de Jair Bolsonaro (PSL), que antes possuía oito deputados, passou a ter 52; o Partido Novo, pela primeira vez disputando as eleições, elegeu oito deputados federais. Com isso, o parlamento brasileiro agravou o seu crónico perfil de país com gigantesca fragmentação da representação política (30 partidos), não só reiterando os problemas de governabilidade como os agravando (ver abaixo).

O que se pode vislumbrar diante desse cenário é que as dificuldades políticas do Brasil não vão ter fim com a vitória de Fernando Haddad ou de Jair Bolsonaro, o que pode gerar uma enorme frustração no eleitor e um possível retorno de grandes manifestações nas ruas, como em junho de 2013. Com Fernando Haddad (PT) pode-se vislumbrar um governo baseado em uma ampla coalizão de partidos, uma vez que é a sua única saída; além disso, o mercado sabe que mantém-se vigente a “doutrina da carta ao povo brasileiro”, pacto que foi fundamental para a primeira vitória do PT. Para um governo de Jair Bolsonaro (PSL), embora conte com expressivo apoio de parlamentares, pode ter muitas dificuldades em negociar a implementação do seu programa e produzir uma governabilidade conflitiva. Nesse sentido, Bolsonaro tem uma posição frágil, assim como Collor de Melo (1990-1992). Então, sendo eleito, ele pode se transformar num Jânio Quadros (1961), culpabilizando o passado, o congresso e a história deixada pela esquerda (PT); além disso, pode justificar uma estabilização política por via da presença crescente de militares em seu governo, indicando um quadro muito conturbado e potencial disruptivo para a democracia.

Os dados da pesquisa World Values Survey – Brasil são importantes e demonstram que a sociedade brasileira avançou em termos de tolerância a questões de gênero e participação das mulheres, mas mantém fortes valores baseados na família e religião. Acredita-se na democracia como forma de governo, porém, os eleitores revelam preferência por líderes fortes, tem baixa confiança em partidos políticos e no sistema de justiça, depositam nas forças armadas a confiança como instituição de equilíbrio para pôr ordem em momentos de dificuldades ou perturbações e também para resolver problemas de governos incompetentes. Talvez por isso, as questões de "lei e ordem" tenham estado no centro do debate político nestas eleições. Nesse Brasil, a população utiliza como canal de acesso à informação sobretudo as redes sociais.

É o passado que, agora como sempre, atormenta os brasileiros: entre 12 presidentes que governaram durante os períodos democráticos, apenas quatro terminaram o mandato. A democracia brasileira está de novo sofrendo algum tipo de golpe. Nessa difícil travessia, corre-se um sério risco de o país ficar perdido no seu labirinto.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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