Arquivo Municipal de Lisboa, ainda sem eira nem beira
Não se compreende que o Arquivo Municipal de Lisboa continue a ser uma não prioridade em termos das grandes opções de quem dirige os destinos da cidade.
O Arquivo Municipal de Lisboa “tem como missão recolher, guardar, tratar e preservar a documentação relativa à memória da cidade; promover a gestão integrada dos documentos produzidos pela Câmara Municipal de Lisboa desenvolvendo produtos e serviços de informação com o objetivo de satisfazer as necessidades das partes interessadas” e “é um organismo de excelência na promoção e implementação de boas práticas de gestão documental integrada”, diz, e bem, a CML.
Diz ainda, mas aqui já não dá para acreditar, que o Arquivo “ambiciona ser uma referência para organismos da mesma natureza”. E a culpa de não se acreditar não reside na falta de competência(s) ou de entrega ao serviço público dos técnicos e chefias que compõem a Divisão de Arquivo Municipal, o Departamento de Património Cultural ou a Direcção Municipal de Cultura; as sucessivas tutelas imediatamente abaixo do vereador respectivo, no caso a vereadora da Cultura, e, em última instância, do próprio presidente da CML. Não será por eles – técnicos e chefias intermédias – que o Arquivo Municipal continua a ser o que é: um tesouro sem eira nem beira, esquartejado que está administrativa e burocraticamente (arquivos intermédio, histórico e fotográfico, hemeroteca), e apesar dos muitos procedimentos organizativos e ferramentas de trabalho empregues pela CML na sua modernização, e que ajudarão, não se duvida, a manter e a recuperar (espera-se) os milhões de documentos que aquele tem à sua guarda (e que constituem a prova real do que tem sido Lisboa a nível urbanístico, designadamente pelo valioso espólio a nível fotográfico e documental, em papel e digitalizado, de plantas, alçados e projectos os mais variados e referentes a edifícios, espaço público, mobiliário urbano, etc., etc.
Não se compreende, por isso, que o Arquivo Municipal de Lisboa continue por centralizar e dignificar em termos de espaço físico e local, ou seja, edifício e centralidade, ou seja, continue a ser um parente pobre, uma não prioridade em termos das grandes opções de quem dirige os destinos da cidade tendo por horizonte temporal o médio e longo prazo.
A situação é ainda mais revoltante quando se vai até ao lado de lá da estação de comboios de Campolide, nas caves de um edifício do Bairro da Liberdade, para se consultar determinado volume de obra do Arquivo Intermédio (arriscando levar com chuva na sala de leitura...), ou quando se ia ao arquivo liliputiano e sem condições no Bairro do Arco do Cego.
Ou quando se soube do despejo da Hemeroteca do Palácio dos Marqueses de Tomar, só porque sim (no caso para que o edifício ficasse livre para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa), e vai daí a Hemeroteca foi de bolandas “provisoriamente” para umas instalações da CML nas Laranjeiras.
Pior se fica agora quando se ouve dizer que a CML pretende fazer regressar o Arquivo Municipal às torres do Alto da Eira, às célebres torres que há muito deviam ter sido implodidas e os seus moradores realojados em edifícios de que Lisboa se orgulhasse. Inacreditável.
É tempo de a CML no seu conjunto, mas acima dos demais o seu presidente, assumir como prioridade do seu mandato o Arquivo Municipal de Lisboa, tal como o fez no aumento de áreas pedonais e na criação de ciclovias no “eixo central” que vai da Avenida da República ao Marquês de Pombal, por exemplo, ou na aposta da retoma dos eléctricos como meio de transporte público de eleição e na efectivação do Lojas com História.
De preferência, evitando-se a tentação de novas construções, como foi o caso da megalomania que em tempos se gizou para o Vale de Chelas, que iria dar mau resultado e de que se abdicou na hora certa.
De preferência, aproveitando-se edifícios, ou complexos de edifícios, que sejam propriedade da CML ou do Estado (Parpública e Estamo incluídos).
E que sejam edifícios notáveis e por todos conhecidos, com corpo e alma suficientes para a dignidade que a missão, o serviço e a funcionalidade exigem. Edifícios com dimensão mais do que suficiente para os quilómetros de prateleiras necessários, que se localizem na Lisboa central e sejam de fácil acesso.
E, tão importante quanto o que já foi dito, edifícios que pelo seu novo uso signifiquem boas práticas da reabilitação urbana que se deseja em Lisboa, e que permitam externalidades positivas em toda a vizinhança, recuperando habitantes, resgatando comerciantes, atraindo serviços e, porque não, turistas.
Não se precisa de inventar nada, apenas copiar o que de bom já outros fizeram com os seus arquivos municipais: recorde-se o que fizeram em Valladolid, instalando o arquivo num antigo mosteiro; em Madrid, aquando da reconversão de uma fábrica de cerveja; ou em Amesterdão com a antiga sede de um banco.
Dito isto, pergunta-se: em termos de edifícios públicos, haverá melhor solução do que o antigo Hospital Miguel Bombarda?
Trata-se de um complexo de edifícios que pertencem ao Estado, designadamente à Estamo, estão devolutos e a degradar-se ano após ano, sobre os quais paira a especulação imobiliária pura e dura, estando esta à espera da concretização de uma operação de loteamento anunciada há tempos aos quatro ventos, mas que convém anular, sob pena de vermos aquela colina ser coroada de torres imensas a imitar San Gimignano (!), com arruamentos interiores, automóveis em barda, etc.
Trata-se de um conjunto de edifícios notáveis na sua esmagadora maioria, mas em risco de sofrerem alterações profundas, pese embora a protecção administrativa de que alguns deles usufruem por força da classificação de interesse público em boa hora assegurada pela Direcção-Geral do Património Cultural (edifício do antigo convento, pavilhão de segurança e balneário D. Maria II).
São edifícios que toda a gente conhece. Estão bem localizados. Na cidade histórica. Numa zona (a chamada Colina de Santana) muito degradada, crescentemente despovoada e com cada vez menos comércio. Uma zona que importa reabilitar!
E só os edifícios das antigas enfermarias em “poste telefónico” e em “U” chegam e sobram para albergar toda a documentação do Arquivo Municipal de Lisboa, além de que este poderia ainda utilizar parte do edifício do convento.
Acresce que o Arquivo, ao instalar-se ali, juntamente com o Museu de Arte Outsider (actualmente circunscrito ao Pavilhão de Segurança, mas que pode e deve ser futuramente alargado a algumas zonas do antigo convento), o fabuloso Balneário D. Maria II), será um polo cultural e cívico de interesse mais que municipal, nacional.
Espaço livre não falta, ar puro e árvores também não. Há ainda outros edifícios de interesse patrimonial à espera de reabilitação e fruição, como o telheiro da autoria de José Nepomuceno (autor do celebérrimo Pavilhão de Segurança), o pequeno e curioso edifício da antiga morgue e imponente e invulgar cozinha, que dará um espaço de cafetaria de fazer inveja aos museus da Rede Nacional de Museus.
E que bom seria que a par disto se apostasse na reabertura da linha de eléctrico entre o Martim Moniz e Campo dos Mártires da Pátria...
Dito isto, fica um último apelo à Câmara Municipal de Lisboa e ao seu presidente: é tempo de tomar a peito a questão do Arquivo Municipal de Lisboa e fazer dele uma causa de um ou dois mandatos!