Tancos não foi remodelado

É fundamental, em nome de um dos pilares da nossa história e da nossa democracia – as Forças Armadas –, insistir num total e cabal esclarecimento do que se passou. Tancos não morreu; Tancos não prescreveu; Tancos não foi remodelado.

1. Saiba Costa o que souber sobre Tancos – e desde o último debate quinzenal, ficou patente que sabe mais do que o que diz –, Costa tem consciência da enorme gravidade da crise de Tancos. Tem absoluta consciência dessa gravidade como, de resto, tinha da gravidade inigualável dos trágicos incêndios de há um ano atrás. Apesar dos diferentes níveis de gravidade, ambos são excepcionalmente sérios e ambos atingem o coração das áreas de soberania: num caso, a segurança de pessoas e bens (segurança interna na dimensão de protecção civil); no outro, a segurança nacional e até internacional (segurança externa na dimensão da defesa nacional). Ambos os casos geraram, portanto, crises – crises longas que perduraram e perduram no tempo – em que há padrões comparáveis de actuação do primeiro-ministro.

2. Na condução da gestão de cada uma destas crises, António Costa usou sempre o mesmo guião: desvalorizar a situação, aparentar que ela tem foros de normalidade dentro da sua excepcionalidade, deslocar a responsabilidade para entidades ou instituições terceiras, manter em funções a todo o transe e a todo custo o ministro fragilizado. A conservação em funções de um ministro debilitado é a última instrução deste “manual de instruções”, mas é decerto a mais importante. Quando a desvalorização não está a funcionar, é o ministro quem absorve as incidências do caso. Quando a banalização ou vulgarização não está a convencer, é o ministro quem responde pela seriedade da situação. Quando já não colhe a passagem de culpas para terceiros – sejam eles os serviços administrativos, a polícia, os militares, o ministério público, os tribunais ou o governo anterior –, o ministro debilitado erige-se em para-raios. O ministro ferido concentra toda a controvérsia e contestação, amparando o Governo no seu todo e servindo designadamente de escudo – de escudo visível – ao primeiro-ministro. Quanto mais frágil está, mais responsável parece e mais imuniza o chefe de Governo e o governo seu todo. Eis o que explica a razão pela qual Costa insistiu até ao limite em que os ministros tocados por estas crises mais graves permanecessem no activo. Fê-lo para lá de toda a razoabilidade e quando muito provavelmente já haviam pedido, implorado e suplicado para sair. Ao contrário da prática reiterada de Costa, em circunstâncias especiais como estas, a muito apregoada solidariedade de um primeiro-ministro passa mais por libertar o seu ministro do que por o prender às suas funções. Ao que acresce, como aqui já se escreveu e tornou a escrever, que a assunção de uma responsabilidade política objectiva em tempo oportuno é, muitas vezes, do mais elementar interesse público. Com efeito, o interesse nacional em nada beneficia de um arrastamento no activo dos responsáveis que não dispõem de condições suficientes para o exercício da autoridade política.

 3. É justamente aqui que Tancos se diferencia da tragédia dos incêndios. Em face da evolução dos acontecimentos, o ex-ministro Azeredo Lopes teve condições para controlar o processo, a partir do momento em que se tornou patente que o Chefe do Estado Maior do Exército optou pela inércia hierárquica, administrativa e disciplinar. Não o fez. Depois deu-se o misterioso aparecimento do material roubado e também não aproveitou para tomar qualquer iniciativa, defendendo e preservando sempre a estranha inércia do chefe militar. À medida que o tempo passa, a responsabilidade hierárquica e militar transfere-se para o domínio político e começou a fazer-se tarde para a não assunção de qualquer medida que representasse uma resposta e uma satisfação institucional e política. Com o adensar da investigação e o aparecimento das suspeitas de conhecimento pelo vértice político, a situação tornou-se mesmo insustentável. É bem verdade que a demissão do ministro Azeredo Lopes surge tarde de mais para ele; mas não é menos verdade que ela surge cedo de mais para Costa. Para Azeredo era tarde, mas para Costa era (e é) cedo. A Costa, a julgar pelo seu padrão e marco de actuação, conviria que o ministro servisse de escudo pelo máximo tempo possível. Basta lembrar que, na crise dos incêndios, na nefasta madrugada de 16 de Outubro, depois da repetição da morte de dezenas e dezenas de pessoas, Costa ainda insistia na manutenção da ministra. O ministro Azeredo saiu tarde, mas quis evitar que a situação chegasse ao patamar do total apodrecimento. E com isso, ao fazer o que já devia ter feito, deixou de desempenhar a função de escudo protector e desguarneceu Costa.

4. É justamente porque a gestão do tempo não correu de feição a Costa que o primeiro-ministro se viu na contingência de fazer uma remodelação de outro fôlego. São muitas as análises e inusitados os louvores – em que agora tão confortavelmente a imprensa e jornalistas se prodigalizaram –, mas a intenção primeira desta operação de remodelação é ofuscar Tancos. É por isso que é fundamental, em nome de um dos pilares da nossa história e da nossa democracia – as Forças Armadas –, insistir num total e cabal esclarecimento do que se passou. Tancos não morreu; Tancos não prescreveu; Tancos não foi remodelado.

5. Duas notas finais. A primeira para perguntar como é possível o Chefe do Estado Maior do Exército estar em funções e o ex-chefe de gabinete do ministro ser ainda um braço direito do Chefe do Estado Maior General? Onde reside a virtude ética e militar destas altas patentes? Que mistério explica que passem incólumes e silentes por todo este transe?

6. A segunda para verberar o modo “personalizado”, pouco digno, por vezes aviltante, como vi tratar o ministro que agora sai. Estou à vontade, porque ao contrário de muitos que agora o apoucaram, fui sempre, aqui e noutros fora, exigente, veemente e contundente nas críticas que dirigi. Os tempos não estão para outra coisa, mas para fazer crítica política não é preciso pôr em causa a inteligência, a cultura, o saber e a probidade (de resto, consabidos) de alguém.

SIM e NÃO

SIM. Santo Óscar Romero. A canonização de Óscar Romero, ao lado de Paulo VI, é um gesto cheio de significado e de força, um programa e uma mensagem. Para os pobres e as vítimas da opressão.

NÃO. António Costa. A forma como o primeiro-ministro, agora com requintes epistolares, tem tratado o líder parlamentar do PSD fere a cortesia e a lealdade parlamentar, merecendo uma clara censura ética.

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