Lucília Gago é a nova procuradora-geral da República. Marcelo e Costa acordaram o nome
Sai Joana Marques Vidal e entra Lucília Gago. O nome da nova procuradora-geral da República foi acordado entre o Presidente e o primeiro-ministro, sabe o PÚBLICO, mas a decisão foi mantida em sigilo.
E no final, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa tiraram um coelho da cartola. Contra as expectativas gerais de que a decisão seria a da continuação de Joana Marques Vidal à frente da Procuradoria-Geral da República, o nome escolhido e acordado entre ambos é o da magistrada Lucília Gago.
O PÚBLICO sabe que a escolha do nome foi concertada entre o Presidente da República e o primeiro-ministro debatida e decidida, por mútuo acordo, há mais de uma semana e mantida em sigilo até ao fim. Isto apesar da pressão para que a solução fosse a renomeação de Joana Marques Vidal, que termina a 12 de Outubro o mandato de seis anos, iniciado em 2012. O anúncio do nome da nova procuradora-geral é, assim, assumido antecipadamente para que a transição da pasta se faça com tempo.
A decisão, que surpreende, de mudar a ocupante do Palácio Palmela é, de acordo com as informações recolhidas pelo PÚBLICO, uma solução que corresponde ao que é o desejo e a convicção quer de Marcelo quer de Costa sobre este cargo máximo de liderança do Ministério Público.
Um membro do Governo afirmou mesmo ao PÚBLICO que o primeiro-ministro considera que “a função de procurador-geral da República deve ser de um único mandato, com independência em relação a quem nomeia e de modo a evitar tentações de messianismos populistas”.
Argumentos do Governo
No final do processo de escolha conversado entre ambos, ao ir no início da noite de ontem ao Palácio de Belém fazer a proposta formalmente do nome de Lucília Gago, Costa indicou apenas um nome e não seguiu a tradição de entregar vários para que Marcelo escolhesse. Isto porque a escolha da nova procuradora-geral tinha sido conversada e acertada antes, mas o primeiro-ministro entregou um documento (publicado no site da Presidência) ao Presidente em que argumenta e explica os motivos dessa escolha.
Na argumentação evocada pelo Governo no documento entregue ao Presidente da República tem peso a ideia de que o ocupante máximo da Procuradoria-Geral da República deve cumprir um só mandato de seis anos. A interpretação que o Governo faz é a de que o exercício de um só mandato favorece o respeito pelo princípio constitucional de que a organização do sistema judiciário português assegure um estatuto que permita que os magistrados do Ministério Público tenham “liberdade de consciência e de acção” e que “fiquem protegidos” da “interferência de quaisquer poderes”.
O objectivo é, segundo o Governo, manter o “prestígio” que o Ministério Público adquiriu em quatro décadas de democracia, bem com o “equilíbrio”, a “autonomia interna” e a “organização desconcentrada” que possui. O executivo considera igualmente que só assim se garante a “plena liberdade relativamente a quem propõe, a quem nomeia e a quem possa influenciar a opinião” do Presidente e do primeiro-ministro.
Por outro lado, nas explicações dadas ao PÚBLICO, o Governo salienta que a preferência por um mandato colhe apoio entre magistrados e tem sido defendida pelas estruturas sindicais do sector. Além de ser a tese expressa numa recomendação de 2010 da Comissão Europeia para a Democracia através do Direito, órgão consultivo do Conselho da Europa.
Acresce ainda na argumentação sobre a escolha feita pelo Governo e pelo Presidente que o ocupante do cargo seja um magistrado do Ministério Público com experiência de acção penal e estatuto de procurador-geral adjunto.
Sintonia socialista
A surpresa na nomeação de Lucília Gago é tanto maior quando nas últimas semanas surgiu um movimento que envolveu personalidade e dirigentes partidários de apoio à recondução de Joana Marques Vidal. E chegou mesmo a ser noticiado que o Presidente e o primeiro-ministro iam apostar na permanência da actual procuradora-geral no Palácio Palmela.
Os únicos sinais dissonantes desse aparente consenso surgiram na quarta-feira quando Marcelo divulgou no site da Presidência da República uma nota afirmando que “o Presidente da República nunca manifestou, nem pública nem privadamente, qualquer posição sobre a matéria respeitante à nomeação do procurador-geral da República”.
No mesmo dia e durante as audições aos partidos políticos com assento parlamentar sobre o tema, efectuadas pela ministra da Justiça, Francisca van Dunem, o presidente e líder parlamentar do PS, Carlos César, em linha com o que veio a ser a tese oficial do Governo, reafirmou que só um mandato longo “permite dar maior liberdade a quem exerce o cargo e também uma maior liberdade a quem nomeia o respectivo titular”. E defendeu que o lugar deve ser ocupado por um “magistrado do Ministério Público, preferencialmente um procurador-geral adjunto, com experiência na acção penal”.
Num absoluto alinhamento com a argumentação do Governo, o presidente do PS insistiu ainda na tese de que “o cargo de procurador-geral da República ganha independência sendo um mandato prolongado e único”, tendo afirmado mesmo que “essa orientação e essa doutrina estiveram presentes nos debates que ocorreram aquando da revisão constitucional de 1997”.
Embora César tenha insistido na interpretação da limitação do cargo de procurador-geral a um mandato, a verdade é que no acordo de revisão constitucional assinado pelo PS e pelo PSD a 7 de Março de 1997 ficou escrito que os dois partidos “acordam na definição dos mandatos dos altos cargos de juiz do Tribunal Constitucional — nove anos, não renováveis —, procurador-geral da República — seis anos, sem limite de renovação —, presidente do Tribunal de Contas — quatro anos, sem limite de renovação”.
A tese sobre a preferência por um só mandato surgiu quando a 9 de Janeiro a ministra da Justiça, Francisca van Dunem, afirmou numa entrevista à TSF que “a Constituição prevê um mandato longo e único. Historicamente é a ideia subjacente ao mandato”. Logo nessa tarde, o primeiro-ministro, no debate quinzenal no Parlamento, afirmou que a tese da ministra tinha sido assumida a título individual, mas não a refutou, afirmando mesmo: “Eu, à primeira vista, tenderei a concordar com essa interpretação.”
Costa fez então questão de garantir que respeitava a “autonomia do Ministério Público”, mesmo que isso lhe trouxesse consequências, numa alusão implícita ao cordão sanitário de distanciamento que impôs ao PS a propósito da Operação Marquês e da detenção do ex-líder do PS e ex-primeiro-ministro José Sócrates.
Perante os deputados, Costa aludia a um dos factores de ruído que têm cercado este debate sobre a recondução ou não de Joana Marques Vidal. Isto é, o facto de estar à porta o início do julgamento de José Sócrates, e o afastamento da mulher que à frente do Ministério Público foi responsável máxima pela investigação ao ex-primeiro-ministro poder ser visto como uma retaliação do actual líder do PS.
Ruídos no processo
Mas se o caso Sócrates pode ser visto como um factor de influência política nesta decisão pela parte do Governo, a sensível questão das relações bilaterais com Angola é também apontado como factor de perturbação na recondução. Isto porque o Ministério Público português, no âmbito da Operação Fizz, deduziu, em processo autónomo, uma acusação de prática de crimes de corrupção activa, branqueamento de capitais e falsificação de documento, contra o ex-vice-presidente da Angola Manuel Vicente.
O caso foi mesmo classificado como “irritante” por Costa, tendo criado tensão diplomática entre os dois Estados, apenas sanada quando, contra a vontade do Ministério Público, em Maio, o Tribunal da Relação de Lisboa aceitou enviar o processo para ser julgado em Angola como a defesa pedia.
Também existiram ruídos no processo de escolha emitidos por Marcelo Rebelo de Sousa, nomeadamente em relação à investigação ao desaparecimento de armamento do Quartel de Tancos. A 13 de Julho, no site da Presidência foi colocado um comunicado em que era afirmado que o Presidente tinha “a certeza” de que “nenhuma questão envolvendo a conduta de entidades policiais encarregadas da investigação criminal, sob a direcção do Ministério Público, poderá prejudicar o conhecimento, pelos portugueses, dos resultados dessa investigação”. E concluía: “O Presidente da República reafirma, de modo ainda mais incisivo e preocupado, a exigência de esclarecimento cabal do ocorrido com armamento em Tancos.”