Os refugiados, a bomba-relógio e os medos católicos
As organizações católicas italianas que trabalham com refugiados criticam duramente a nova política do país: o Governo reclama a tradição cristã da Europa, mas as instituições dizem que a política “aldraba a realidade”. E têm receio dos efeitos negativos das orientações no acolhimento e integração dos refugiados — dos que ainda conseguem chegar. Muitos são bloqueados por uma Turquia “que não os protege” ou morrem no Mediterrâneo.
O camaronês Franck Tayodjo, 41 anos, está há 15 anos em Itália, mas tem na pele as marcas do que o levou a fugir do seu país, aos 26 anos: basta levantar ligeiramente as calças para poder ver as cicatrizes da violência e da tortura a que foi sujeito. Jornalista no Aurore Plus, ele e outros colegas eram perseguidos pelo Governo, por causa do que publicavam. “Os governos foram sempre duros com jornais mais críticos.” Forma branda de explicar porque foi metido numa prisão subterrânea e torturado.
Apesar de estar detido na cadeia Regina Coeli, no centro de Roma, Pedro Celeita, 66 anos, colombiano condenado por furto a dois anos de prisão, tem autorização do director para sair durante algumas horas do dia e ajudar outros imigrantes e refugiados no Angolo del Pellegrino: “Estou aprendendo a liberdade. Assim como me ajudaram a mim, estou agora a ajudar outros”, diz, a poucos dias de sair em liberdade e poder regressar à Colômbia, para tentar reconstruir a vida. Apenas terá de cumprir um pedido que lhe fez o Papa — já veremos o quê e quando.
Às duas horas da tarde, a fila à porta do Centro Astalli, do Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS, da sigla inglesa), já tem umas 30 pessoas, aguardando a comida que será distribuída uma hora depois. Os rostos são sobretudo africanos, mas também asiáticos e do Médio Oriente. Para os voluntários e funcionários do JRS que ali trabalham, nem sempre a tarefa é fácil. “Quem é diferente, vem de outros países e traz consigo uma bagagem de tanto sofrimento, não é uma pessoa fácil de acompanhar”, dirá, uma hora depois, o padre Camillo Ripamonti, director do JRS-Itália, que se manifestará também preocupado com as decisões e atitudes do novo Governo do seu país e com as indecisões europeias.
Odine Gideon, 21 anos, nigeriano, viu morrer gente no barco em que se meteu para chegar a Itália, depois de ter ido a pé do seu país até à Líbia. “Umas 14 pessoas perderam a vida” no barco, incluindo crianças. O infortúnio do pequeno Aylan Kurdi, que morreu em Setembro de 2015 numa praia da Grécia, repete-se incessantemente. Na mesma Casa Scalabrini, um antigo seminário transformado em residência de uns 30 refugiados, o missionário Emanuel Selleri, 35 anos, teme a bomba-relógio que as políticas europeias (ou a falta delas) estão a provocar, com o fechamento de fronteiras.
Com 75 anos feitos em Julho, o padre Vittorio Trabi quer ser optimista, mas alerta: “Deixamos as pessoas entrar, mas depois não as podemos deixar dormir debaixo da ponte.” Franciscano, capelão na cadeia Regina Coeli, o padre Vittorio criou o Angolo del Pellegrino e os Voluntari Regina Coeli, grupo de presos que ajudam quem precisa ainda mais. Na última Quinta-Feira Santa, foi este centro de detenção do bairro de Trastevere, no centro de Roma, que o papa Francisco escolheu para o gesto simbólico e litúrgico de lavar os pés a vários presos.
Não é fácil o novo quadro político italiano para as organizações católicas que trabalham com imigrantes e refugiados. O Governo fecha portos aos navios e portas da burocracia, corta a torneira da ajuda financeira, cria um ambiente “hostil”, como dirá o padre Camillo.
Ainda em Junho, no início da odisseia do navio Aquarius, que só esta semana conheceu um desfecho, o cardeal Ravasi foi criticado por ter recordado que Santo António também foi náufrago e defender o dever evangélico de acolher o estrangeiro. Os bispos assumem a voz da oposição às novas políticas, dizendo que se sentem responsáveis por quem foge das guerras, do deserto, da fome da tortura. A revista Famiglia Cristiana colocou uma fotografia do ministro do Interior, Matteo Salvini, na capa com o título “Vade retro”. O Papa é popular, mas as suas posições sobre este tema não colhem na opinião pública: em cada três italianos, um está do lado do Governo...
Fuga para o Egipto, fuga para a Nigéria
A história de Franck Tayodjo é tragicamente vulgar: nas eleições de 2003 nos Camarões, o jornal Aurore Plus, onde trabalhava, pronunciou-se contra a fraude na contagem dos votos. A resposta do Presidente, Paul Byia, no poder há 36 anos (desde 1982), foi mandar vários militares intimidar jornalistas. Líderes de opinião, comentadores, políticos de oposição, responsáveis de um jornal católico onde Franck também colaborava, ninguém escapou à vigilância da polícia secreta. “Houve pessoas mortas, o Presidente decidiu fechar o jornal, nós procurávamos vender mesmo às escondidas, o Governo militarizou a cidade e mandou a polícia secreta ao jornal.”
E também a sua casa, onde os militares apareceram à noite: “A minha mulher disse que eu não estava e eles começaram a torturá-la. Ela gritou, eu apareci e eles levaram-me. Antes, com a polícia normal, eu escondia-me e o chefe de redacção resolvia o problema. Dessa vez, já não foi possível...”
Franck Tayodjo foi submetido a tortura numa prisão subterrânea. Uma das técnicas era fazer rolar os presos no chão e caminhar com as botas sobre eles. Intimidações, perseguições e tortura são práticas quotidianas, acusa.
Enquanto fala, Tayodjo mexe timidamente as mãos, sentado na pequena Capela da Fuga para o Egipto, do Centro Astalli: dois bancos corridos, uma cruz etíope e um missal sobre o pequeno altar, que era a escrivaninha do padre Pedro Arrupe, antigo superior geral dos jesuítas, que criou o JRS há 35 anos, na altura da crise dos boat people vietnamitas. Nas paredes, um ícone pintado por Abbye Melaka, refugiado etíope que ali chegou na década de 1990 e hoje vive na Alemanha, evoca a cena da fuga que a tradição coloca no começo da vida de Jesus. Em frente, outro ícone representa a Última Ceia de Jesus com os seus discípulos, como que dizendo que naquela casa o pão é partilhado por quem precisa.
Também Franck Tayodjo já teve de fugir, como no episódio que o nome da capela evoca. Em 2003, a região noroeste dos Camarões lutava pela secessão. “A polícia secreta queria que eu lhes desse documentos sobre isso e perguntavam quem estava por detrás de mim.” Várias pessoas organizaram--se para conseguir a sua libertação. Um bispo católico conhecia-o e organizou a fuga, em direcção a Bamenda, na região secessionista, e depois para a Nigéria, com a qual o país estava em guerra.
Mesmo assim, Franck não se sentia em segurança. Acabou por conseguir arranjar documentos falsos e meter-se no porão de um avião da Alitalia, sem poder mexer as pernas durante as oito horas de viagem. “Não sabia que era um avião italiano.” Quando chegou a Roma, teve quem o informasse de que poderia pedir asilo político, algo que ele ignorava.
No aeroporto de Fiumicino, deram-lhe o endereço do Centro Astalli, nas traseiras da igreja jesuíta do Gesù, no centro de Roma. Cinco dias depois da viagem, conseguiu finalmente tomar um duche, ser visto por um médico, contar a sua história, falar com um psicólogo e juristas e, depois, começar a aprender italiano. A resposta ao pedido de asilo, positiva, chegou ano e meio depois.
A poderosa semente
A história de Franck não tem um final feliz: em Roma, faz por vezes alguns trabalhos manuais, sente-se um “eterno precário”. Vive numa casa nos arredores de Roma, com a mulher, que conseguiu juntar-se a ele mais tarde e trabalha como empregada doméstica, indo a casa duas vezes por semana. Mas sente-se permanentemente “em risco de perder a casa, de perder tudo”. E, enquanto refugiado político, não recebe nada do Estado, sublinha.
Pelo meio, e ainda nos Camarões, perdera o filho de três anos, por falta de assistência médica. Ele e a mulher adoptaram uma criança, que tinha mais ou menos a idade do filho que morrera — entrou na universidade há um ano. Com tempo livre, Franck acompanha os voluntários do JRS, há cinco anos, em muitas escolas: conta a sua história e fala com os alunos acerca da situação dos refugiados.
As idas às escolas fazem parte do projecto que o JRS desenvolve para alunos entre os 13 e os 19 anos, explica Francesca Cuomo, coordenadora do Finestre (palavra italiana para janelas), dedicado ao trabalho nas escolas, e do Incontro, que trabalha o diálogo inter-religioso. “Pretendemos que os jovens desenvolvam um pensamento crítico, baseado no conhecimento”, diz. Isso significa fazer com eles um percurso didáctico sobre migrações forçadas, o contexto geopolítico, a realidade dos países de origem dos refugiados, o direito de asilo, os direitos humanos...
É nesse percurso que surge o encontro com um refugiado, que servirá de base a um conto que os estudantes escreverão para um concurso literário. “Não se trata de um relatório, mas de se meter na pele daquela pessoa, fugindo à guerra e enfrentando viagens cheias de riscos. E contar isso com um ponto de vista e sensações.”
Mais de 15 mil jovens participaram na última edição do concurso. “O objectivo não é convencer, mas permitir uma experiência e pôr os jovens ao corrente desta realidade, a partir do testemunho, que é o que a televisão não mostra.” A memória histórica da Itália enquanto país de emigração também serve de recurso, recordando as histórias da emigração económica dos pais ou das emigrações dos avós após a destruição da II Guerra Mundial.
Francesca Cuomo tem consciência de que este é um trabalho de paciência, que se confronta com uma opinião pública em que a recusa da diversidade tem crescido. “O que fazemos é plantar uma semente de mudança de mentalidade. Na aula, eles são mais do que 25, porque depois falam com os pais, os amigos... É só um instrumento, talvez pequeno, mas poderoso, para mudar as mentalidades.”
“A política aldraba a realidade”
Donatella Parisi, responsável pela comunicação no JRS Itália, está consciente de que a tarefa é árdua e o ambiente cada vez mais difícil. “A política aldraba a realidade e a mensagem positiva fica mais frágil.” O seu dedo aponta responsabilidades graves a muitos políticos e meios de comunicação: “O binómio imigração igual a terrorismo é cavalgado por políticos e pelos media. Tentamos apelar à responsabilidade e à deontologia dos jornalistas, contra as campanhas de ódio que já estão muito estudadas.”
Nota-se tristeza na voz. “Há uma estratégia política muito precisa num momento muito delicado”, diz. Por isso, os 63 mortos de Junho, num novo naufrágio, ou o mês e meio de navegação do Aquarius à espera de autorização para atracar num porto europeu já quase não são notícia, admite. É o “racismo e xenofobia” a crescer, diz.
O padre franciscano Vittorio Trani, que reuniu os voluntários da prisão Regina Coeli no Angolo del Pellegrino, para ajudar imigrantes, refugiados, pobres e sem-abrigo, não dramatiza as palavras, mas olha a nova realidade como “muito difícil”. Os media também não ajudam, com a mensagem de que entre os refugiados podem vir terroristas. Há muitos elementos de confusão, diz, e o panorama “não permite pensar o fenómeno” na sua globalidade: pouca clareza no sistema de acolhimento, a “voz comum”, que não corresponde à realidade, de que os refugiados vêm roubar o trabalho...
“A propaganda não se baseia na realidade”, sublinha Donatella Parisi. Há cada vez menos refugiados a chegar, depois do acordo que a União Europeia fez com a Turquia: entre Janeiro e Junho deste ano entraram em Itália apenas 18 mil pessoas, num país de 65 milhões, observa. “Pagamos à Turquia, que não protege os refugiados.”
Os meios de comunicação falam de uma emergência que afinal não existe, os políticos não resolvem os problemas e apanham a onda, como tem feito o novo ministro Salvini. “Ele já criticara, enquanto deputado europeu, o acordo de Dublin”, que atribui ao país de acolhimento a responsabilidade pela integração. Rejeita-se pois a ideia de que Grécia, Itália e Espanha são os que têm a factura mais alta.
No Conselho Europeu de Junho, o problema foi mais uma vez adiado, critica Donatella: “Foi um grande falhanço, nem sequer se previu a reforma do tratado de Dublin.”
O padre Vittorio insiste em que não se pode apenas fazer entrar as pessoas. É preciso “estar na primeira fila para ajudar de modo completo”, ou seja, “acolher de forma a dar uma vida digna às pessoas, acolher com inteligência, ter a coragem de dizer, como o Papa, que a pessoa é uma pessoa”.
Da bomba de Hiroxima à cave
Na portaria do Centro Astalli (o nome vem da rua onde se situa), vê-se uma fotografia do Papa quando visitou a instituição, há cinco anos. Logo a seguir, um gabinete minúsculo: duas secretárias, um relógio de parede, móveis de arquivo. Três voluntários fazem a primeira triagem de quem chega, respondem a pedidos de informação, entregam correspondência — quem não tem morada dá a direcção do centro — e impõem a ordem quando necessário: por exemplo, quando um homem e uma mulher se envolvem numa discussão acesa. Ela traz uma mala, será a “bagagem de sofrimento” de que falará o padre Camillo?
Foi na cave do edifício que tudo começou, há mais de 35 anos: o padre Pedro Arrupe, que estava em Hiroxima quando a bomba nuclear foi lançada, viu as imagens dos boat people do Vietname e quis ajudar os refugiados. Além do apoio nos países asiáticos atingidos pela crise, grupos de voluntários organizaram-se em Roma para distribuir comida, organizar serviços de ambulatório, promover aulas de italiano...
Hoje, é aqui que se concentram os serviços de distribuição de comida, duches, gabinetes de apoio médico e jurídico, serviços de apoio para a segurança social ou a vítimas de tortura... No último ano, mais de 14 mil pessoas foram aqui atendidas, só em Roma, mas o número chegou a cerca de 30 mil nas cinco estruturas do Centro Astalli/JRS em Itália. Uma realidade só possível com os 50 funcionários e 450 voluntários que ali trabalham.
Um desses voluntários é Renzo Giannotti, 73 anos, farmacêutico aposentado que há dez anos faz o serviço ambulatório, complementando os dois médicos que dão consultas todas as tardes. É ele que guarda as fichas clínicas dos refugiados que por lá passam e que distribui os medicamentos (doados por outros amigos farmacêuticos ou alguns laboratórios) mais necessários para patologias menos graves — gripes, constipações, dores, problemas de digestão — ou para tratar alguns problemas crónicos.
No Verão, 15 a 20 pessoas recorrem diariamente ao serviço. A maior parte são homens jovens, a média etária é de 25 anos. Os casos mais graves são enviados para especialistas amigos ou para as urgências hospitalares, se há necessidade de intervenção imediata.
Oitenta por cento dos que procuram os diferentes serviços do Centro Astalli são muçulmanos — por isso, não se distribui álcool nas refeições ali servidas. “Aqui verifica-se um diálogo de vida. Quando o Papa veio, fez-se uma festa e quase todos eram muçulmanos”, conta Donatella Parisi. A maior parte dos que chegam são homens, mas muitos sírios vêm em família e, do Congo, há muitas mulheres que trabalham.
“Não havia esperança, nada...”
Em 2015, o papa Francisco apelou a que instituições católicas convertessem as casas que estivessem vazias em centros de acolhimento de refugiados. Até agora, cerca de oito mil pessoas foram acolhidas nas 35 instituições que responderam imediatamente e noutras que o fizeram depois.
Os Missionários Scalabrinianos — o nome vem do fundador, o bispo Giovanni Battista Scalabrini que, em 1887, fundou a congregação para trabalhar precisamente com os imigrantes pobres — fizeram-no, transformando o antigo seminário, vazio, na Casa Scalabrini. Residem ali 32 refugiados, a maior parte de origem africana — por lá já passaram mais de 120, nos últimos dois anos. Significativamente, além da capela que já existia na casa, criou-se um espaço para a oração muçulmana.
“Não podíamos fazer mais nada do que abrir as portas e pensar em algo que fosse bom para as pessoas”, diz Emanuel Selleri, missionário leigo, que esteve antes na América do Sul e agora é um dos responsáveis da casa. “Eles vieram primeiro pelo deserto, depois pelo mar. Os que conseguem chegar vêm muito traumatizados e com medo de não serem aceites.”
Por isso, ali, em cerca de seis meses, sempre em comunidade, formam-se os refugiados para os munir de possibilidades de trabalho — língua italiana, carta de condução, noções básicas de economia, direitos e deveres de cidadão — e forma-se a população do bairro social em volta para acolher a diversidade. Uma rádio privada serve para os refugiados expressarem mais intimamente a sua história, os seus anseios, num momento “íntimo, quase terapêutico”.
O padre Gabriele Beltrami, 47 anos, responsável pela comunidade, diz que há refugiados que querem regressar ao país de origem. Não é o que pensa o nigeriano Odine Gideon, que prefere ficar na Europa: no seu país, “não havia esperança, nada...” Por causa destas situações, Emanuel acrescenta: “Fechar as fronteiras não é solução, este é mais um drama que esta política europeia e italiana está a colocar no nosso coração: fecham os portos, mas os refugiados chegam por outro lado.” E o desabafo: “Como italiano, não posso mais com isto...”
O Centro Astalli também tem quatro casas para acolhimento e residência de refugiados. Num deles, o da via San Saba, residem 20 homens, actualmente, explica Giuseppe Coletta. Procura-se criar autonomia, neste caso através de um projecto experimental de trabalho em serigrafia. “Permite estabelecer relação entre pessoas que normalmente vivem sozinhas”, explica Donatella.
O autocarro cheio e Franck
Não tem havido só boas notícias, mesmo nestas instituições: houve paróquias onde várias pessoas abandonaram as missas, quando os párocos anunciaram o acolhimento de refugiados em instalações paroquiais. No início de Agosto, um gambiano acolhido na paróquia de Vicofaro, na Toscana, foi alvejado a tiro quando saiu à rua. Seria necessário alargar a rede de acolhimento e acção, diz Donatella, com católicos, outros cristãos, sindicatos e diferentes organizações.
No Angolo del Pellegrino, criado há seis anos pelo padre Vittorio, também se faz a distribuição de comida e de roupa, há lavandaria, apoio médico e farmacêutico, apoio jurídico e para a burocracia do Estado. Não se gasta dinheiro, explica o capelão da prisão Regina Coeli, pois tudo é oferecido e recolhido por uma rede de voluntários. À hora de jantar — pão, bebida, arroz e frango para 30 pessoas —, vários carregam a bateria do telemóvel, objecto que permite a ligação ao mundo e o acesso a informação. Diariamente, há pequeno-almoço às 8h, pizza às 11h e uma ceia às 19h. Vinte pessoas podem dormir nos anexos da Igreja de San Giacomo.
Ricardo, um romano de 50 anos (um dos poucos europeus), sem-abrigo, tem falta de trabalho e problemas cardíacos a mais. “Ao menos tenho comida. Caso contrário, ia para supermercados pedir esmola.” Simon, 53 anos, veio do Líbano, ficou sem nada há um ano: separou-se da mulher, teve de ser operado, perdeu o trabalho. Hoje dorme na rua. Pedro Celeita guarda da visita do Papa à cadeia onde tem estado a recordação do momento em que Francisco lhe pediu: “Quando saíres em liberdade, toma um café e reza por mim.”
São amargos alguns cafés que Franck ainda toma. Há pouco tempo, num autocarro, uma mulher virou-se para ele a dizer que por sua causa é que o transporte estava cheio. “Em vez de pedirmos todos mais autocarros, sou eu o culpado por o autocarro ir cheio. Saí na paragem seguinte. Ou, se dou o lugar a alguém, ainda me dizem que a gentileza era ir para o meu país.”
O machado que lhe fazem sentir em cima da cabeça não lhe corta a raiz do pensamento: “Vim para um continente democrático, supostamente civilizado, que deu muita coisa a África. Mas que descarrega sobre os refugiados e os imigrantes a ideia de que a crise é culpa nossa.” E acrescenta: “As pessoas são mal informadas por muitos políticos, pelos meios de comunicação. Antes, os maus eram os italianos que emigravam ou os do Sul de Itália que vinham para o Norte. Hoje, somos nós. Raramente somos chamados para falar...”
A tortura a que Franck foi sujeito cicatrizou nas pernas. Continua, no coração, gravada a sangue.