Maria Filomena Mónica: “Não sou capaz de estar feliz mais de cinco minutos”
“Assim como luto contra o cancro, acho que é preciso lutar contra o vazio e o cinismo em relação aos sistemas políticos ocidentais”, diz Maria Filomena Mónica, 75 anos, recusando-se a baixar os braços, sobretudo intelectualmente. Escreve e isso diz que a salva. Publicou dois livros este ano, acabou outro. Procura o que fazer a seguir. Tem um cancro, mas afirma que não é uma tragédia. E fala disso e de tudo. “Não tenho interditos nem tabus”
Uma mulher está sentada nas escadas de um pátio interior em Lisboa. É um sítio de árvores e plantas com pátios à volta. Um rés-do-chão com o céu lá muito em cima. Da varanda, vê-se pouco mais do que o cabelo grisalho, quase branco, que mexe com a ligeira brisa do início de tarde. Está na sombra do corrimão, o sol aparece finalmente e ela posa para a máquina, obediente aos pedidos do fotógrafo. Quando ele lhe pede para atravessar o pátio, ela hesita. “Não sei se sabe, mas estou doente e qualquer coisa me constipa. Talvez tenha de ir buscar qualquer coisa lá acima.” Arrisca. Está entre a sebe. Teme estar hirta, tensa. Descontrai-se. Maria Filomena Mónica, 75 anos, socióloga, escritora, autora de mais de 36 livros entre ensaio, memória, biografia ou crónica, em que se destacam as biografias de Eça de Queirós ou Fontes Pereira de Melo, as memórias Bilhete de Identidade e, mais recentemente, os volumes Ricos e Pobres (Esfera dos Livros) além das crónicas Nunca Dancei num Coreto (Relógio d’Água), fala de política, da casa, das netas, do trabalho, da doença, de ser de esquerda. “Pergunte o que quiser que eu respondo.” O mote é o que anda a escrever e o que a quase fez parar de escrever. E isso é mesmo quase tudo, porque implica vida e morte. Coisas que lhe dão cinco minutos de felicidade, o máximo de que é capaz. No meio disso percebe-se que não há o mínimo problema em deixar que o instinto comande a conversa. É que na mesa da sala de estar há um livro que faz esquecer qual era mesmo a primeira pergunta: a edição americana de The Plot Against America, de Philip Roth.
Está a ler este livro pela primeira vez?
Estou. Gosto do Philip Roth. Como estava neste intervalo entre ter acabado Os Ricos e pensar no que fazer a seguir, precisava de ler um romance que me tirasse a cabeça das neuras. Pedi um conselho a uma amiga e ela disse-me para ler este e não explicou mais nada. O livro chegou hoje. Li até à página 14. Bastou para ver porque é que a minha amiga o aconselhou, pelos paralelismos com o Trump. Ver como num país com tradições democráticas pode surgir alguém que seja antijudeu que pode transformar a América num país horrível. Mas houve um livro dele que me comoveu muito, Patrimony, sobre o pai. Eu estive bastante deprimida durante a doença da minha mãe. Li o Patrimony a meio da doença, e não é que fosse catártico, mas compreendi o que ele estava a sentir em relação à doença do pai.
Na crónica que dá título a este seu livro, escrita após receber a notícia da sua doença, conta que a primeira palavra que disse foi “não”. Porque acha que essa palavra a define?
Há pessoas que me dizem: “Se calhar inventaste!” Quando eu era bebé, a minha mãe tomava notas. Fui a primeira filha, e para os outros filhos ela não fez isso, mas eu tinha um livro do bebé onde ela conta coisas sobre como eu me estava a comportar Foi lá que li “esta miúda não regula bem da cabeça. A primeira palavra que disse foi ‘não’”. Na opinião dela, eu não regulei bem da cabeça até aos dois, três anos. Mas está lá, acho que define um bocado a minha personalidade. Sou muito adversarial. Mesmo em conversas que são supostas ser doces ou amáveis ou com amigos, tendo sempre a desviar para outro terreno, em que contesto.
Os consensos aborrecem-na.
Aborrecem-me. Isto liga-se com aquilo que estou a pensar escrever, sobre o facto de eu ser portuguesa, o que é que isso significa para mim. Nunca tinha pensado escrever sobre isso. Entrei em 61 na Faculdade de Letras, num clima muito machista. Os meus amigos eram o Vasco Pulido Valente e o José Medeiros Ferreira, e o Zé foi o único que teve a ousadia de falar comigo. Eu era rapariga e eles criavam distância. Provavelmente, eu tinha um ar de não pertencer àquele habitat, porque andava muito bem vestida — a minha mãe dava imensa importância às roupas —, os meus pais não queriam que eu fosse para a faculdade. Quando lá cheguei, senti-me muito isolada. E depois era bonita. Na altura não era míope e passava a vida a chatear o meu pai para me comprar uns óculos para ter um ar mais velho. Fiquei muito desencantada com a faculdade, e esta costela oposicionista estava lá desde os dois anos. A seguir ao 25 de Abril achei que tinha chegado o paraíso a Portugal. Eu já estava em Oxford há dois anos e vim cá em Janeiro de 74 para fazer investigação na Biblioteca Nacional [BN]. A Revolta dos Capitães apanhou-me na BN a recolher elementos para a tese de doutoramento e vieram cá uns amigos meus estrangeiros e acharam que eu tinha um temperamento muito adequado para ir para o Parlamento.
Diz noutra crónica que gosta de discussão.
Isso. E diziam: “Mas tens de ir para um partido da oposição, porque não tens feitio para um partido de poder.”
Nunca levou isso a sério?
Pensei para aí durante uma semana, mas foi na altura em que estava a tentar, com alguns colegas, fazer um sindicato dos professores, e percebi duas ou três coisas: não tenho jeito para a militância, não suporto reuniões e estava na faculdade em reunião contínua no conselho directivo, num lugar de topo, porque eu era a primeira doutorada e Portugal — ia ser, estava quase a acabar o doutoramento — em Sociologia. O Salazar tinha proibido a disciplina convencido de que era uma disciplina de esquerda. Percebi que o que me interessava era mesmo estudar e saber. Acabei por nunca me filiar num partido.
Mas há um impulso para desobedecer.
Há. Se há uma ordem, eu desobedeço. O António [Barreto] diz que eu nunca começo uma conversa normal sem dizer não.
E esse “não” aparece na crónica sobre a doença.
À doença não posso dizer que não, infelizmente. Mas tanto quanto possível, não quero viver a partir da doença. Sim senhora, tenho um cancro, não me importo de falar disso, é um cancro relativamente raro e incurável. O que não quis desde o início foi ficar na cama a reflectir sobre a desgraça. Foi uma decisão instintiva. Não foi coisa que passasse pela minha razão. Tenho 75 anos, na altura tinha 71. Não era trágico. Se eu tivesse 17 anos seria trágico. Já tinha uma vida. Acho que nem chorei. E como a única coisa que não queria era perder a razão e ter Alzheimer, como a minha mãe, o médico ficou muito espantado e disse: “Ah, você é tão fria! Nunca vi ninguém reagir assim a um diagnóstico.” Respondi: “Sim, sim, senhor doutor”; com o médico tenho uma grande distância e cerimónia, porque percebo que ser oncologista é difícil; eles não se podem aproximar demais dos doentes. Tenho muita familiaridade é com a enfermeira que me trata. Mas depois fiquei um bocado abatida, especialmente nos primeiros quatro meses a quimio era muito forte, e era semanal; a maçada de lá estar cinco ou seis horas a injectarem-me veneno não era agradável, mas não me quis deixar ir abaixo.
O trabalho continuou.
Acho que o trabalho me salvou. Mesmo agora não posso ficar muito tempo sem começar a escrever, senão não saio da cama.
Chama “sismo” à doença.
Foi um abalo telúrico na minha vida [risos]. E foi por acaso. Não tinha sintomas, não tinha um tumor, nada, fui ao médico de clínica geral e ele olhou para as análises. Passava-se alguma coisa. Mandou-me repetir, não me quis assustar e enviou-me a um especialista de hematologia porque ia precisar de um acompanhamento do foro oncológico. Assustei-me; percebi. Ele disse que não me preocupasse, que seriam quatro meses de quimio e que faria a vida normal. Não foi bem assim; foram três anos de quimio, mas começou depois a ser mais leve, e o progresso da medicina é tão rápido... Parei, há seis meses que não faço quimio. Toda a gente achou que me ia cair o cabelo e quando me encontram dizem: “Mas tu não tens nada cara de ter um cancro.” Eu brinco, digo, “não, é uma pose!”. A maior parte das pessoas acha que sou muito exibicionista, mas eu acho que não sou exibicionista, acho que sou, se calhar, um bocado excêntrica: não me caiu o cabelo. Isso dá algum consolo. Percebo que as mulheres que perdem o cabelo fiquem tristes. Determinei que se o cabelo me caísse não usaria turbante. Rapo o cabelo e ando tal e qual. Não, ando com o cabelo rapado e se virem que tenho um cancro, tenho um cancro. O cabelo ficou fraquinho.
Sente que continua a haver um interdito em relação ao cancro?
Sim, até há muito pouco tempo dizia-se “morreu de doença prolongada”. Não quero exibir o cancro e não o quero esconder. Não sei explicar os motivos, mas o que está ligado ao cancro é uma conotação muito negativa e trágica. Há pouco estava a tirar fotografias com medo de apanhar uma corrente de ar, porque o médico me disse que iria ficar sem sistema imunitário e o mais provável é morrer de pneumonia e não do cancro. Estar tão doente teve outra consequência aborrecida, mas q.b. Não consigo psicologicamente sair de Lisboa. Não fiz férias porque quero estar mesmo perto do hospital. Já caí duas ou três vezes. Este cancro, como é na medula, rói os ossos por dentro, e estou muito frágil. Agora tenho muito cuidado, por exemplo, a subir as escadas. Tenho receios e quando era saudável não tinha.
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Ficou o Verão em Lisboa.
Fiquei. Não é isso que me custa, o que me custa é não ter ido para Oxford. Desde meados de 80 até estar doente, passava sempre três meses de Verão em Oxford. Não gosto de calor. Quando tinha os filhos pequenos, gostava de ir para a praia, e o meu marido detesta praia. Mas adorava estar em Oxford, fazia-me muito bem intelectualmente, porque tinha a melhor biblioteca do mundo. Agora com a Internet a coisa melhora um bocadinho, mas andava de bicicleta, o meu colégio era muito perto de um prado grande, o Port Meadow, que nunca conheceu fertilizantes e é enorme. Tinha uma vida muito saudável. Era bom porque tinha a parte da natureza e a parte intelectual. Fiquei lá com dois grandes amigos dos tempos de Oxford, amigos de 71. Um deles, o Gabriel Gorodersky, ajudou-me a prosseguir em Oxford sem medos. Quando lá cheguei, achava que estava num estado tal de analfabetismo que era atrasada mental, não tanto porque não tivesse potência para fazer estudos, mas treze anos de colégio de freiras tinham-me deixado totalmente analfabeta, mesmo em matéria teológica. Depois quatro anos como aluna voluntária — agora seria trabalhadora-estudante — na Faculdade de Letras não me ensinou nada. Não sabia nada de filosofia. Fui para Oxford com uma bolsa da Gulbenkian e quando cheguei tinha imensa vergonha de ser tão analfabeta. Não falava com ninguém, para eles não perceberem que eu estava burra; e eu não tinha a certeza se era mesmo burra de nascença ou se era o país que me tinha feito burra. Faltava verificar. Esse meu amigo disse-me: “Estás parva! Ainda não conheces Oxford. Metade das pessoas que são aqui professores são analfabetos e burros e estúpidos.” Desmistificou a universidade. Oxford não era assim o eldorado onde eu nunca poderia ascender. Se eu trabalhasse, ascendia. Eu tinha 26 anos, a maior parte dos alunos tinha 21, 22 anos. Sentia-me deslocada. Para eles, a ideia de que eu era divorciada e com dois filhos era ainda mais estranho. Acho que foi o momento mais doloroso da minha vida, não ter estado com os meus filhos lá. Mas o trimestre era curto. Oito semanas muito intensas. Eu estava lá durante oito semanas, depois vinha para Lisboa e estava com eles. Mas tive muitas saudades. Eram pequeninos, tinham sete, sete anos.
Quando o médico sugere que é uma mulher fria...
Pois, mas eu não quis desistir. Não acreditei que tivesse a bolsa e se não aproveitasse aquela oportunidade... Não deixei o meu marido por outro homem. Trabalhava e estava a estudar e achei que precisava de conhecer outro país e outra cultura. Isto era um bocado inconsciente, mas não queria estar limitada a um país machista que não valorizava nada, e numa classe social que desvaloriza a cultura, porque na família nunca ninguém ligou nada aos meus estudos. Achavam que eu era maluca.
Pertencia à chamada “elite”.
Mas a elite não preza a cultura, preza o sangue. Isso continua. Sei que a elite de que estou a falar é bastante reduzida, mas se julga que se preocupam com os estudos dos filhos engana-se. Digamos que metade se preocupa, porque apesar de tudo estamos no século XXI. Raramente os encontro.
Que elite é essa?
São os que viveram comigo todos os Verões em Cascais. Pertenciam a um clube muito restrito, a Parada, a que os meus pais não pertenciam, mas aonde eu ia com uma amiga, cuja mãe era sócia. Tenho uma irmã, logo a seguir a mim, a Isabel, que manteve sempre laços. Éramos duas irmãs casadas com dois irmãos, e a Isabel conta-me histórias. Sou amiga de alguns que pertencem à grande fidalguia portuguesa. Se são melhores ou piores que os novos-ricos? Não sei. O Belmiro [de Azevedo], por exemplo, pôs os filhos a estudar bem. Mas a cultura para estas pessoas não é muito importante. Um amigo que foi ao lançamento de Os Ricos disse-me que gostou imenso e que só tinha lido um livro na vida, mas disse aquilo com enorme naturalidade. Não têm complexos. No início, alguns achavam que eu era comunista. Depois devem achar que sou traidora à minha classe social de origem, mas nunca me senti ostracizada por não pertencer à Parada, nem depois do 25 de Abril, embora saiba que eles não gostaram das minhas atitudes políticas e acham que estou muito à esquerda. Eu sou de esquerda e sou de esquerda em parte porque não gosto da direita social.
Foi de esquerda só por espírito de contradição?
Não. Haverá parte disso, mas tornei-me de esquerda aos 14 anos, muito cedo, como uma reacção à visão da pobreza.
Conta isso n’Os Pobres.
Sim. Eu estava num colégio de freiras, mas não era interna, vivia na [Rua] Rodrigo da Fonseca. Éramos umas dez meninas e disseram-nos que iríamos visitar uns pobres à frente do Liceu Francês. Eu não queria acreditar que existiam miúdos como vi, que não iam à escola porque não tinham sapatos. O meu bairro era tipicamente da classe média, não era misturado, e fiquei tão indignada. Não quero viver numa sociedade em que exista esta desigualdade social tão gritante. Eu não era capaz de dizer isso na altura. Percebi que muitos dos meus amigos e amigas então achavam que era normal. Dá-se um cobertor no Natal. Eu dizia que isso não resolve. Cada um tinha um pobre. Eu tinha uma pobre, a Adriana, e o filho da Adriana não só não tinha sapatos como a Adriana tinha o marido preso por ter roubado para aí dois pães, sei lá, um delito menor. Tudo aquilo me indignou. Nessa altura eu não conhecia outros países, mas não me revia no Portugal daquela época. Foi aí que decidi que iria lutar por uma maior igualdade social. Isso não me fez ir para a política. Fez-me ir para a universidade e para Sociologia. Não estou arrependida das minhas opções. Sempre votei PS e só não voto agora porque eles não mudaram a Lei Eleitoral e não gosto desta lei, mas tive muitos colegas e amigos que eram de extrema-esquerda e que, com a idade, têm feito um percurso para a direita. Eu não. Acho que estou mais ou menos no mesmo ponto em que estava. Não quero viver num país, onde nasci, que se compraz com esta situação social, em que há pessoas que não têm o que comer, que não têm casa digna onde habitar. É uma sociedade muitíssimo injusta.
Chama a estas crónicas “uma escrita efémera”. É a escrita dos jornais, mas tem outra experiência, a das memórias, a da biografia, o ensaio, a escrita com mais tempo. Em qualquer dos casos, quase sempre se expõe.
O jornalismo ajudou-me imenso na academia. Ajudou-me num estilo mais claro. Preocupo-me que as pessoas entendam o que estou a dizer. O facto de eu ter alguma cultura geral que vem da academia ajudou-me no jornalismo. Quando escrevo que ia a sair de casa e encontrei um passarinho, não estou a falar de um episódio sem significado. Tento é pegar num pormenor e ver se daquele pormenor posso falar de um problema mais geral. Se encontro um menor a viver numa cabana e que é abandonado por todas as instâncias da assistência social, posso falar dele e da vida dele, mas depois tenho de abrir a lente e falar do problema estrutural. Acho que a academia e o jornalismo se podem casar muito bem. O jornalismo ajudou-me muito a sair de uma espécie de jaula que é o jargão académico.
E o modo como se expõe?
Escrevi a biografia [Bilhete de Identidade] em Oxford e lá era a coisa mais normal do mundo. Quem me inspirou muito foi a Mary McCarthy [escritora americana, 1912-1989], uma esquerdista com background católico. Ela escreveu duas memórias e perguntei-me: porque não fazer isso? Ela não tinha uma formação em Sociologia e eu tinha. Eu era capaz de analisar coisas no Portugal dos anos 30 ou 40 através dos meus óculos sociológicos e falar de mim, tentando mostrar como era a vida. Eu não queria exibir-me. Queria que o livro fosse bem escrito. Isso era prioritário. Estava à espera de que o livro causasse algum escândalo, ou que houvesse pessoas que se zangassem comigo, mas — e aí devia ser um bocado burra — as pessoas que eu estava a pensar que poderiam reagir ma, reagiram bem, e as que eu estava a pensar que iam reagir muito bem reagiram pessimamente; mas não me arrependo de ter a escrito. A biografia do Fontes Pereira de Melo não causou reacções porque era a primeira biografa dele, e a do Eça de Queirós causou reacção entre os queirosianos, coisa para a qual estou mais ou menos nas tintas. Eles têm uma coutada e vivem da coutada. O que é que esta outcast vem para cá escrever sobre o Eça?! Quanto ao resto dos livros, gosto de fazer biografias. Gosto mais agora de falar sobre as pessoa, do que sobre as estruturas, ou a sociedade em geral.
Ainda não me falou da exposição pessoal que implica a exposição das pessoas que lhe estão próximas.
Do António estou proibida de falar! Tenho de ter imensa cautela. A única coisa que posso dizer é “o meu marido chama-se António Barreto”. Ele não quer, é muito reservado, e acha que este tipo de atitude não é louvável. Cumpro. Ele tem aquele feitio, eu tenho outro feitio. Falo de mim com grande facilidade.
Não faz autocensura?
Não. Nenhuma. É verdade que isso deriva de eu ter 75 anos, sei que vou morrer muito em breve.
Mas tinha muito menos quando escreveu a autobiografia.
Sim. Não me custa expor-me, mas como eu disse queria ter um livro bem escrito em que usasse também o que eu sabia da Sociologia. Escrever como era a Rua Rodrigo da Fonseca, as fachadas da direita e da esquerda, socialmente se eram iguais ou não, ou como é que o Salazar via as mulheres... E falar de mim não me custa, vem-me naturalmente. Tenho pena de que isso às vezes fira as pessoas, e desde que publiquei o Bilhete de Identidade que estou mais atenta aos efeitos. Nalguns casos não estava à espera de que fossem tão violentos. Um dos problemas foi tentar explicar aos meus irmãos que a minha mãe era uma figura poliédrica, que a minha relação com ela era diferente da relação de cada um deles com ela. E não estava à espera de que eles se sentissem feridos, mas sentiram e sofro com isso. Mas se me perguntar se me arrependo, não.
Escreve no prefácio que estas crónicas são comentários sobre os seus dias. Outra vez o registo pessoal. Como é que prepara estes textos?
É. Sou relativamente disciplinada e ansiosa. Pego naquele papel que está ali, tiro uns apontamentos, penso no que poderei falar, ponho cinco ou seis temas. Vou riscando alguns. Tenho de entregar os textos à quinta, escrevo à terça, mas já tenho de ter a coisa bastante elaborada na cabeça. Como agora não saio e não tenho vida social, isso permite-me ter um controlo maior sobre o meu tempo, já não tenho filhos nem netos pequenos com pequenos acidentes. O único acidente que tenho é o meu corpo, se amanhã tiver de ir ao hospital por qualquer razão, não faço a crónica. Mas tendo a ser disciplinada e a não deixar até ao último dia. Há temas em que me custa meter porque são muito especializados.
Economia.
Economia nem pensar! Uma coisa em que sinto que a doença se agravou muitíssimo é na minha relação com os números. Tomo uns 20 comprimidos por dia e penso que isso me afecta a memória. O que é curioso é que não afecta a memória quando leio o Philip Roth, mas afecta a memória dos números.
Há, apesar disso, uma dispersão temática. Tudo lhe interessa?
Quase tudo, sim. E sou curiosa. Mas o que me interessa mais são as pessoas, e as pessoas com quem contacto. Desde que estou doente que só vejo dois amigos, praticamente. Hoje vou jantar com uma amiga, o que é raríssimo, ainda mais agora que sou vegetariana, que é uma coisa que nunca pensei ser.
Porquê?
Porque comecei a ter imensas infecções. Eram infecções recorrentes, os antibióticos não faziam nada e a enfermeira quis saber da minha alimentação. Eu não cozinho, nem o meu marido.
Não cozinha porque não sabe.
Nada, zero.
Mas fala da cozinha. Numa das suas crónicas sobre tribos sociais diz que as famílias se distinguiam pelas que seguiam as receitas do livro de Maria de Lurdes Modesto das que iam pelas do livro da Isalita.
É engraçado observar quão fundo vão as diferenças sociais. Comecei a pensar nisso ao ler um livro da Nancy Mitford [escritora inglesa, 1904-1973]. É muito notório nos vocábulos. Dentro desse grupo de Cascais, as pessoas não diziam “vermelho”, diziam encarnado. Há uns dez anos, já depois de ter publicado o Bilhete de Identidade, almocei com um amigo antigo, da Granja, o equivalente no Norte a Cascais, e disse-lhe que tinha passado um sinal vermelho, e ele: “Mas tu agora dizes vermelho!” E houve três coisas que ele me corrigiu num almoço! Sim, e lá em casa havia a Isalita e todas as amigas tinham a Maria de Lurdes Modesto como referência.
Noutra crónica refere, a propósito da releitura de O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald: “Tenho andado a pensar nos ricos e percebi que, mais do que inveja, me causam perplexidade.”
Não percebo o que se faz com salários de 400 ou 500 mil euros! O que se compra? Depois de ter uma casa, um iate, uma mulher muito abonecada ou um homem também abonecado, algumas obras de arte que são investimentos... Sei que há o sentimento da ganância, mas o prazer que se retira de ganhar salários elevadíssimos, ou, pior ainda, de herdar uma fortuna causa-me perplexidade. Imagine que amanhã me caem dois milhões de euros em cima! Eu ficava um bocado baralhada. Primeiro, sendo iletrada do ponto de vista financeiro, não saberia investir. Nem sequer nos torna muito felizes. Se calhar, sobretudo para os homens, o dinheiro é uma maneira de lhes dar uma imagem muito positiva deles próprios.
Tem que ver com virilidade?
Tem que ver com “eu sou uma pessoa melhor do que os outros que ganham menos”. Mas acho que isso acaba por se desfazer passados dois meses. Olhar-se ao espelho e dizer que se é bestial deve fartar.
Conta que o seu pai lamentou não lhe deixar nada.
Ele ficou muito triste porque tinha herdado do pai dele e se tinha arruinado. Não dei por isso porque foi na altura em que me casei. Ele não tinha jeito para o negócio, mas era o filho mais velho e o meu avô insistiu em que ele prosseguisse o negócio.
Interroga-se sobre o que é a felicidade e diz: “Sei exactamente porque não sou feliz.”
Isso é feitio. Tenho um feitio lixado. Não sou capaz de estar feliz mais de cinco minutos.
O que a consegue pôr feliz?
Dantes era estar apaixonada, mas as minhas paixões tendiam a ter uma componente sadomasoquista. Eu gostava de qualquer palerma que não gostasse de mim, o que não é um bom critério. Isto para aí aos 16 anos. Como eu era bonita, os rapazes tendiam a estar aos meus pés. E se havia algum distraído, eu achava que ele devia ser interessantíssimo, devia ter um mistério. A paixão é qualquer coisa de que não tenho muitas saudades.
Por ser muito ficcionada?
Sim, é muito ficcionada. Eu lia muitos romances, e achava que era tudo para o bem, mas acabava normalmente bastante mal. Prezei sempre a amizade, mas a amizade entre um homem e uma mulher é sempre muito difícil.
Continua a achar que sim?
Acho que para as minhas netas é mais fácil do que era para mim aos 20 anos. Agora que as coisas mudaram bastante, talvez seja possível haver amizade entre um homem e uma mulher, embora o sexo esteja sempre metido no meio. Não sei se é possível. No meu tempo não era possível.
Diz muitas vezes que era muito bonita. Quando teve consciência disso?
Só tive essa sensação a partir do olhar dos outros, aos 13, 14 anos. Até aí era muito maria-rapaz, e queria subir às árvores e andava sempre cheia de crostas. Mas ser bonita não é totalmente bom, não era em 1940-50. Era vista como um objecto sexual e eu não queria. Mesmo em Oxford. Oxford era muito machista, mas as pessoas estavam muito ocupadas, tinham de trabalhar bastante, e estudar bastante, nunca fui vítima de assédio sexual. Agora Oxford está cheio de placards, “se fores sair à noite, telefona para este número”, um número de apoio a raparigas. A minha neta mais velha disse-me noutro dia: nunca faço eye-contact com rapazes na rua. Perguntei porquê. “Não os conheço, tenho um bocado de medo.” Acho que este movimento #MeToo, além de gerar puritanismo, gera medo; dificulta as relações entre rapazes e raparigas.
Não trouxe nada de positivo?
Focou um aspecto que acho muito importante: os poderosos quererem forçar subordinados a ir para a cama com eles.
Acha que é sobretudo uma usurpação de poder?
Sim. É verdade também, e eu vi na universidade, que as raparigas podem dizer que não, e isso o movimento #MeToo omite. Na relação entre alguém com poder e um subordinado, é horrível quem tem poder querer impor ter sexo como condição para outro subir na carreira, mas pode-se sempre dizer não e sofrer as consequências. Talvez seja um pouco a lei do pêndulo, pode-se passar um bocado demais para o lado de ver os homens como nossos inimigos. Não são. Em Portugal herdaram uma tradição machista horrível e há um número de mortes familiares grandes. Mas não se nota o puritanismo como, por exemplo, nos Estados Unidos, onde a linguagem é muito vigiada. Este movimento politicamente correcto... percebo a origem, porque a linguagem vem de uma era em que discriminávamos muito certas classes ou certas raças, mas estamos a ir para um extremo em que o humor pode deixar de ter o potencial que teria. Um exemplo, A Vida de Brian, dos Monty Python. Acho que agora não seria possível fazer o filme. Era considerado sacrílego. O politicamente correcto atinge a capacidade satírica.
Escreve: “Nasci num país pobre, pequeno e situado na periferia europeia...” Até que ponto isso a moldou?
É muito curioso que me esteja a fazer hoje essa pergunta. Hoje acordei a pensar no que iria escrever a seguir. Já escrevi sobre os pobres, sobre a classe média não dá; uma biografia de quem? Até pensei fazer uma biografa do Ramalho [Ortigão], que detesto por admirar o Eça, e conheço mais ou menos as coisas que o Ramalho escreveu. O Eça era um grande escritor, mas não tinha muito bom carácter. Ele gostava sempre muito das pessoas de quem precisava, e ele precisava do Ramalho para lhe tratar dos livros e das editoras. Mas não me apetece fazer uma biografia do Ramalho, embora em tempos tivesse pensado que gostava muito de fazer um quarteto como fez o Lytton Strachey [1880-1932 de Eminent Victorians], a dizer mal de quatro personagens que são um mito. Mas nós não temos muitos heróis. Temos o Nuno Álvares Pereira, mas não percebo nada da Idade Média. Pensei no Ramalho porque tenho muito material e já não posso ir para a BN. Tenho imensas saudades, adoro estar em bibliotecas. Mesmo numa biblioteca feia.
Porquê?
Porque o mundo fica cá fora. No 11 de Março, eu estava na BN e o Vasco [Pulido Valente], com quem eu vivia, telefonou para a senhora a pedir para dizer “à menina do M15”, onde eu me sentava sempre, para ir para casa porque havia aviões a sobrevoar Lisboa. Ou seja, hoje de manhã pensei: o que é que me marcou o facto de eu ter nascido aqui? Imagine que eu nunca tinha saído de Portugal? Era igual ao que sou hoje? Acho que não. Vou meditar um bocado. Essa ideia veio esta manhã, mas eu tinha andado a folhear uns livros e se calhar, subterraneamente, já lá estava a questão. O Teixeira de Pascoaes, o Herculano, o Eduardo Lourenço... Andei a reler e não tenho afinidades com nenhum. Ontem à noite estive a folhear um poema chamado D. Jaime, de Tomás Ribeiro, que foi publicado em 1862, um sucesso enorme naquele tempo, e é a coisa mais horrenda do ponto de vista da poesia nacional. Lirismo barato, nacionalismo idiota. Deve ter sido o livro mais vendido em todo o século XIX. Pensei: eu não pertenço. Há alguma coisa em mim que diga que sou mesmo portuguesa? Em que é que me mudou a minha estada em Inglaterra? Foi mais importante do que o facto de eu ter nascido aqui ou não?
Às tantas diz aqui: “England made me”...
Culturalmente foi. A importância que dou à liberdade e à independência. Se tivesse ficado sempre aqui, talvez não tivesse acontecido. Também não quero dizer que sou uma snob. Não tenho uma visão dourada de Oxford. O que Oxford me deu, além de assistir a seminários, foi liberdade e tempo, o acesso à melhor livraria de Inglaterra e à melhor biblioteca. E tempo! Eu ali tinha tempo para ler muitos, muitos romances. Sou, se calhar, híbrida; sou portuguesa e fui muito influenciada pela cultura inglesa. Admiro o Orwell como não admiro o Alexandre Herculano, não só pela maneira como escrevem mas pelos sentimentos que revelam.
Essa identidade tem alguma coisa que ver com a língua?
Tem. Nunca poderia escrever em inglês. Se eu não tivesse filhos com um pai português, será que eu tinha tentado ficar em Inglaterra? Será que alguma universidade acharia que eu tinha qualidade suficiente para ser uma académica inglesa? Talvez não. Se calhar era um bocadinho burra.
Ainda tem essa dúvida.
[Gargalhada] Tenho, nunca experimentei, mas nunca menosprezarei o que a Inglaterra me deu.
Já escreveu que está triste com o “Brexit”.
Acho que o Cameron cometeu um crime. Ainda por cima sou contra os referendos e referendar a Europa não tem pés nem cabeça para mim.
Sublinha num dos textos a falta de credibilidade nos políticos, nos jornais e nos juízes, três poderes essenciais em democracia.
E nem na Igreja. Eu não sou crente, mas verifica-se um vazio pelo descrédito das instituições tradicionais e há um cinismo que está a aumentar. Isso é perigoso. As pessoas deixam de ter uma âncora a que se agarrar e, por muito que eu critique o sistema eleitoral português, quero continuar a ser de esquerda e, sendo de esquerda, poder imaginar um país melhor. Não quero abdicar de alguns ideais nesse sentido: da igualdade versus desigualdade social. Mas tudo me puxa para dizer que não vale a pena, sobretudo os amigos da minha idade. Não é que eu tenha causas. Acho que é preciso lutar até ao fim. Assim como luto contra o cancro, acho que é preciso lutar contra o vazio e o cinismo em relação aos sistemas políticos ocidentais, porque são, apesar de tudo, os melhores. Se baixarmos os braços e dissermos “não vale a pena”, vem mesmo a extrema-direita para a Europa. Não sei se é geracional, mas vivemos o entusiasmo com o 25 de Abril. Muitos desses entusiastas até foram para a direita, e os que continuam na esquerda têm muito apego a causas fracturantes, o que também acho um perigo, porque a política tem que ver com um ponto de vista mais global. Eu, por exemplo, defendo que se deve despenalizar o suicídio assistido e, possivelmente, também a eutanásia, mas isso não é tudo. Não é só isso que me faz ser de esquerda, e é preciso que a minha geração ainda tenha capacidade de lutar. Acho que estamos todos a baixar os braços e eu não quero baixar os braços, quero continuar a lutar pelas coisas em que acredito.
Mas nota-se uma desilusão com essa sua esquerda. O que mais a entristece?
A esquerda que está no Parlamento não entusiasma. Quase não vejo televisão. Acho que a RTP continua a fazer propaganda do Governo seja ele qual for, e os outros canais são populistas. Não há debate. Não há um debate racional. Por isso gostei de ler o discurso de homenagem que o Obama fez ao John McCain. Eu não tinha uma opinião sobre o John McCain, não conheço suficientemente bem a história da América, mas pareceu-me um ser admirável. Ele pertence a uma certa aristocracia militar ou política, por mais que esta expressão possa irritar, mas não gosto de ver exibido um ressentimento social. Noblesse oblige quer dizer isso mesmo, quem pertence àquela classe tem também deveres e um dos deveres é uma noção de ética. O Trump pisou nisso tudo, e o John McCain tornou-se uma espécie de símbolo de um homem bom. O Obama, que acho que não foi bom político porque não fechou Guantánamo, é um grande orador. Ele sabe dizer as coisas muito bem. Ele e o McCain defrontaram-se em eleições. Com as redes sociais pode desaparecer um debate adversarial que é bom, saudável, de pessoas que se respeitam. O contrário do estilo Trump.
Acerca dessa sua busca de saber o que a faz ou não portuguesa, tem neste livro um texto onde põe lado a lado Eça e Tolstói para dizer que tanto a literatura portuguesa como a russa andam à volta da identidade. E tem uma frase curiosa: “Alguns intelectuais ainda hoje se debatem com este problema e eu não.” Foi em 2015. Afinal...
[Gargalhada] Nunca me preocupei com a questão da chamada “identidade nacional” por ser uma frase que, para mim, era oca. Quando estava em Inglaterra, notei que quem se preocupava com isso eram sobretudo povos periféricos. Nunca vi um inglês preocupar-se com a identidade nacional dele. Com o “Brexit” a coisa é diferente. A questão tem sido posta de tal forma que me afastou dessa ideia de identidade nacional. Mas mais uma vez o que quero é voltar a mim. Isto pode parecer estúpido. Algumas pessoas pensam: mas ela é assim tão vaidosa que quer pensar tudo a partir do ego dela? Acontece que não tenho outra maneira de pensar as coisas a não ser de mim, do meu olhar. O que me interessa não é discutir a partir de termos míticos. Não sou capaz de discutir a identidade nacional em termos abstractos, nem pensar se odeio ou não odeio os espanhóis. É verdade que somos uma nação muito antiga. Como é que isso nos marcou? Mas têm de ser perguntas concretas, não pode ser uma espécie de exposição mítica de uma mentalidade portuguesa que eu não sei em que consiste.
Perguntas concretas, neste caso, a si?
Sim. A mim. Não sei se isto dá qualquer coisa.
Uma das suas crónicas é dedicada ao jornalista e escritor britânico Christopher Hitchens. Fale-me desta sua admiração.
Because he was a contrarian [porque ele era do contra]. Ele também deve ter dito “não” mal nasceu. Acho que era inteligente, escrevia bem, era subversivo, entusiasmou-se com o Portugal de 74 e depois percebeu que aquilo podia ter descambado num regime odioso. Tive pena de não o poder conhecer quando esteve cá, mas um amigo meu que estava em Nova Iorque quando ele morreu mandou-me uma fotografia dele em que ele está com uma pilha de livros ao lado, e fiquei muito contente porque estava encimada pela tradução da minha biografia do Eça de Queirós. Ele quando esteve cá na Casa Fernando Pessoa disse que gostava mais do Eça de Queirós do que do Pessoa. Eu também tenho dificuldade em ler Pessoa, e agora que estou nesta espécie de boiar tentei outra vez ler a poesia e só gosto do Cesário Verde. Não sou capaz de entrar na poesia do Pessoa. Gosto mais da prosa do Fernando Pessoa do que da poesia. Deve ser um sacrilégio dizer isto.
Porquê?
Deve ser a frieza emocional do Pessoa.
Acha que ele era frio?
Acho. E o Cesário não era. Acho que o Cesário é o único génio que conheço em Portugal. Sou capaz de explicar como é que surgiu o Eça de Queirós, o ambiente de onde ele veio, as leituras dele, etc. Escrevi também uma pequena biografia do Cesário, não há fontes quase nenhumas, mas adorei ler o Cesário e é o único poeta que releio.
O que a faz chamar-lhe génio?
Brotou de uma forma que não compreendo. Não sou capaz de explicar como escreveu aquela poesia. Infelizmente, é um poeta menosprezado.
Acabou um projecto na semana passada. Quer falar dele?
Acabei, deu-me um enorme trabalho e um enorme prazer. Não tinha ideia daquilo em que me estava a meter. Tive a sorte de ter um revisor, o Vasco Grácio, que fez mais de metade do trabalho por mim. Porque não sou meticulosa e ele é. O que vai sair agora são As Farpas originais do Eça. Estou muito contente por ter sido capaz, por ter acabado. São só do Eça e são todas as que o Eça escreveu. É mesmo o original do que ele escreveu em 1871-72. Estou contente, porque estou doente e a minha satisfação é ser capaz de trabalhar. Talvez saia ainda este mês.
É isso que a satisfaz sobretudo, estar bem intelectualmente?
É. Não suportava ter Alzheimer. Aí, sim, eu pediria a alguém me ajudasse a morrer.