Paul McCartney é um histórico, mas ainda não passou à História
O ex-Beatle não meteu os papéis para a reforma nem se afundou numa poltrona a ver passar os dias. Egypt Station, 17º álbum a solo, diz-nos que a sua lenda ainda está a ser escrita.
Paul McCartney tinha 27 anos quando os Beatles se separaram. Com maior ou menor dosagem do ingrediente Yoko Ono na receita para o desastre, a verdade é que o desconforto entre os quatro músicos há que se vinha anunciando. Não seria fácil sobreviver enquanto grupo ao desgaste provocado pela popularidade desmesurada e irracional daquela época, aos gritos do público que soterravam o som dos instrumentos nos concertos, às constantes digressões que terminaram devido a essa mesma incapacidade prática de serem uma banda de palco sem se ouvirem uns aos outros, ao foco colocado em absoluto na vida de estúdio, na percentagem das composições de cada um que chegavam ao alinhamento final de álbum após álbum e na cada vez mais complicada convivência das forças criativas de Lennon e McCartney.
Já em 1967, recordemos, quando os Beatles preparavam a gravação de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, John Lennon havia alegadamente de desesperar com um bloqueio criativo, enquanto ao seu lado Paul McCartney aparecia com canções magníficas sem acusar falta de ideias. A day in the life, essa obra-prima extraordinária da discografia do quarteto, surgiria, precisamente, a partir de um excerto em que Lennon, a lutar contra a página em branco, se voltava para a realidade (“I read the news today, oh boy”…) na tentativa de encontrar algo de concreto a que dar voz, segmento colado por George Martin em estúdio a um outro pedaço de música criado por McCartney.
O baixista e vocalista tinha, então, 27 anos em 1970, quando os Beatles seguiram caminhos distintos. Em curtíssimos sete anos os fab four tinham revolucionado por completo o ideário pop/rock e inventado a mais absoluta e resistente matriz da música popular global que conhecemos até hoje. Chegados a um álbum de estagnação (no sentido de consolidar e não apontar novos caminhos) como Let it Be – último a ser publicado, mas penúltimo a ser gravado –, talvez não houvesse mesmo forma de continuar. Talvez apenas tenhamos sido poupados a uma decadência em directo ou uma banda de génio a ser cilindrada pela armadilha da repetição.
Embora Lennon tivesse já batido com a porta, foi o comunicado de imprensa de McCartney, o primeiro álbum a solo do baixista dos quatro de Liverpool, a desvendar a ruptura, em Abril de 1970. McCartney foi lançado com escassas semanas de intervalo de Let it Be e no comunicado, de que constava uma entrevista ao músico realizada por Peter Brown (da Apple), Paul revelava que aquele gesto editorial se tratava do início de uma carreira a solo e que o facto de não ser assinado pelos Beatles significava que era “apenas uma pausa”. Mas logo a seguir explicava que essa pausa era motivada por “divergências pessoais, comerciais, musicais” e declarava a sua absoluta descrença em qualquer reactivação da parceria criativa com Lennon.
Os meros seis anos que distam entre Please Please Me e White Album, que esticam para lá do imaginável a linha temporal da ingenuidade pop de I wanna hold your hand ao prenúncio do heavy metal que é Helter Skelter ou à aplicação de técnicas de colagem inspiradas por Stockhausen em Revolution 9, seriam suficientes para garantir a Paul McCartney um lugar de luxo na História da música popular. Mas seria impensável que, uma vez terminada a aventura com os Beatles, qualquer um dos quatro músicos achasse que estava na altura de se retirar e gozar os louros conquistados. Mesmo aos 76 anos, agora que McCartney lança o seu 17º álbum a solo, a ideia de refrear a sua natureza criativa permanece afastada.
Paul McCartney, com oito netos no currículo de vida pessoal, argumentava no último número da revista inglesa Mojo que “o avô não pode simplesmente ficar sentado na sua poltrona com um grande charro aceso e uma garrafa de tequila”. Mas a haver alguém cuja necessidade absoluta de acrescentar títulos à discografia é escusada, esse alguém é certamente o ex-Beatles. A menos que ‘Macca’ tenha dado especial relevância ao facto de, em 2015, numa altura em que fazia estrondo a notícia de que Kanye West e McCartney tinham gravado juntos o tema Only one, ter-se disseminado o tweet em que um fã do rapper escrevia: “quem raio é Paul McCartney ???!?? é por isso que adoro o Kanye, por lançar alguma luz sobre artistas desconhecidos”.
É natural que, para uma geração crescida num paradigma em que o hip-hop se tornou o novo mainstream, a figura lendária de um nome cimeiro na história do rock pouco possa importar. Em sentido inverso, não faltarão miúdos a pegar numa guitarra que ignorem quem foram/são Afrika Bambaataa, Grandmaster Flash ou Sugarhill Gang. Acontece que esse encontro entre Kanye e Paul teve um potencial de revelação que não se ficou pelos seguidores do rapper com o ego mais insuflado do firmamento pop actual. Na mesma entrevista à Mojo, McCartney revela que a experiência de estúdio com West lhe abriu a porta para um tipo de experimentação novo na sua longa e inovadora vida artística. Afinal, em 2018, o homem dos Beatles ainda está a descobrir abordagens de estúdio inéditas no seu percurso – e, lembremos, os Beatles pós-Revolver passaram a ser uma banda de estúdio e que explorou de forma aturada e impensável até então as possibilidades desse circuito fechado de trabalho, abocanhando outras geografias e todo o tipo de técnicas e recursos menos ortodoxos.
Ao ver Kanye West em acção, Sir Paul McCartney convenceu-se de que podia arriscar ir para estúdio sem levar as canções sob uma forma mais ou menos acabada. Em vez disso, depois de ter assistido à forma como o norte-americano esculpira três temas a partir de gravações em que o ex-Beatle balbuciara algumas coisas sem especial nexo ou preparação, quis também abordar o estúdio, num par de ocasiões, a partir de esboços de ideias, pequenos fogachos criativos sem forma definida, um salto para o vazio, tudo à espera de ser inventado sem plano nem grande pensamento prévio.
Pode parecer estranho, tendo em conta as sessões de gravação de álbuns como Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band e White Album, que um processo desta estirpe fosse estranho a McCartney. Mas a música dos Beatles, nos seus arrebatamentos mais experimentais, foi sempre resultante dos abanões aplicados a canções que eram já sólidas na sua chegada ao estúdio. Por outro lado, a memória pode ter apagado algumas das recordações dessas sessões. Até porque também Sgt. Pepper’s, na verdade, acabou por se tornar uma improvável fonte de inspiração para o novo Egypt Station. Em Junho de 2017, numa noite deste longo período de gestação de dois anos, Paul McCartney apanhou na televisão, acidentalmente, o documentário Sgt. Pepper’s Musical Revolution, no qual Howard Goodall desconstrói as canções do álbum clássico de 1967, camada a camada, argumentando a favor da sua genialidade.
E ficou espantado com aqueles miúdos de Liverpool e com a criatividade transbordante que então punham em cada pedaço de música. No dia seguinte, chegou ao estúdio sabendo que queria também um pouco disso para o seu novo álbum.
Trump, May…
Não se espere de Egypt Station uma extravagância instrumental ou lírica comparável à de Sgt. Pepper’s. Mas é evidente que, sobretudo no último terço do disco, Paul McCartney se atira a canções bem mais arriscadas do que a sua reputação (algo injusta) de “Beatle conservador” faria supor. A sombra de Hey Jude, Yesterday, Ob-la-di, ob-la-da ou Let it be continua a pender sobre a sua cabeça, alimentando uma aura de baladeiro, contraditada, no entanto, por criações menos populares mas monumentais como Eleanor Rigby, Got to get you into my life, Helter Skelter, Back in the USSR ou mesmo Blackbird e I saw her standing there.
É inegável, ainda assim, que Egypt Station – título que o músico foi buscar a um quadro da sua autoria, pintado em 1988, de cores garridas – faz todo um percurso que começa por uma sonoridade clássica, de canções inatacáveis, mas que a partir de Dominoes evoca alguma da herança melódica e do espírito desafiador dos Beatles de 1967. Os desenhos vocais de Dominoes poderiam convencer-nos sem dificuldade de que este tema seria uma sobra desse período capital para a história da música, em que Beatles, Beach Boys e Rolling Stones se espicaçavam uns aos outros e se embarcavam num despique criativo que expandiu consideravelmente o entendimento dos limites para uma canção pop/rock. E poderiam convencer-nos também porque a voz de McCartney soa impossivelmente jovem durante toda a canção, como se tivesse conseguido negociar nalguma encruzilhada um momentâneo regresso (de três minutos e meio) aos seus 26 anos.
Nesse bloco final de Egypt Station encontramos, por exemplo, Despite repeated warnings, tema que tem sido amiúde associado a Donald Trump e ao Brexit. Apesar dos repetidos avisos – pode ler-se sem abusos interpretativos –, o populismo grassa em toda a linha, as alterações climáticas são interpretadas como um assunto de fé (tal como se acredita ou não em Deus, também se escolhe acreditar ou não na comunidade científica). “Despite repeated warnings / Of dangers up ahead / The captain won’t be listening / To what’s been said” canta numa invectiva que parece talhada à medida de Trump, para logo em seguida interpelar (talvez) Theresa May ao perguntar “What can we do to stop this foolish plan going through?”
Despite repeated warnings começa enquanto balada balanceada por uma grandiosidade que nos traça uma linha directa para a herança que Damon Albarn colheu na obra de McCartney, para pouco depois soltar amarras deste território e avançar para águas de um rock alimentado a secção de sopros que é impossível não associar aos Wings do estrepitoso Live and let die. Se Albarn é uma presença ausente, também os Radiohead se pressentem no aranque de Caesar rock – antes de McCartney puxar os galões de bluesman-facção-rock, enquanto Back in Brazil, no seu tom lúdico e de paquera com o samba não seria canção para ferir os ouvidos do Beck de Tropicalia. Todas estas peças, alinhadas no último terço do disco, reclamam o autor como criador vivo – infinitamente mais interessante do que o modo piloto automático que ouvimos em I don’t know, Hand in hand, ou People want peace –, ao mesmo tempo que nos lembram como a sua marca autoral se faz sentir de forma tão omnipresente na música britânica (e não só) actual.
… Adele
Claro que se, num passado recente, Sir Paul se prestou a colaborar com Kanye West e (de novo ao lado de Kanye) com Rihanna, Egypt Station também se mostra permeável a essa tentativa de buscar parcerias que lhe permitam editar um álbum em 2018 em que essa circunstância temporal se faça sentir com clareza. Por um lado, ao escolher para produtor Greg Kurstin, co-autor de Hello, de Adele, homem formado no jazz mas derivado de forma muito sólida para a pop, espalhando os seus créditos por álbuns de Lily Allen, Kelly Clarkson, Sia ou Pink – e que está também por detrás de Colors, de Beck. Mais surpreendente ainda, no entanto, é a colaboração do músico de Liverpool com Ryan Tedder, autor que tem composto para Beyoncé, Taylor Swift, Leona Lewis ou Adele.
E o dedo de Tedder não engana: Fuh you é a canção em que McCartney se encontra mais fora de pé enquanto se demora neste Egypt Station. É ‘Macca’ a jogar num tabuleiro pop que não é habitualmente o seu, sem que isso represente uma traição flagrante. Fuh you multiplicado por dez seria um estampanço insuportável. Mas assim que se esvai, dá lugar a Confidante e aquilo que encontramos já não é Paul a tentar enganar a idade, mas sim a deixar que os anos pesem em cada verso de uma canção de recorte folk com que poderíamos esbarrar num álbum de Loudon Wainwright ou Robyn Hitchcock.
Egypt Station prova, sem qualquer ambiguidade, que todos aqueles que viram no título Memory Almost Full (2007) um sinal de que planeava a reforma – na verdade, garante o músico, tratou-se apenas de achar graça à mensagem com que o seu telemóvel Nokia o brindava com fiel regularidade –, foram bem enganados. Egypt Station anda por aí para se certificar de que percebemos que, sendo um músico histórico, Paul McCartney ainda não passou à História.