O jiadismo clubístico
É interessante constatar que jogadores e dirigentes dos clubes de futebol gozam de um estatuto especial, embora informal, quanto à repercussão social no que se refere às suas condutas criminais.
Enquanto na sociedade, em geral, os políticos estão, em boa medida, desacreditados por todo um conjunto de motivos que vão desde a corrupção até às permanentes promessas incumpridas, os dirigentes desportivos gozam de uma acalmia, senão mesmo, quando confrontados com processos judiciais, de uma grande benevolência.
A sociedade portuguesa a pouco e pouco distanciou-se da política; prefere deixar que outros decidam, argumentando que são todos iguais, o que querem é tacho…
É uma postura de descrença e de abandono do que há de mais nobre na vida em comunidade que é o de participar nas decisões que à sociedade dizem respeito, escolhendo de acordo com as opções de cada um.
Um país onde valha a pena ter uma vida minimamente digna passa certamente pela participação de cada cidadão nos assuntos de toda a sociedade.
Vale a pena confrontar o grau de criticismo em relação aos políticos com o grau de benevolência com que se “absolve” os escândalos do mundo do futebol.
O facto de Mourinho ou Cristiano Ronaldo fugirem aos impostos com milhões e milhões de euros passa quase incólume na vida social. O caso explode. Aparece nos media e morre.
Repare-se na diferença com que o aconteceria em relação a qualquer dirigente partidário que fuja ao pagamento dos impostos devidos, como já aconteceu.
O mundo do futebol que movimenta cada vez mais milhares de milhões de euros aparece como algo à parte de tudo o resto. É o mundo que a partir da paixão pelo futebol se organiza de modo a que os adeptos e simpatizantes vivam uma fé clubística que ultrapassa em muito a menor racionalidade.
Os cidadãos vêem o futebol como algo inofensivo, com a perceção que os jogadores vêm das classes populares e chegam ao topo por mérito; enquanto os políticos são gente letrada que vai para a política para se servir, para enriquecer ou arranjar vencimentos que de outro modo não obteria.
Se Ronaldo, filho de um casal que vivia numa enorme pobreza, singra na vida e ganha muitos milhões, é encarado pela população como um caso de sucesso, não dando grande relevância ao facto de fugir com muitos milhões em impostos.
Porém, se um autarca ou um dirigente da função pública, ou um ministro o fizesse cairia este mundo e o outro.
O futebol, tal como se apresenta hoje, com doses cavalares diárias, em múltiplas competições, está a tornar-se uma nova religião, seguida por bandos de fanáticos, capazes de arriscar o seu emprego e o sustento de suas famílias, para agradar ao seu clube.
O caso E-toupeira que envolve uma acusação grave ao S.L. Benfica é bem reveladora do fanatismo que faz com que simples funcionários judiciais arrisquem a ser presos e a perderem os postos de trabalho; aliás, um deles já se encontra em prisão preventiva há meses. E a troco de umas camisolas, de umas idas ao estádio e tirar umas fotos com jogadores do clube para as colocar no Facebook…
É também interessante analisar o modo como a própria SAD do Benfica reagiu ao despacho de acusação, fazendo de conta que o MP bateu à porta da catedral onde moram os mais ingénuos cidadãos, espécie de anjinhos dos novos tempos, desde o assessor jurídico até ao presidente que recebia mails do referido assessor, mas não o lia, fechava os olhos para não ficar a conhecer as alegadas falcatruas de Paulo Gonçalves…
Há e haverá sempre quem as defenda, façam as direcções o que fizerem, assumindo o clube como uma causa suprema, acima de tudo.
Diga-se que a própria SAD dá esse exemplo mantendo Paulo Gonçalves ao seu serviço, contrariando o mais elementar senso comum. Aparecem agora vários conselheiros retardatários com rolos de kleenex a limparem o SLB do assessor que tão bem assessorava…
A sociedade está já encharcada em futebol e tende a substituir o seu envolvimento na construção de uma vida decente e digna por um amor clubístico que apenas precisa de impulsos primários.
Para construir uma sociedade melhor é necessário um empenho mínimo. Para seguir um clube basta aderir e dar azo às descargas de simples impulsos.
É talvez, por isso, que façam o que fizerem os jogadores e os dirigentes, haverá no plano social uma atitude benevolente, porque eles não são a fonte dos males do nosso viver; são um dos fatores de alienação. De certo modo o fervor religioso foi substituído pelo fervor clubístico e aos novos ídolos tudo se perdoa.