A tentação autoritária do poder e a chamada “autonomia” dos museus
Não é só com fogo que se destroem os museus – também se matam administrativamente.
Começam a chegar à imprensa informações sobre a proposta de Decreto-Lei para o "Novo Regime Jurídico de Autonomia de Gestão dos Museus, Monumentos, Palácios e Sítios Arqueológicos", que ditará o futuro de 30 instituições dependentes da Direção-Geral do Património Cultural e das quatro Direções Regionais de Cultura. A 8 de setembro, noticia a Lusa que esta foi "apresentada em junho aos diretores de museus e entidades representativas (...) que responderam com contributos e sugestões para o novo regime". Volvida uma semana, a mesma agência acrescenta que "o novo regime jurídico de autonomia de gestão de museus, monumentos e sítios arqueológicos figura entre as prioridades do Governo estabelecidas na proposta das Grandes Opções do Plano (GOP) para 2019", e que "de acordo com o documento, a que a Lusa teve acesso e que ainda vai ser discutido com os parceiros sociais, em 2019, na área da Cultura, vai ter lugar o reforço dos níveis de investimento, a par de uma gestão sustentada, nomeadamente através do maior investimento financeiro nos organismos tutelados". Para quem, há mais de oito anos, inventa hora a hora meios para manter o mais importante museu português, estas promessas soariam a milagre.
Inexatidões, nas informações tornadas públicas, fizeram, contudo, o pobre desconfiar da esmola. A proposta (concebida em reserva total no gabinete do ministro da Cultura), apenas a 11 de julho (e não em junho) foi desvendada às "entidades representativas", APOM e ICOM, em reunião presidida pelo ministro, como esclarece a informação publicada pelo ICOM, na qual se arrolam os seus "contributos e sugestões para o novo regime". Museus e monumentos, porém, só a 23 de julho (às 19h47) tomaram conhecimento do seu teor, num e-mail endereçado aos seus diretores, não para colher "contributos e sugestões" mas para "conhecimento, com carácter de urgência". É nessa data histórica que o signatário destas linhas tem acesso ao documento, de pouco lhe valendo ser o diretor daquele que o quadro jurídico vigente consagra como "primeiro museu" ou a sua condição de subdiretor-geral do Património Cultural. A carência de conhecimento sobre a realidade dos museus, por parte da estimável equipa que assessorou o ministro da Cultura, poderá explicar as razões que terão levado a prescindir dos seus "contributos e sugestões", não obstante a sua experiência na gestão de um equipamento muito complexo e o seu atrevimento na verbalização (com insistência irritante) da palavra "autonomia", agora com honras de GOP. Mais subtil explicação terá, decerto, a redução das "entidades representativas" à APOM e ao ICOM, excluindo-se, entre outras, a Associação dos Arqueólogos Portugueses (aplicando-se "o novo regime jurídico de autonomia" também a sítios arqueológicos e sendo esta a mais antiga associação nacional de defesa do património).
Às reservas suscitadas pelas "entidades representativas" presentes na reunião de 11 de julho (em especial as da APOM, apoiadas em parecer jurídico) somou-se a rápida resposta do MNAA ao e-mail recebido, perturbando a rota estabelecida. Não cabe aqui enunciar o seu extenso conteúdo, mas insistir na crítica central: no novo organograma, museus, palácios, monumentos e sítios arqueológicos mantêm a condição de "serviços dependentes", ou seja, permanece o regime jurídico actual, incluindo o fiscal, não se configurando, ao contrário do que se proclama, um "novo regime jurídico". Sem autonomia fiscal, não existe autonomia, e a necessária mediação das tutelas em todo o tipo de ato administrativo irá converter o "novo paradigma" numa falácia, fazendo desabar, sobre serviços depauperados e desguarnecidos de recursos técnicos e humanos, uma carga imensa, acrescida de uma desumana responsabilidade. A entrada em vigor do novo DL irá também decapitar 30 equipamentos, projetados de chofre no labirinto dos procedimentos concursais.
A rápida reação do MNAA (e as reservas da APOM e de um ou outro museu) teve por consequência a chamada do seu diretor ao Ministério da Cultura, a 27 de julho. Da reunião saiu a solicitação de um documento "construtivo", que incluísse "contributos e sugestões", entregue a 3 de agosto. Não menos incisivo, sintetizou o teor da resposta precedente, reafirmando a elementar noção de que, sem NIF (o instrumento que, aos cidadãos e às empresas ou instituições, permite ter receitas e controlar processos), a "autonomia" não passará de ficção. A 21 de agosto, recebia o MMNA, por cortesia do ministro, a "nova versão" da proposta de DL, resultante, agora, de contactos vários com "alguns dirigentes, associações representativas do sector, personalidades de reconhecido mérito e competência na área" (qualidades nas quais fazemos fé). Em clara indicação de consumatum est, anuncia-se a entrada "no circuito legislativo muito brevemente". Informou a Lusa, todavia, a 15 de setembro, que o documento "ainda vai ser discutido com os parceiros sociais em 2019"...
Nem tudo é mau, claro (ainda que a entropia atávica da administração pública acabe, certamente, por reduzir a pouco mais do que pó o cenário aparentemente ideal). A proposta de DL abre, finalmente, o recrutamento dos diretores (mas por que não dos conservadores?) ao universo exterior à função pública e mesmo internacional e impõe a obrigatoriedade de consignar às instituições as receitas geradas, como o MNAA sempre reivindicou.
O acesso às modestas receitas que gera (500 mil euros), base essencial da "gestão sustentada" por que se vem batendo, teria salvado o Museu. Tal benefício, acrescido da autonomia jurídica e fiscal (que não tem ónus), teria possibilitado o aumento dos recursos e, passo a passo, permitido escorar o quadro humano, hoje em iminente rotura. Contra tal se ergueram sempre argumentos financistas — os mesmos que agora se esfumam, sem reparos à multiplicação dos cargos dirigentes e à geral (e justa) consignação das receitas geradas. A autonomia (mesmo que não fiscal) é agora para todos, menos para a voz que por ela sempre clamou.
Com espanto, o MNAA vê no novo organograma diluir-se a sua condição de "primeiro museu" e a sua integração num círculo homogéneo de "unidades orgânicas", onde ascende um novo astro: o Museu Nacional de Arqueologia, em associação com os Jerónimos e a Torre de Belém. A afirmação triunfal do presidente do ICOM-Europa (e ilustre arqueólogo) à mesma Lusa, de que "é justo que alguns diretores passem a ser equiparados a subdiretores-gerais, e que se tenha posto fim ao estatuto jurídico especial do Museu Nacional de Arte Antiga", aponta o (des)norte de um processo, no qual várias outras questões causam assombro. Desde logo, que num Estado democrático e numa sociedade aberta — onde, por natureza, deve estimular-se a livre discussão, sobretudo quando se trata de recursos públicos — se arrogue o direito a preservar antigos tiques de autoritarismo, querendo, podendo e mandando a partir da solidão dos gabinetes e tirando partido da desinformação geral e histórico desinteresse sobre a subnutrição das instituições culturais públicas. E contando, claro, com a zelosa aplicação de códigos não escritos que inibem os dirigentes dos tais "serviços dependentes" de fazer alarde das misérias da sua condição, ao invés do que ocorre nos sectores da Cultura que se gerem pelas regras liberais (do teatro à dança, da música ao cinema ou à criação plástica, incluída Serralves, não obstante a amplitude da participação estatal).
Para sustentar-se e proteger-se, o MNAA — cuja diferença de escala em relação aos outros museus é prosaicamente perceptível — pediu apenas o tal NIF e o acesso às receitas próprias, essenciais à sua "gestão sustentada". Mas foi-lhe sempre dito que esses 500 mil euros gerariam fatal desequilíbrio nas contas públicas. Afinal não. Afinal é fácil dar tudo a todos e ficar contente. Só convém perceber que não é só com fogo que se destroem os museus; também se matam administrativamente.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico