Dinheiro não chegou a tempo de salvar o museu
Multiplicam-se as críticas aos anos de "descaso" e "desinvestimento" na Cultura. Verba recentemente desbloqueada não chegou a tempo de salvar o museu.
Havia dinheiro a caminho mas não chegou a tempo. Depois de anos de desinvestimento, recentemente o Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) tinha obtido um financiamento de mais de 21,7 milhões de reais (4,5 milhões de euros) do BNDES (Banco Nacional para o Desenvolvimento Social e Económico, público, associado ao Governo) para “restaurar o edifício histórico” e “garantir uma maior segurança das colecções”. Uma das medidas seria reforçar o sistema de controlo de incêndios. Mas o edifício ardeu antes de o dinheiro chegar.
Segundo a edição Brasil do El País, o orçamento anual do museu ronda os 550 mil reais (114 mil euros), mas a UFRJ, afectada por cortes, tem passado apenas 60% desse valor à instituição. Este ano, o museu terá recebido até agora pouco mais de 80 mil reais (cerca de 17 mil euros).
As manifestações de indignação multiplicaram-se ontem. O escritor João Paulo Cuenca, num depoimento que enviou por escrito, não hesitou em afirmar que se tratou de um “incêndio criminoso”. Explica: “Não se trata de um acidente. Desde 2014 que o Museu Nacional não vinha recebendo a verba de pouco mais de 500 mil reais para a sua conservação. Isso é 200 vezes menos que o valor da passarela construída por [antigo prefeito do Rio] Eduardo Paes para que os vips pudessem caminhar do estacionamento na Quinta da Boa Vista, onde ficava o Museu Nacional, ao Maracanã Olímpico.”
A culpa, diz, não é apenas do actual Governo de Michel Temer. “Os Governos de Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma assistiram indiferentes ao sucateamento do museu mais importante do país. Tivemos muito dinheiro para todo o tipo de bolsa-empreiteiro, perdão de dívidas e incentivo ao alto empresariado, mas não para cuidar da memória do país. O país merece.”
Luiz Camillo Osório foi, entre 2009 e 2015, curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que também sofreu um incêndio em 1978, precisamente quando celebrava o seu 30.º aniversário: “São dois casos incomparáveis porque são acervos muito diferentes, mas ambos com valores inestimáveis”, explica. No caso do Museu de Arte Moderna arderam, entre muitas outras, obras de Picasso, Dalí e Joaquín Torres-García, que tinha na altura uma retrospectiva no museu. “Infelizmente não são casos únicos, aconteceram outros, o do Museu da Língua Portuguesa [em São Paulo em 2015], e o do acervo do artista plástico Hélio Oiticica [em 2009, no Rio].”
“São as famosas tragédias anunciadas, um somatório de anos de descaso e má governança”, diz Osório. Não se trata de falta de dinheiro: “Durante a Copa do Mundo foram criados doze estádios de futebol, um dos quais, o mais caro, em Brasília, que não tem time de futebol nem na primeira nem na segunda divisão. O Museu Nacional precisava de 300 milhões para a sua reestruturação, isso é um quarto do que custou o estádio de Brasília.”
O incêndio do Museu Nacional tem “uma carga simbólica muito forte”, afirma Paulo Roberto Pires, editor da revista de ensaios Serrote, do Instituto Moreira Salles. “É simbólico para a cidade e simbólico para o país neste momento. Só dois partidos têm propostas de Cultura [as eleições estão marcadas para 7 de Outubro], o Partido dos Trabalhadores e a Rede de Marina Silva. Mais ninguém tem propostas para a Cultura, é uma loucura, isso. A gente vive numa fragilidade que parece que o país está acabando e pegando fogo. É difícil não ver nisso uma coisa tão simbólica.”