Polémica com Serena Williams: inflexibilidade faz de Carlos Ramos um dos melhores do mundo
A qualidade do árbitro português, que fora dos courts aprecia fado e as obras de Samarago, é amplamente reconhecida pelos seus pares.
Carlos Ramos está incomunicável. Após a turbulência causada pelas suas decisões durante a final feminina do Open dos EUA, o árbitro português optou pelo silêncio, também para não alimentar uma polémica com os seus detractores, norte-americanos ou fãs de Serena Williams, que o culpam pela derrota da experiente jogadora. Nos bastidores do ténis mundial, a larga maioria elogia o trabalho de Ramos, um dos melhores e com mais experiência no circuito profissional.
O currículo de Ramos fala por si: já dirigiu as finais de singulares masculinos (além de outras finais, femininas e pares) nos quatro torneios do Grand Slam (Open da Austrália, Roland Garros, Wimbledon e Open dos EUA), nos Jogos Olímpicos e nas finais da Taça Davis e Fed Cup.
“A pressão é muito grande porque é um encontro muito importante, que todos estão a ver. Não é a mesma coisa que estar no court n.º 14, ao fim do dia, só com os treinadores a assistir. O importante é gerir as emoções, tentar encarar esse encontro como um outro qualquer”, revelou Ramos, em entrevista dada há alguns anos.
Carlos Ramos nasceu em Moçambique há 47 anos e desde muito novo começou a jogar ténis, tendo como tenista favorito John McEnroe. Foi um jogador júnior de nível médio. Começou a arbitrar para ganhar algum dinheiro e essa foi uma via para entrar no ténis de forma mais aliciante, ainda que a paixão pela modalidade estivesse acima de tudo. Tirou o primeiro curso de arbitragem em 1987 e adquiriu o primeiro nível (distintivo branco) da Federação Internacional de Ténis (ITF) em 1991. Pouco depois, estreava-se num torneio internacional além-fronteiras, em Vigo, e, em 1994, obteve o Gold Badge Chair Umpire, o nível mais alto da arbitragem, então só detido por 25 árbitros em todo o mundo. Dez anos mais tarde, passa a integrar o restrito grupo de árbitros ITF/Grand Slam Officials.
Jorge Dias conhece Carlos desde os tempos em que era juiz-de-linha. O primeiro não britânico a dirigir a final de Wimbledon (em 2001) reconheceu-lhe, desde logo, algumas qualidades para ser um bom árbitro: boa apresentação e educação, sabia comunicar bem, tinha bom espírito de equipa, sabia ouvir e gostava de aprender, mas era “sopinha de massa” e quando falasse poderia ser alvo de gozo. “Certo é que resolveu ser operado e lembro-me que teve que aprender a falar de novo. Isto só para demonstrar a força de vontade e a personalidade que ele tinha em querer mudar para ter futuro na arbitragem”, recorda Dias, que, em 2007, viu Ramos suceder-lhe numa final de Wimbledon, aquela em que Roger Federer conquistou o quinto título consecutivo no torneio.
Ao longo dos anos, Ramos foi ganhando experiência e evoluindo ao nível da comunicação, não só verbal, mas também corporal, e foi conseguindo “interiorizar os sentimentos e sensações que, numa situação como a da final feminina, é o mais importante”. “Falar com calma e pausadamente, sem alterações do tom de voz, saber ouvir, mas saber quando interromper o jogador, inclinando-se em direcção ao jogador (para não criar uma separação, mesmo que seja psicológica), levando a mão ao peito. Acho que o Carlos fez todo o possível para acalmar e resolver a situação”, salientou Dias.
Mas Ramos, que há uma dezena de anos pertence ao grupo restrito de árbitros com possibilidades de dirigir uma final do Grand Slam, sabe bem como preparar-se para esses encontros especiais. “Tento antecipar que tipo de encontro vou arbitrar, que jogadores são e se tenho antecedentes com eles. A melhor maneira é adaptar-me ao jogo e encaixar-me como num puzzle. Por isso, é sempre diferente do que uma primeira ronda, o que não quer dizer que seja menos prestigiante. Não entro em estágio como alguns colegas meus, nem tenho superstições ou rotinas”, contou.
Jogadores: os "exigentes" e os "difíceis"
Em relação aos jogadores, Ramos separa os jogadores entre os “exigentes” e os “difíceis”. “Há o exigente, que quanto mais mediático, mais exigente é. E há o difícil porque não é razoável. Não que seja estúpido, mas lida mal com a autoridade e o resultado de algumas situações depende mais dele do que de nós”, explicava na entrevista. E Ramos também conhece as características distintivas de cada género: “Se um homem acha que erraste, pensa que és mau; se for a mulher acha que temos algo contra elas. Elas reagem de forma mais pessoal.”
O estilo de Ramos na cadeira não escapa aos adeptos mais fiéis. Em 2008, foi surpreendido num eléctrico que o iria deixar à porta de Melbourne Park, onde decorria o Open da Austrália. Apesar de cheio, Ramos percebeu que estava a partilhar o transporte com uma claque, todos envergando uma camisa azul, com uma grande letra pintada em branco. Mas não quis acreditar quando viu que a palavra que eles formavam era RAMOS. Foi assim o primeiro contacto do árbitro português com o seu clube de fãs. Ramos, no entanto, foge a toda esta atenção. “As estrelas são os jogadores. Os árbitros só estão ali a prestar um serviço, aos jogadores e ao ténis em geral”, frisa.
Involuntariamente, tornou-se num dos protagonistas da final feminina do Open dos EUA, ao aplicar o código de conduta a Serena Williams por três vezes, a última das quais com um jogo de penalização, que abreviou a derrota perante a sempre composta Naomi Osaka. Os protestos de Serena foram tão intensos e a reacção do público tão ruidosa, que Ramos teve de sair do court antes da cerimónia de entrega de prémios, rodeado pelos seguranças — há uns anos, curiosamente também no Open dos EUA, depois de um encontro com um sul-americano, alguns adeptos do jogador não gostaram de algumas decisões e teve de sair sob escolta. Tudo começou quando Ramos viu o treinador de Serena dar indicações (“coaching”), o que é proibido pelos regulamentos.
“O Carlos fez tudo de acordo com as regras e procedimentos. O problema foi o ‘coaching’. É claro que nunca se aplica o código de conduta à primeira vez que o treinador faz um gesto ou fala, mas tenho a certeza que o Carlos não ‘caiu’ em cima da Williams à primeira vez”, afirmou Jorge Dias.
Isto porque, numa primeira fase, os árbitros são aconselhados a avisarem os jogadores que se os treinadores continuarem a dar instruções, serão penalizados — aquilo a que se chama “soft warning”. Mas nem sempre tem de ser assim.
“O ‘soft warning’ deve ser reservado para quando as instruções do treinador não são nítidas”, disse Richard Ings, antigo árbitro australiano — que assinou um artigo de opinião num jornal da Austrália em que afirma que Serena é que devia pedir desculpa a Ramos. “Carlos não podia deixar passar, tinha que acabar ali e acabou. Penso que Carlos foi brilhante, corajoso e calmo”, frisou Ings.
Após uma segunda infracção, indiscutível, por partir a raqueta, Serena sofreu um jogo de penalização por chamar nomes ao árbitro — uma decisão considerada pelos “analistas” americanos como exagerada. “Carlos tem sido um dos melhores árbitros do mundo desde meados dos anos 90 e tem a reputação de ser rígido mas justo a lidar com os jogadores. A acusação de ‘ladrão’ é uma coisa que nenhum árbitro deve ignorar”, disse Mike Morrissey, antigo árbitro e ex-chefe da arbitragem na ITF.
Pai de dois filhos e a residir em Lyon (França), desde 1996, Ramos mantém a ligação a Portugal através da Internet, seguindo a actualidade e o ténis em particular, sem abdicar da literatura (aprecia José Saramago) e da música (gosta de fado). Faz preparação física, ginástica e jogging, mesmo nas cerca de 26 semanas que passa fora de casa. Neste fim-de-semana, está de volta à Europa para, em Zadar, dirigir a meia-final da Taça Davis entre a Croácia e os EUA.