Visões da desolação de um desastre
Reacções ao incêndio que destruiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro.
"Impérios caíram por menos"
"O Museu Nacional do Brasil é este que aí está: arruinado. E o espelho do que somos são estas cinzas. Como alguns, e sem qualquer ironia, acho que o prédio não deve ser reconstruído, devemos deixá-lo como está. É a mais perfeita tradução do nosso projecto de país. Um museu de ruínas. Uma civilização que faz isso consigo mesma perde até o direito à própria soberania. Não se enganem: o peso simbólico de perder um património deste tamanho trará consequências graves. Impérios caíram por menos. O Brasil está passando por algo sem precedentes em sua história — a depender do resultado de Outubro, não consigo evitar pensar no risco de que o país deixe de existir como o conhecemos. É exagero falar no fim do Brasil? Não depois do que aconteceu ontem."
João Paulo Cuenca, escritor e cineasta, autor de Descobri que estava morto, Prémio Literário Biblioteca Nacional
"Alma nacional amputada"
“Fui ao Museu Nacional algumas vezes, a primeira quando era pequeno, e muitos anos mais tarde com meus filhos. Não ia lá há muitos anos. Era um clássico programa duplo: famílias se dirigiam à Quinta da Boa Vista para visitar o museu e ir ao zoológico. Um e outro andavam largados, sofridos, deprimentes, há muitos anos. A própria Quinta foi se tornando um lugar menos seguro, e o passeio já não era o que tinha sido em minha infância. O Museu Nacional não se modernizou, manteve-se sob vários aspectos como um museu do século XIX. Salas foram fechando por falta de verbas. Havia fiação exposta. A catástrofe era mais que anunciada. Mas mesmo em relativo ostracismo era uma instituição tão venerável, tão importante, tão encharcada de história que talvez a sentíssemos como indestrutível, julgando que estaria para sempre lá, como o Pão de Açúcar. Também nisso, como ultimamente em tanta coisa, fomos um país estúpido. A paisagem do Rio e do Brasil sem o Museu Nacional é um sorriso banguela, ou seja, ao qual falta um dente. Um amigo meu falou ontem em "alma nacional amputada", o que me parece preciso. Agora temos o resto dos tempos para absorver o sentido da palavra "irremediável".”
Sérgio Rodrigues, escritor e jornalista, autor de O drible, Grande Prémio Portugal Telecom de Literatura 2014
"É uma tragédia"
“Além do valor histórico, o Museu da Quinta da Boa Vista, como era mais conhecido no Rio, tinha um valor afectivo muito grande na vida das famílias cariocas. Ele fica no mesmo parque que abriga o Jardim Zoológico da cidade. Era um pacote duplo de lazer: passar o domingo no parque visitando o Zoo e o Museu. Uma farra divertida, educacional e barata para fazer com os filhos. Quem me deu a notícia do incêndio, domingo à noite, foi minha filha mais velha, Irene, jornalista, 38 anos. Ela estava aos prantos no telefone. Fomos muitas vezes ao museu, com suas múmias, seus esqueletos de dinossauro, uma série de atracções que as crianças adoram e servem às suas fantasias. Irene, no mês passado, esteve de novo no Museu, agora levando os filhos para fazer o mesmo programa que curtiu na infância. O prédio, ela me disse, estava um abandono só, assim como está o Zoológico, mas as crianças continuavam impressionadas com o que viam de insectos, onças, cobras e multidões de índios empalhados. É uma tragédia. A academia perde uma referência para a pesquisa histórica e científica, e as famílias perdem um grande programa de domingo.”
Joaquim Ferreira dos Santos, escritor e jornalista, cronista de O Globo e autor de vários livros de crónicas e ainda de Feliz 1958 - O ano que não devia terminar e as biografias de Antônio Maria, Leila Diniz e Zózimo Barrozo do Amaral.
"Um acervo incomparável"
"Conheço bem o Museu Nacional. Fiz meu doutorado lá, passei seis anos na instituição. É um daqueles casos em que é inevitável recorrer a clichés como "perda irreparável" e "tragédia anunciada". Perdeu-se um acervo de cerca de 20 milhões de peças, reunido ao longo de 200 anos. Entre essas peças estão Luzia, o fóssil humano (Homo sapiens) mais antigo encontrado na América do Sul com cerca de 12.500 anos de idades, múmias do Egipto, colecções arqueológicas, paleontológicas, antropológicas... um acervo incomparável (uma amostra pode ser vista aqui). Mais do que isso, desaparece o material colectado por gerações de pesquisadores de diversas áreas, desaparece boa parte da memória da ciência brasileira (foi a primeira instituição científica do Brasil), desaparece um dos museus mais frequentados pelos cariocas, um museu que está na memória afectiva de todo o Rio de Janeiro... Foi o palácio sede da monarquia. Uma boa parte da história do Brasil e dos brasileiros morre ali... O museu completou 200 anos em Junho e nenhum ministro esteve na solenidade de aniversário. O último presidente brasileiro a visitar o museu foi Juscelino Kubitschek, em...1959."
Gustavo Pacheco, antropólogo, diplomata e autor do livro de contos Alguns Humanos
"O país está acabando e pegando fogo"
"O Museu Nacional do Rio era um museu muito popular, onde iam pessoas pobres, era um museu frequentado por quem habitualmente não vai a um museu. Era um programa de subúrbio do Rio de Janeiro. Tinha 10 mil visitantes por mês. Muita gente se iniciou ali. Estive pensando e foi o primeiro museu a que fui na minha vida. É um lugar de educação das pessoas."
"Acho muito curioso que as pessoas venham dizendo que isso não é responsabilidade desse governo. Sim, é responsabilidade de outros governos, isso já vem de há muito tempo, o descaso. Mas é neste governo e não é em outro governo que o ministro da Cultura vai para a televisão dizer que a responsabilidade não é do Ministério da Cultura porque o museu pertence à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), vinculada ao Ministério da Educação. A gente vive numa fragilidade que parece que o país está acabando e pegando fogo. É difícil não ver nisso uma coisa tão simbólica."
"É simbólico para a cidade e simbólico para o país neste momento. Só dois partidos têm propostas de Cultura [as eleições estão marcadas para 7 de Outubro], o Partido dos Trabalhadores e a Rede de Marina Silva. Mais ninguém tem propostas para a Cultura, é uma loucura isso. Este incêndio mostra várias fragilidades, a do prédio mas não só, muitas outras.”
Paulo Roberto Pires, editor da Serrote, revista de ensaios do Instituto Moreira Salles, escritor, jornalista e professor da Escola de Comunicação da UFRJ