O caso da procuradora-geral da República e o mau jornalismo
Mais do que nunca precisamos de um jornalismo independente e inteligente, capaz de resistir aos pequenos fascínios de vários tipos de poderes e pretensos contrapoderes.
1. Para a confrangedora mediocridade do espaço público português contribui em muito a escassa qualidade do jornalismo que por aqui é praticado. Claro que há excepções, tão mais notáveis quanto mais raras. O que predomina, porém, são dois modelos distintos, mas igualmente penosos: o jornalismo de sarjeta, apostado em cavalgar os instintos mais primários do ser humano, e um jornalismo aparentemente mais sofisticado, que oscila entre a crónica mundana da corte política, económica e cultural e a hermenêutica das intrigas palacianas por essa mesma corte geradas. Este segundo tipo de jornalismo é particularmente propenso a todo o tipo de manipulações, provenham elas de agentes políticos, agências de comunicação ou das famigeradas fontes especialmente bem relacionadas.
Na semana passada tivemos um exemplo claríssimo do mau funcionamento desse jornalismo preguiçoso e permissivo a influências espúrias. Na quinta-feira à noite, uma nota da Presidência da República informava o país da nomeação de uma nova procuradora-geral da República. Alguns dos principais jornais nacionais já tinham garantido aos seus eleitores que Joana Marques Vidal permaneceria no cargo, e disso fizeram expressivas manchetes. O que pode justificar tal erro? Uma ingénua confiança em fontes de honorabilidade duvidosa, uma momentânea propensão para a falácia, uma conjuntural incapacidade de prognose? Talvez seja um pouco de tudo isso, mas, a meu ver, é muito mais do que a soma de todas essas razões acidentais. A verdade é que um jornalismo pouco denso e demasiado prisioneiro da superfície dos acontecimentos está naturalmente predestinado a soçobrar perante todo o tipo de manipulações com que inevitavelmente se confronta. No caso concreto das notícias sobre a procuradora-geral da República, é desconhecida a origem e a natureza das manipulações ocorridas, o que tem, aliás, o condão de despertar o entusiasmo da nossa imaginação.
Deveríamos todos aprender alguma coisa com este episódio, começando por aumentar o grau de exigência com a actividade jornalística e com o comentário e o debate políticos. As televisões têm aí uma responsabilidade especial. Nesse domínio, o actual panorama é assaz contraditório, já que convivem excelentes programas de discussão com péssimas formas de transmissão da informação. Causa-me sobretudo preocupação uma notória dificuldade para projectar os acontecimentos na história. Precisamos de um jornalismo menos dependente das chamadas fontes, na sua maioria facciosas, com maior capacidade de análise crítica fundamentada e com um mais elevado grau de independência objectiva.
É sabido que há factores exteriores à vontade dos jornalistas que concorrem para a degradação da qualidade do seu trabalho. Um deles, porventura o mais importante, terá que ver com a concorrência com as redes sociais, esse mundo sem tempo, sem ponderação, sem estudo e sem densidade. Só que é precisamente aí, nessa fronteira e nesse combate, que se vai jogar o futuro do jornalismo e em grande parte o destino das nossas democracias liberais. Mais do que nunca precisamos, por isso mesmo, de um jornalismo independente e inteligente, capaz de resistir aos pequenos fascínios de vários tipos de poderes e pretensos contrapoderes. Esse jornalismo ainda é possível? Tenho a certeza de que é, e a prova disso é que ainda há quem o pratique.
2. Não sei se havia ou não condições ou vantagens em transferir a sede do Infarmed para o Porto. O que sei, como todos sabemos, é que, sem que alguém o tivesse solicitado, o Conselho de Ministros adoptou uma resolução nesse sentido. Essa resolução foi amplamente divulgada como expressão concreta da vontade descentralizadora do actual Governo. Fez-se o anúncio, constituiu-se uma comissão técnica que confirmou a bondade da decisão e estava-se apenas à espera da sua plena materialização. Havia mesmo data marcada para a transferência: 1 de Janeiro de 2019. O processo parecia irreversível. Na semana passada, porém, numa audição na Comissão Parlamentar de Saúde, o ministro da Saúde anunciou a interrupção voluntária deste processo. Nas suas palavras, a situação política teria mudado radicalmente no último ano. Dificilmente se poderia conceber explicação mais abstrusa. Ontem, no Parlamento, António Costa reconheceu alguma leviandade no tratamento do assunto e justificou dessa forma a alteração de posição verificada. Curiosamente, o assunto não suscitou especial reacção na cidade do Porto. De resto, quem formulou a crítica mais contundente foi Manuel Pizarro, o líder distrital do Partido Socialista. É provável que isso signifique que, no fundo, ninguém acreditou verdadeiramente na transferência do Infarmed para o Porto. Há coisas que não mudam.
3. Por falar no Porto, o que se está a passar em Serralves não é uma questão de somenos importância. Se as acusações formuladas pelo director artístico demissionário, João Ribas, corresponderem à verdade, estaremos perante uma situação que põe em causa a credibilidade e o prestígio internacional de uma das principais instituições culturais do país. O assunto deve ser tratado no plano político e, por isso, saúdo as iniciativas do PS e do BE no sentido de serem ouvidos institucionalmente os vários intervenientes na contenda.