A European Jazz Conference acabou a virar a atenção para o futuro
No derradeiro dia, a European Jazz Conference, pela primeira vez em Portugal, apontou para o que poderá ou deverá ser o jazz europeu nos próximos anos. Luvas que permitem fazer música, um manifesto pelo equilíbrio de género nos festivais e um apelo programações mais arriscadas – o futuro fez-se ouvir no CCB.
Kelly Snook ainda pensou em ser concertista profissional debruçada sobre um piano a explorar as obras de Bach ou Schumann; e pensou também em ser uma singer-songwriter capaz de partilhar umas quantas verdades sobre a (sua) vida em cada canção. Mas, ao testemunhar na primeira fila a vida dura e instável que o seu pai levava enquanto músico, a primeira hipótese começou a parecer-lhe assustadora e a segunda mais assustadora ainda. E então, aos 15 anos, largou as pautas e entregou-se a um trajecto académico que a levou até uma carreira de cientista aeroespacial na NASA. Só que a música nunca lhe deu descanso. E foi só uma questão de esperar até conseguir cruzar os dois mundos – a investigação científica e a produção musical.
A intervenção inicial no derradeiro dia de debates na European Jazz Conference (Lisboa), que decorreu no Centro Cultural de Belém, Lisboa, de 13 a 16 de Setembro, funcionou sobretudo como provocação e motor de reflexão para os caminhos que a música poderá tomar num futuro próximo, empurrada pelos avanços tecnológicos. Snook acabou por deixar a NASA e mudar-se para Inglaterra, atrás de uma investigação em que persegue o sonho enunciado no século XVII por Johannes Kepler, de descobrir “a música das esferas”, a música constante no sistema solar e que contribui para a sua harmonia e a sua ordem.
No encalço desta ideia, a cientista deu por si a trabalhar com a música Imogen Heap, criando soluções para as pouco ortodoxas necessidades artísticas da britânica. Em particular, para um dos temas do álbum Sparks em que Imogen queria originar música a partir dos seus gestos, Kelly Snook inventou umas luvas (M.Mu Gloves) que captam os movimentos e os transformam em sinais musicais previamente definidos e programados. O interesse gerado por esta ferramenta levou a que fosse procurada por bailarinos ou artistas tão inesperados quanto a estrela pop Ariana Grande.
Neste momento, diz Snook, as suas energias estão concentradas no desenvolvimento de um instrumento inspirado por Kepler, chamado concordia, que descreve como uma combinação de “jogo de vídeo, tocar um instrumento, realidade virtual e conduzir uma nave espacial”, tudo movido pela ideia de criar “um interface muito mais natural para o corpo humano”. A comunicação de Snook foi o aperitivo para um painel da EJC em que a investigadora participou em seguida, onde se debateu de que forma os programadores de salas e festivais (ou seja, os membros da European Jazz Network que aqui se reunia, responsáveis na sua totalidade por 130 mil concertos anuais) devem estar atentos às transformações na indústria da música e às consequências na forma como um novo público com elas se vai relacionando.
Para Scott Cohen, co-criador da plataforma digital The Orchard, é uma questão de os promotores de concertos estarem preparados para responder às expectativas destes novos consumidores de música, cujas balizas para aquilo que um espectáculo deverá poder proporcionar enquanto experiência tenderá (talvez) a afastar-se do conceito tradicional de concerto. Falou-se ainda do streaming como meio vital para a divulgação musical (embora com compensações financeiras irrisórias para os músicos) e de uma demasiado utópica “rede de segurança” assente em mecenas ou em ouvintes que sustentam os seus artistas. Da plateia vieram vozes discordantes, sugerindo que a ideia de um futuro de sentido único a reboque da tecnologia era não apenas enganadora como pouco responsável em termos ambientais. Os futuros podem ser muitos – e não apenas aqueles que assentem que nem uma luva nestes prognósticos que soam, com frequência, a ficção científica.
Manifesto e crítica
E há futuros mais imediatos a que a EJN também se quer dirigir. Daí que no contexto da conferência os seus membros tenham assinado esmagadoramente um “manifesto sobre o equilíbrio de género no jazz e na música criativa”, preparado pela presidente cessante da associação, a britânica Ros Rigby – a quem sucede agora o norueguês Jan Ole Otnaes –, com o intuito de comprometer os subscritores na procura de programar com mais frequência mulheres nos seus festivais e nas suas salas.
Coincidência ou não, o dia da EJC havia de encurtar distâncias entre esse desejo expresso sobre a forma de manifesto e a prática. Após o almoço e o início dos showcases de músicos portugueses que se mostraram aos grandes programadores de jazz da Europa, a Praça Central do CCB daria a oportunidade a um grupo de jovens alunos do Hot Clube de Portugal (com idades entre os 9 e os 17 anos) que participaram numa digressão europeia no âmbito do programa Kids Can 2018. Em cena, a mostrar os seus tenros talentos, quatro raparigas e um rapaz. Exactamente a mesma proporção do Bugge Wesseltoft’s New Conception of Jazz, formação liderada pelo pianista norueguês que, nos anos 90, ganhou notoriedade com um jazz distendido, permeável à electrónica, extremamente melódico e hipnotizante. Ao reanimar este grupo histórico, no Grande Auditório do CCB, Bugge fez-se acompanhar por quatro jovens músicos que apresentou como fulcrais para o futuro do jazz da Noruega (só devido a um impedimento de saúde de última hora, a saxofonista Harald Lassen teve de ser substituída e acabou por trair a tal proporção 4-1).
Numa muito saudável demonstração de sentido crítico, a EJN convidou o jornalista irlandês Ian Patterson, do site All About Jazz, para subir ao palco no final dos trabalhos finais da European Jazz Conference e apresentar uma visão crítica daquilo que se passou nestes dias. E Patterson não foi manso nas palavras, apontando também ao futuro. “Daqui por 10 ou 15 anos”, antecipou, “não haverá mais os grandes cabeças de cartaz que alimentam os vossos festivais”, referindo-se ao inevitável desaparecimento de uma geração de nomes fundamentais para a História do jazz – Herbie Hancock e Carla Bley, ambos próximos dos 80 anos, foram dois exemplos citados – que fatalmente acontecerá nas próximas duas décadas. “Vai ser um período muito interessante.”
Patterson instou, assim, os membros da EJN a correrem riscos na programação, ao mesmo tempo que criticava a ausência de muitos dos delegados na sala do CCB durante os showcases dos projectos portugueses seleccionados para se mostrarem àquele público profissional. “É desolador para estes músicos saber quantos delegados estão aqui em Lisboa e quantos não estão na sala”, comentou. Também Carlos Martins, responsável com a Associação Sons da Lusofonia pela organização portuguesa da EJC, alertaria contra os perigos de “turistificação da conferência”, frisando que o foco deve estar nos músicos e na música.
“Esta é alguma da música mais vanguardista a ser feita na Europa neste momento”, declarou ainda Patterson, citando a actuação do colectivo Axes, composto por quatro saxofones e duas baterias, e liderado pelo saxofonista João Mortágua, como um exemplo da música nova que os festivais deveriam estar a celebrar nos seus cartazes.
Embora na altura faltassem ainda as actuações de Beatriz Nunes Quarteto e TGB (numa tarde em que tocou também o Pedro Melo Alves Omniae Ensemble), os Axes foram também o destaque das apresentações portuguesas para os jornalistas Eray Aytimur e Georgios Voudiklaris, segundo confessaram ao PÚBLICO. Eray, radialista na Turquia, há já alguns anos que acompanha o jazz local, seguindo o trabalho de músicos como André Fernandes e enaltecendo o papel do Hot Clube. Em Axes identifica o “aventureirismo e o experimentalismo da cena jazz portuguesa” que a fascina, em contraste com a imagem que diz perseverar no seu país de que em “Portugal toda a gente ouve fado a cada esquina, com ar pesaroso”. Para o autor do site Artivist, que entrevistou para a rádio grega músicos como Mário Laginha ou Bernardo Sassetti, a recompensa destes showcases passou também “pelas propostas mais inesperadas e desafiantes”, como o grupo de Mortágua.
Lisboa-Novara
Antes de Ian Patterson salientar que a falta de diversidade que encontra na EJN – “todos se parecem uns com os outros”, referindo-se ao perfil de brancos de meia-idade que descreve grande parte dos membros da associação –, Francesco Martinelli apresentaria um dos maiores feitos obtidos sob a liderança de Ros Rigby (que praticamente duplicou o número de membros em seis anos de mandato, cifrando-se agora em 144): o livro The History of European Jazz – The Music, Musicians and Audiences in Context, tomo de mais de 700 páginas com um preço proibitivo (200 euros). A obra coordenada por Martinelli reúne contributos de autores dos vários países do espaço europeu, assumindo-se como um notável documento para o estudo e a investigação do jazz na Europa – e vinca a imagem, como referiu Rigby, de que “o jazz na Europa não é feito de americanos que vêm tocar entre nós e até partilham o palco com alguns músicos locais”.
A História continuará a fazer-se depois desta quinta conferência da EJN – a mais concorrida de sempre – em Novara, cidade italiana que acolherá em 2019 o próximo encontro da associação agora presidida por Jan Ole Otnaes. E reforçando o foco na música que a organização portuguesa quis sublinhar, a noite de sábado terminou não com estas considerações finais e com a simples passagem de testemunho, mas com as actuações de Rodrigo Amado Trio e de André Fernandes’ Centauri, na livraria Ler Devagar, no espaço da LX Factory. Resta descobrir, ao longo dos próximos anos, os efeitos desta exposição dos programadores europeus a mais de uma dezena de projectos portugueses (entre showcases oficiais e programa fringe). A curiosidade, ao menos, parece ter sido seriamente despertada.