"É inadmissível que morram pessoas no mar"
O director do Serviço Jesuíta aos Refugiados-Itália mostra-se indignado com a forma como a UE tem lidado com a crise dos refugiados. Ripamonti, que antes de ser padre quis ser médico e salvar pessoas em África, viu a África chegar-lhe de outra maneira. E acrescenta, preocupado com o rumo que as sociedades europeias estão a tomar, que é uma obrigação moral dos cristãos serem a voz dos que não têm voz.
Fazer declarações de retórica sobre a importância de trabalhar em conjunto, mas cada país seguir depois pelo seu caminho não levará a União Europeia muito longe, diz o padre Camillo Ripamonti, 48 anos, director do JRS (Serviço Jesuíta aos Refugiados) em Itália. A organização pioneira foi criada há 35 anos pelo padre Pedro Arrupe, então superior geral dos jesuítas, para responder ao drama dos boat people do Vietname. Jesuíta desde 1997, no Centro Astalli do JRS desde 2012 e director do JRS Itália desde 2014, Ripamonti formou-se em Medicina antes de decidir ser padre. Já na Companhia de Jesus, trabalhou quatro anos na revista Aggiornamenti Sociali, onde escrevia sobre saúde e bioética.
A sua formação de médico dá-lhe um olhar especial para trabalhar com refugiados?
Antes de entrar na Companhia de Jesus, um dos meus desejos era, como médico, ir para África ajudar populações em dificuldade. Por vários motivos, isso não foi possível. Entrei na Companhia e o meu percurso foi outro. Muitos anos depois, encontro a África em casa: a maior parte dos refugiados, aqui no Centro Astalli, vêm da África subsariana. Para quem tinha o desejo de ir para África, ele acabou concretizado deste modo.
A minha formação médica dá-me um olhar de atenção aos aspectos complexos da pessoa, das suas necessidades físicas e materiais. Da componente jesuíta, também me dá a atenção à dimensão interior das pessoas. Muitas vezes, em tudo o que se refere aos refugiados, esquecemos esta dimensão de interioridade e religiosidade, mas nas populações da África subsariana e muçulmanas essa dimensão é muito forte e é um aspecto a ter em conta.
A viagem do Papa a Lampedusa e, pouco depois, a visita aqui ao Centro Astalli, em Setembro 2013, confirmaram-no nessa opção?
Sim. Foi um belo momento ver o Papa a entrar na porta do Centro Astalli, num dia que, como ele queria, era um dia normal: com a fila das pessoas que esperavam para comer, para entrar no refeitório...
Ele veio ao início da tarde?
Sim. E pediu expressamente que fosse um dia como os outros e que não se interrompesse a actividade do centro, para não colocar as pessoas em mais dificuldade. Conseguimos, ao mesmo tempo, responder a esse desejo e às necessidades das pessoas. As pessoas vieram comer e, quando ele chegou, cumprimentou todos os que estavam na fila, revelando a atenção particular que tem tido, em tantos gestos que fez ao longo dos anos, reconhecendo a dignidade das pessoas.
Depois, passou na porta que todos os dias os refugiados passam, para descer e ir comer, encontrando-se com alguns e escutando a sua própria história. Ver o Papa a escutar os refugiados olhando-os nos olhos, claro que me confirmou naquela que era a intuição do padre Pedro Arrupe, há 35 anos, ao querer ocupar-se dos refugiados, que eram os mais pobres entre os pobres, porque perderam tudo.
O Papa a olhar nos olhos dos refugiados foi o mais importante daquele dia?
Sim, porque é um olhar que restitui a dignidade que muitos perderam nos seus países de proveniência. Eles foram postos à prova porque eram perseguidos, não eram reconhecidos, eram escravos, vítimas de injustiça e de guerra. Terei sempre esta imagem dentro de mim...
Como reagiu quando, dois meses antes de vir aqui, o Papa foi a Lampedusa?
Foi um sinal muito importante. Começar as suas viagens apostólicas naquela ilha que é a porta da Europa, a dizer que devemos, enquanto cristãos, sublinhar a importância da atenção que aquela ilha pratica, sobretudo a atenção às vítimas que morrem no Mediterrâneo todos os dias, foi um sinal muito forte para o nosso tempo: partir da fronteira, para transformar a fronteira de qualquer coisa que divide em algo que permite à pessoa atravessá-la.
[O Papa mostrou] a atenção às vítimas e fez um apelo forte, na homilia, à responsabilidade pessoal, quando dizia que todos somos desafiados com a pergunta: “Onde está o teu irmão?” Começar o pontificado e fazer a primeira viagem com esta atenção, depois de ter dito que era um Papa que vinha do fim do mundo, é confirmar a importância das periferias existenciais e de vida.
O Papa foi a Lampedusa, mais tarde a Lesbos; vimos o pequeno Aylan Kurdi morto na praia na Grécia; vemos imagens de náufragos no Mediterrâneo... Mas a opinião pública, em vez de pressionar os políticos para acolher estas pessoas, adere aos discursos contrários. O que tem faltado?
O que tem faltado na Europa é uma real atenção às pessoas mais débeis e vulneráveis. O risco é o de que, se a política não der atenção a estas pessoas, se criem divisões e uma guerra entre os pobres. Com a crise económica dos últimos anos, repetiu-se que os recursos e os dinheiros são poucos, reduziu-se o investimento social. Obviamente, aquele que tem pouco e tem mais necessidade vê o que se senta à mesa com ele como um rival e não como um comensal. Se não houver uma mudança de política de 180 graus nas questões sociais, da marginalidade, de habitação, de trabalho, de saúde, que leve os cidadãos a compreender os imigrantes e refugiados, a sociedade arrisca-se a ficar fracturada. O foco nestas contraposições entre os que estão e os que vêm é muito perigoso.
Corredores humanitários e ajuda aos países de origem dos refugiados são as medidas prioritárias?
Um fenómeno complexo tem diversas etapas, que devem ser afrontadas com urgências diferentes. A busca e socorro de pessoas em dificuldade no mar é uma prioridade, porque não se pode deixar morrer pessoas no mar.
A luta contra os traficantes faz-se cortando as possibilidades de negócio a essa gente que lucra com a vida de pessoas em dificuldade, criando corredores humanitários, ou seja, vias legais para que essas pessoas, vítimas de perseguição e violência, possam chegar à Europa. Se os corredores não existirem, será sempre o traficante de turno que lucrará com estas pessoas. Outro elemento é o do investimento em África, que deve ser em infra-estruturas. Nos últimos tempos, o que se faz não é mais do que promover políticas securitárias, estabelecendo fronteiras e criando cada vez mais dificuldades à deslocação no interior de África. O investimento em África é fundamental para que as pessoas possam viver livremente nos seus países, mas deve ser feito em infra-estruturas, na possibilidade de poderem viver dignamente nos seus países.
As migrações são um fenómeno estrutural do nosso tempo. Por isso, é preciso investir na integração, porque haverá sempre pessoas a chegar e que é preciso integrar. E ultimamente está a eliminar-se a dimensão da integração nas políticas europeias.
Quando fala dos problemas de África, falamos de questões semelhantes no Médio Oriente e de países como o Afeganistão, Iraque, Síria?...
A maior parte dos que chegam através do Mediterrâneo provêm da África subsariana e do Corno de África. Claro que há também a guerra na Síria, que nós, como Europa, já mostrámos em várias ocasiões que não sabemos gerir — a única coisa que fizemos foi pagar à Turquia para conter os refugiados e bloquear a possibilidade de essas pessoas chegarem à Europa.
Um dos países de onde mais se foge, porque há guerra há muito tempo, é o Afeganistão. Mas verifica-se um desconhecimento do conflito e do que é o Afeganistão. Vários países estão a enviar as pessoas para trás, sujeitando-as a situações de instabilidade.
O novo Governo italiano, mas também o da Hungria ou da República Checa, dizem que os corredores humanitários trarão mais pessoas para a Europa. Como responde a isto?
Os corredores humanitários não são uma invenção recente: o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados pôs sempre em marcha esta medida. O que se pretende é regulamentar, na legalidade, as pessoas que vêm; não aumentam as pessoas que vêm, aumenta o número de pessoas vivas que chegam aos nossos territórios.
O JRS e a Cáritas Europa criticaram a falta de decisões concretas do Conselho Europeu de Junho, que coincidiu com a morte de mais 63 pessoas no Mediterrâneo. O que deve a Igreja dizer e fazer ainda para afrontar os poderes públicos?
O fundamental é não parar de ser a voz dos que não têm voz. Denunciar os mortos que continuam a registar-se todos os dias é uma obrigação moral que, como Igreja, devemos assumir. É inadmissível que morram pessoas no mar, quando há possibilidades de o evitar.
Também devemos dizer a verdade sobre o fenómeno migratório. Não podemos esquecer que os refugiados no mundo são 68 milhões e 500 mil e, no ano passado, os que chegaram à Europa foram menos de 500 mil. Ou seja, uma percentagem bem longínqua da “invasão” que muitos Estados agitam.
A solidariedade entre os Estados europeus é a base da construção da Europa dos direitos. Por isso, deve ser sublinhada pela Igreja Católica a importância de sermos um continente solidário e de ser a voz dos que não têm voz. Esta é uma obrigação moral para os cristãos.
São poucos os refugiados que vêm para a Europa e os que vêm ajudam ao desenvolvimento dos nossos países. Mas as estatísticas dizem que um em cada três italianos apoia as ideias do actual Governo e olha para os refugiados de modo negativo. O que falta fazer para mudar a opinião pública?
Há duas acções simultâneas, que tentamos pôr em prática [no JRS]: uma é investir nas jovens gerações. Os jovens já percepcionam uma Europa dos povos, na qual é possível mover-se e sentir-se em casa em cada país. É com estas pessoas sensíveis que devemos continuar a trabalhar e dizer que a Europa deve ser a casa dos direitos e a casa de todos. Fazemo-lo nas escolas, falando desses direitos que devem ser garantidos, promovendo o encontro de refugiados com estudantes. Este trabalho dará frutos nos próximos anos, semeia esta mensagem positiva, construtiva, de uma sociedade de pontes e não de muros.
A outra área é a da informação. É preciso dar a informação correcta. Ou seja, temos o dever de falar com as pessoas e os partidos que alimentam o medo e confrontar os dados da “invasão” com os dados da realidade; trabalhar muito com a informação televisiva, a imprensa e as redes sociais, que são um veículo incontrolado de informações não verificadas.
Tem medo da falta de orientação europeia e da nova situação em Itália? Elas podem tornar mais difícil o vosso trabalho?
Sente-se que o clima à nossa volta está já a mudar. A nossa preocupação é que o acompanhamento das pessoas, que já é difícil num contexto e num clima cada vez mais hostil, se arrisque a ser ainda mais complicado. Quem faz este tipo de serviço sabe que deve afrontar grandes dificuldades: quem é diferente, quem vem de outros países e traz consigo uma bagagem de tanto sofrimento, não é uma pessoa fácil de acompanhar. Um contexto que cria obstáculos, em vez de favorecer o trabalho, obviamente deixa-nos preocupados, porque torna necessário um maior empenho de energia para criar um contexto favorável e que subtrai essa energia ao trabalho que se deve fazer com as pessoas.
Tem medo que esta situação nos leve à guerra aos pedaços de que fala o Papa?
Estamos já a viver essa guerra, porque os refugiados são o resultado dessa guerra aos pedaços. E o risco é que os nossos países, em vez de oferecerem a essas pessoas um ambiente de paz em que possam reconstruir a sua vida, não façam mais que continuar a guerra que eles já viveram e carregam consigo.
E, quando vemos a Alemanha a dizer que fará acordos bilaterais, estamos a verificar o falhanço da ideia de uma União...
Nas conclusões do Conselho Europeu [de Junho], a única frase inteligente é a que diz que o fenómeno migratório não deve ser afrontado por cada Estado, mas que toda a Europa se deve implicar. É a única frase que faz referência explícita à solidariedade, à importância de estarmos todos juntos. Depois, na prática, cada um segue e concretiza o próprio interesse. Creio que isto não nos levará muito longe...