Cascais admite expropriar terrenos a quem não possa limpar

O fogo e a acumulação de mato custaram ao Parque Natural Sintra-Cascais 485 hectares. No rescaldo, a câmara de Cascais quer assumir parte da limpeza. Há quem já o faça, criando ilhas de boa gestão.

Fotogaleria
LUSA/RODRIGO ANTUNES
Fotogaleria
Andreia Patriarca
Fotogaleria
Andreia Patriarca
Fotogaleria
Andreia Patriarca
Fotogaleria
Andreia Patriarca
Fotogaleria
Andreia Patriarca

A estrada traça uma divisão evidente. De um lado um terreno florestal livre de mato, com pinheiros de copas altas e pequenos medronheiros, aveleiras e loureiros na base. Do outro, não se vê dois metros para dentro do acacial cerrado, que já esconde o pinhal bravo. Numa área classificada como “Paisagem Cultural” pela UNESCO, parte integrante do Parque Natural Sintra-Cascais, está de um lado uma zona há dez anos gerida pela Parques de Sintra; do outro, um terreno privado sem gestão contínua. E o puzzle repete-se ao longo da serra onde este fim-de-semana arderam 485 hectares. É por isso que a câmara de Cascais vai assumir parte da responsabilidade, limpando e reflorestando o que ardeu e, se for caso disso, partindo mesmo para a expropriação de terrenos cujos donos não tenham capacidades financeiras ou técnicas para os limpar.

Para já, vão ser cortadas as árvores queimadas, deixando-as no terreno para não deixar que a chuva, que se aproxima, levar a terra, garantiu esta terça-feira Carlos Carreiras ao PÚBLICO. Este sábado inicia-se a reflorestação nas terras mais arenosas. Pela manhã, começará uma acção de limpeza dos terrenos e plantação, junto ao Núcleo de Interpretação da Duna da Cresmina, no Guincho. Serão plantadas espécies próprias do parque natural, que a autarquia tem no seu “banco genético” vegetal. “Não perderemos nenhum património natural dentro do nosso território”, garante Carreiras.

O autarca assinou ainda um despacho que proíbe a construção por um período de dez anos nos terrenos atingidos pelo incêndio, reforçando as restrições às novas edificações previstas no Plano de Ordenamento do Parque Natural de Sintra-Cascais. Isto porque, já após o incêndio, a câmara detectou placas a indicar a intenção de venda de terrenos ardidos. A autarquia admite mesmo exercer o direito de preferência sobre vendas que possam acontecer no parque natural.

Quanto aos proprietários de terrenos na serra, a autarquia está já a contactá-los para os informar da estratégia de reflorestação que quer levar a cabo. O autarca admite, no entanto, que alguns poderão não ter capacidade nem técnica, nem financeira para o poder fazer. Nesses casos, disse Carlos Carreiras, a Câmara de Cascais admite tomar posse administrativa, o que não retira a propriedade a ninguém, e, no limite, partir para a expropriação de terrenos.

Este ano, a falta de gestão em determinadas parcelas do parque natural levou as autarquias de Cascais e de Sintra a assumir a limpeza de terrenos privados. Isto não evitou que o fogo se tivesse propagado, mas ambos os autarcas acreditam que, sem essa intervenção, o resultado seria muito mais gravoso. Ainda que Sintra tenha escapado ao fogo, o autarca, Basílio Horta, diz que o município está disponível para colaborar na reflorestação, mesmo em zonas que não pertençam ao seu território.

"Onde não se gere, o combate é impossível"

Este trabalho de limpeza da floresta tem, no entanto, que ser continuado. Não se pode fazer uma vez a gestão do combustível num determinado sítio e não voltar lá para a manter, alerta Nuno Oliveira, director técnico para o património natural da Parques de Sintra — Monte da Lua. “Intervenções pontuais normalmente são desastrosas. As condições ainda ficam piores do que inicialmente estavam”, sublinha. Especialmente quando estão em causa espécies invasoras lenhosas, como as acácias — um dos graves problemas da Serra de Sintra.

Em 2008, os terrenos da empresa pública que hoje gere 1173 dos 14.450 hectares do Parque Natural de Sintra-Cascais eram semelhantes aos matagais vizinhos. A diferença de hoje é o trabalho consolidado dos dez anos que decorreram desde então. Em que se profissionalizou a gestão, se seguiu um plano, se investiu tempo e dinheiro, expõe Nuno Oliveira.

O plano de gestão florestal posto em prática em 2008 é “uma espécie de guião”. Define o que plantar, como e quando controlar os combustíveis. Orienta as prioridades, combinando a protecção florestal contra os incêndios com a conservação da natureza exigida numa área classificada. Cada parcela de terreno tem, por isso, uma calendarização própria, consoante a abundância de chuva, a disponibilidade financeira e os ciclos de vida de espécies animais e vegetais.

A médio e longo prazo o objectivo é que pinhais e eucaliptais — hoje áreas de produção — dêem espaço à vegetação autóctone. “Tem que haver consciência de que a gestão das áreas florestais é um trabalho de resistência, que não se coaduna com período de emergência nem com soluções rápidas”, diz Nuno Oliveira, pois o retorno da floresta nunca é imediato.

Com dois engenheiros florestais na chefia — Nuno e Diogo Pinto —, a Parques de Sintra aloca 40 pessoas para o trabalho na floresta. Cerca de 30 são reclusos. Para todos o trabalho é diário, pago, formado. E não há guardas prisionais.

Fazem quase tudo manualmente: controlo de vegetação e de invasoras lenhosas, desbastes, abate de árvores, plantações. Para trabalhos de maior envergadura — que ocupariam as equipas durante muito tempo — contratam prestadores de serviços.

“É preciso ter alguém com capacidade técnica para tomar estas decisões. Não é que a floresta aqui não arda, mas os bombeiros terão oportunidade para posicionarem meios e atacar. Onde não se gere, o combate é impossível”, afirma o engenheiro florestal. A articulação com os sapadores da Câmara de Sintra — responsáveis pela silvicultura preventiva junto às estradas — e as equipas da Protecção Civil é semanal, assegura.

Este ano a Parques de Sintra viu aumentar em 66% a área florestal em que tem responsabilidades de gestão. O Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), num protocolo assinado em Maio, delegou-lhe a co-gestão de 467 hectares. “E estes estão hoje como estavam os restantes 706 há dez anos”, repara o engenheiro florestal.

E uma gestão deficiente, ou a falta dela, tem, aliás, efeitos visíveis. As acácias já ultrapassam os dois metros de altura num terreno privado contíguo à área gerida pelo Parque, limpo há menos de dois anos. São espécies que crescem e se colonizam a uma velocidade muito superior à da vegetação autóctone. Impossíveis de erradicar. “As acácias produzem milhares de sementes todos os anos e todas germinam. Chegamos a ter mais de duas mil sementes por metro quadrado a germinar. Se cortamos, a acácia tem a capacidade de rebentar de toiça. Ainda rebenta mais forte. Temos que desvitalizar o cepo.”

E nada disto se faz sem dinheiro. Nos primeiros anos, a Parques de Sintra recorreu a apoios comunitários. Agora, estando numa fase de manutenção, menos onerosa, o investimento é próprio. “Capacidade de investimento, gestão profissional, plano estável, vontade de fazer — se algum destes elementos falhar na cadeia isto não vai resultar bem”, diz Nuno Oliveira.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários