Sexualidade: a escola fica muito melhor quando mostra todas as cores
O dia do coming out, que celebra esta quinta-feira as “saídas do armário”, levou o PÚBLICO a visitar a secundária da Ramada, onde um grupo de alunos passou os últimos dias a colorir os intervalos, tornando a escola num lugar mais inclusivo. Isto na semana em que uma escola do Porto está no centro das atenções por causa de um questionário à orientação sexual.
Esta semana, na Escola Secundária da Ramada (ESR), em Odivelas, os dias começaram com mais cor nos intervalos. “Não é uma escolha, eu sou assim!”, lê-se num cartaz com um arco-íris, ao lado de outro com vários corações e com as palavras “Dia Internacional do Coming Out” e fotografias de jovens gays e lésbicas a beijarem-se.
A iniciativa é dos alunos que fazem parte do Clube ESR True Colours, criado com o apoio da equipa de promoção de educação para a saúde desta escola que acolhe o 3.º ciclo e secundário. No regulamento do clube, o enquadramento é claro: “todas as pessoas têm o direito de se sentir seguras e incluídas e também a escola deve ser um local seguro”.
O True Colours quer ser um espaço para alunos LGBT — Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgénero —, mas também colegas que não o são — os chamados “aliados”. É o caso de Beatriz Batista, de 16 anos, presidente do grupo. “Eu não faço parte da comunidade LGBT”, começa por dizer, acrescentando contudo que quis fazer alguma coisa para apoiar os colegas que são discriminados. Leonor Garcia, de 17 anos, menciona motivação semelhante. “Conseguir que houvesse uma igualdade perante todos cá na escola.”
A direcção do Clube ESR True Colours é composta por seis membros, do 9.º até ao 11.º ano, explica Pedro Loução, de 15 anos, um dos fundadores do colectivo. Alguns apoiantes (os mais novos com 13 anos) juntam-se-lhes nas reuniões na sede. O grupo do Instagram — rede social onde também partilham as suas actividades — conta com 43 membros. Esta semana, lançaram o desafio aos colegas LGBT que queiram fazer parte de um grupo de apoio, “seguro e sigiloso”, para partilharem experiências.
A professora Susana Martins, coordenadora da equipa de promoção da educação para a saúde da ESR, conta que a ideia nasceu no segundo período do último ano lectivo, durante o projecto Embaixadores da Saúde. “Na primeira reunião, em que se falou nas questões de igualdade de género, surgiu um grupo de alunos que voluntariamente se começou a juntar e a dizer que era interessante surgir na escola um clube. E foram as primeiras pedras para a construção desse grupo.”
A proposta foi feita por Beatriz Veríssimo, a primeira presidente do clube. O lançamento foi em Maio, num encontro emotivo em que vários jovens partilhavam as suas experiências como pessoas LGBT. “Viu-se mesmo o ar de felicidade de alguns alunos com a aceitação que tiveram”, recorda Susana Martins, que é docente de Biologia.
No Verão, ganharam um espaço para se reunirem - ocupam metade de um “contentor”, paredes-meias com a associação de estudantes. A escola ajudou com a mobília, mas a decoração, feita com o coração, foi toda dos alunos. O tecto cheio de mãos coloridas, uma das paredes com vários cartazes de apoio, outra que começa a ser preenchida com mensagens sobre o que lhes vai na alma. “Don’t be afraid to show your true colours” — “não tenhas medo de mostrar as tuas cores verdadeiras”, lê-se, com um coração a terminar a frase.
Leonor Garcia, que faz parte do departamento de “socialização” (que organiza eventos com os alunos), descreve as actividades que prepararam para esta semana, que culmina nesta quinta-feira com uma leitura cantada de poemas durante os intervalos. “Na segunda começamos as pinturas faciais, tivemos bastante adesão. Fomos falando com as pessoas, vieram ter connosco, acho que se vê um certo interesse.” Nos placares estão afixadas também as várias bandeiras de cada identidade de género. “Havia montes de gente a chegar e a perguntar o que queriam dizer, houve uma certa curiosidade da parte deles em entender todo o projecto.” “As pessoas estão aos poucos a vir ter connosco”, diz, com um sorriso tímido, a colega Beatriz.
Ainda notam alguns olhares, às vezes comentários. Mas para estes alunos, é com alegria que podem falar abertamente sobre as suas vivências e as dos colegas na escola. Para Carlos Tomás, professor de Biologia, o projecto está a ter sucesso pela forma como foi apropriado com entusiasmo. “Se não houver apropriação, seria mais uma palestra dada por um professor ou um enfermeiro, seria mais uma chatice. O facto de a comunidade e dos alunos se terem apropriado do projecto quer dizer que aquilo pode ter sucesso. Esse é o caminho.”
É possível que o True Colours tivesse surgido de forma espontânea, mas o processo foi mais fácil por haver já espaços onde estas propostas podiam ser colocadas, como as actividades e os serviços de apoio oferecidos pela escola no âmbito do programa de educação para a saúde. No gabinete onde o enfermeiro Alexandre Oliveira atende os alunos, há uma bandeira LGBT na estante, ao lado de folhetos informativos sobre diversos temas relacionados com sexualidade e diversidade. O enfermeiro explica que atende vários alunos LGBT, esclarecendo as dúvidas que têm, mas também orienta pais, mediando processos de coming out quando os estudantes o requerem.
O professor Carlos Tomás aponta o ambiente inclusivo da escola como um dos factores que o motivou a trazer o filho mais velho, que entrou este ano para o 7.º ano. “A escola tem que estar aberta a passar não só informação, mas também uma visão de uma sociedade mais tolerante. É importante que o meu filho saiba reconhecer a diferença como algo a ser respeitado. Satisfaz-me, como pai, que esta escola possa mudar esta visão”.
Temática “não deve ser evitada”
Na semana marcada pelo dia do coming out, que se celebra esta quinta-feira, as questões LGBT foram centro de polémica quando começou a circular nas redes sociais a fotografia de uma “ficha sociodemográfica”, entregue a uma turma de alunos do 5.º ano da Escola Básica Francisco Torrinha, no Porto, em que se pergunta se os alunos se sentem atraídos por homens, mulheres ou por ambos, questionando ainda se namoram ou se já namoraram anteriormente.
Em declarações ao PÚBLICO através do Facebook, uma fonte da associação de pais da escola afirma que o inquérito é “desadequado à idade”, mas acredita que o “tema tomou proporções ainda mais desadequadas do que o próprio inquérito” — até porque “está previsto no programa do Ministério da Educação”, na estratégia nacional para a Cidadania e Igualdade de Género. O representante referiu ainda que já se reuniu com os responsáveis da escola, dizendo que o inquérito não fere susceptibilidades e assegurando a sua confiança no estabelecimento escolar. Ao PÚBLICO, fonte o Ministério da Educação disse que não sabia de antemão da existência do documento, mas “está a apurar informação junto do estabelecimento escolar em causa”.
“Aquilo que ao ver esta notícia nos preocupa mais é perceber, por um lado, qual é a motivação, a intenção por trás destas perguntas. Acreditamos que possa ter sido boa, mas desadequada”, diz ao PÚBLICO Telmo Fernandes, coordenador de projectos da ILGA — Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo. “Já enviámos um pedido de esclarecimento e informação à escola, mostrando-nos disponíveis para colaborar de uma forma construtiva para desenhar estratégias, de forma a que estes assuntos possam ser incluídos salvaguardando sempre a segurança e o bem-estar das pessoas, nomeadamente os jovens que estão neste contexto”, refere ainda o sociólogo.
Telmo Fernandes sublinha que “as temáticas não devem ser evitadas” e que devem até “ser abordadas desde muito cedo, quando se começa a falar sobre identidade, sobre diversidade, sobre as famílias, sobre a realidade humana”. O que pode acontecer já na educação pré-escolar, admite, desde que com uma abordagem adequada, adaptando a linguagem, ferramentas e recursos a cada faixa etária.
“Aquilo que nós sabemos é que a discriminação homofóbica, através de bullying ou outras formas de insulto ou assédio, ainda é uma realidade presente nas nossas escolas”, alerta o sociólogo, que foi um dos responsáveis pelo Estudo Nacional sobre o Ambiente Escolar, elaborado pela ILGA em parceria com a Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto e o ISCTE-IUL. “O que não quer dizer que não existam em geral experiências positivas”. O estudo mostrou que quando existem práticas inclusivas, ou quando se fala do assunto de uma forma positiva nas escolas, aumenta o sentimento de pertença e de bem-estar dos jovens LGBTI. “São provas reais, são evidências que apontam para a importância de não evitar o assunto, mas pelo contrário investir em falar sobre o assunto de uma forma produtiva e construtiva, com ferramentas adequadas para a faixa etária”.
Telmo Fernandes é coordenador do projecto Aliança da Diversidade, que procura criar grupos dentro das escolas para capacitar jovens “para serem mais activos e activas no seu posicionamento nas questões LGBTI” - semelhantes ao Clube True Colours. Estas “alianças” estão desenhadas para o ensino secundário, e já estão a ser criadas, pelo menos, em escolas em Ovar e Ermesinde. Da parte da ILGA, o acompanhamento passa por reunir com os grupos de alunos para explicar a ideia e propor actividades, acompanhar a discussão que geralmente se faz em grupos nas redes sociais e também fornecer materiais como bandeiras, crachás, posters e desdobráveis.
Coming out
Com os nervos à flor da pele, Pedro Loução fez o seu coming out perante os colegas da escola na palestra de lançamento do Clube True Colours. “Estava completamente nervoso, porque estava a falar com pessoas que eu ia ver todos os dias na escola”. Mas a insegurança não durou muito tempo. “Houve pessoas a virem falar comigo, a darem-me abraços de parabéns, outras com palavras de consolo, de coragem”. Coragem, sim, porque Pedro tinha dito aos colegas que naquele fim-de-semana iria finalmente contar ao pai que era gay. “Correu bem”, diz o jovem, sorrindo.
O enfermeiro Alexandre Oliveira sublinha que a questão foi trabalhada antes da palestra, incluindo com os encarregados de educação dos alunos que quiseram falar sobre a sua experiência. “Para fazerem o coming out na escola, tive que preparar os alunos e as alunas em termos de avaliar os riscos, analisar as possíveis hipóteses, pensar em mecanismos de adaptação”, descreve. A intervenção de um profissional tem um peso muito grande, reconhecem os alunos, não apenas pelo apoio especializado — e constante, já que o enfermeiro mantém o telefone permanentemente disponível — mas também por ser um aliado adulto. Apesar de terem encontrado muitos encarregados de educação que apoiaram os filhos envolvidos no clube, Pedro lamenta que ainda haja “muitos pais nesta escola que se calhar são muito mais conservadores.” “Antiquados”, completa Beatriz. “Anacrónicos”, confirma o colega. “E isso às vezes também trava a ideia de as pessoas virem ter com o clube, assumirem-se, serem elas mesmas. Porque os pais não aceitam. E nesse caso têm o enfermeiro para ajudar nesse aspecto”, diz o jovem fundador do clube.
O professor Edgar Oleiro, director da escola, conta que chegou a pensar que poderia ter que lidar com pais indignados pela forma como a escola tratou de “assuntos de alguma forma especiais”. “Nada disso aconteceu, muito pelo contrário. O que nos chegou foi muito positivo”, saúda.
Para o director, a escola não pode deixar que estas dimensões centrais na construção da identidade dos alunos seja um tema tabu, até pela centralidade da aceitação destas “diferenças” na vivência dos alunos enquanto cidadãos. “Nós, escola, temos que cumprir esse papel”, sublinha Edgar Oleiro.
O director da escola admite que tratar abertamente as questões da orientação sexual e identidade de género dos alunos não é simples, ou fácil. Mas relativiza o peso de, por exemplo, apoiar os alunos numa iniciativa num tema que, por vezes, ainda causa polémica: “O risco que eu tive é zero comparado com a coragem de um aluno que chega ao palco e diz que tem uma orientação sexual diferente da norma. Uma pessoa que faz isso tem uma coragem, uma dignidade, uma vontade de dizer a verdade. Olhar para isso é fundamental.” com Claudia Carvalho Silva