O enxoval, ou o destino numa arca
Lençóis, toalhas, bordados, heranças. Numa arca guardava-se "uma carga simbólica de aprisionamento feminino" no casamento e no lar. Foi substituído pela universidade, pela profissão, pela compra rápida. O enxoval enquanto objectivo social está em perda, mas ganha sempre na memória familiar e nos afectos. Último texto da segunda série Objectos (quase) obsoletos, em que olhamos para o que foi substituído, eliminado ou transformado nas casas portuguesas nas últimas décadas.
Victor Castro é um homem no meio de enxovais. Trata os bordados por tu e na sua loja verde-água, a Príncipe Real Enxovais, debita os números com os quais o país, talvez sem pensar muito nisso, já se conformou. “Quando a minha mãe abriu esta loja havia 30 e tal lojas de enxovais em Lisboa e arredores. Agora estamos reduzidos a duas.” A socióloga Sandra Marques Pereira confirma: “Enxoval é algo que nos é obsoleto, é minoritário.” Mas a mulher que entra na loja lisboeta continua a ser recebida com o mesmo entusiasmo e cortesia de há sete décadas. Afinal, “esta é uma casa de rainhas, você é uma princesa”.
No rol do enxoval de 2018 pode estar a tanga de Durão Barroso, as três camisas de dormir de Beatriz Costa ou a primeira mulher de Michael Douglas. O enxoval é um conjunto de objectos cuja ausência ocupa lugar. Um espaço simbólico tão central como era a sua presença física, guardado numa arca de cânfora, na vida dos últimos séculos. É também um conceito e uma prática que depois de séculos em vigor desacelerou abruptamente em poucas décadas – talvez sobretudo nos últimos 30 anos. Construir um enxoval de casamento é uma tradição nascida no século XIV e associada de perto à prática do dote, que punha uma rapariga na pole-position da montagem de uma casa e do começo da sua vida. Como esposa e fada do lar.
“Ainda tenho uma arca com o enxoval da minha filha de 26 anos, que a minha mãe fez para a neta”, comenta Victor Castro. Espera que um dia ela lhe suceda no negócio dos enxovais, mas por agora a jovem segue a carreira diplomática noutros países. “A minha mãe morreu com 94 anos, ainda a trabalhar aqui”, continua Victor Castro, um septuagenário vigoroso. “Ela começou por fazer enxovais na casa onde nasci, aqui ao pé da Praça das Flores. Depois começou a ter empregadas e chegou a ter 30 e tal só em casa a bordar. E eu pequenino, a gatinhar debaixo das saias das bordadoras, fui praticamente criado no meio ambiente.”
Maria Cristina Castro fez o enxoval mais completo e dispendioso para o casamento de Diandra e Michael Douglas. Apesar de ter vendido também para Jackie Kennedy, Grace Kelly ou para a rainha Máxima da Holanda. Inaugurou a loja em 1960, decorando-a tal e qual como está hoje com a ajuda do filho, e chegou a ter 230 bordadoras a trabalhar para as clientes, sobretudo as ricas mulheres dos banqueiros e as latifundiárias do Alentejo. Uma loja de preciosidades que “só não conhecem os jovens, porque toda a gente de idade conhece esta casa”, garante Victor Castro. Dobra e desdobra toalhas únicas bordadas à mão com preços de quatro dígitos. Abrem-se gavetinhas para mostrar lenços e enxovais de bebé. A clientela renova-se, mas não volta a ser o que era.
Já não há avós com dinheiro
Nascer rapariga nas últimas quatro décadas era quase garantia da construção de um enxoval para um futuro casamento, normalmente mantido em segurança numa mala ou arca que, pelo menos a cada Natal ou aniversário, ganhava novos tesouros – mesmo que a contragosto das filhas e netas que queriam era receber uma bicicleta ou uns ténis mais cobiçados. “Era um objectivo de grande parte dos grupos sociais”, reflecte Sandra Marques Pereira, investigadora do ISCTE e especialista em temas ligados à habitação. “Mesmo dos grupos menos privilegiados.”
No final do século XIX, nos meios rurais portugueses, criar um enxoval, ou bragal, era um objectivo acompanhado de um dote, quando possível, dinheiro para ajudar o novo casal. Entre as donas de casa do Norte, um “bom bragal” era uma “arca de castanho cheia de roupa branca, alva de neve, rescendendo ao aroma do feno”, como descreve Sousa Viterbo em 1912 em Influencia do progresso nas industrias caseiras e domesticas, citado na História da Vida Privada em Portugal. Já em 1920, como mostra uma imagem de um armário carregado com um belo bragal, retirado da Revista ABC, “a cerimónia de noivado ou esponsais só era realizada pelas famílias mais gradas. Mas com ou sem ritual, ajustado o casamento, iniciava-se ou intensificava-se a preparação do enxoval da futura esposa, contratando-se modistas, percorrendo os armazéns, confeccionando a própria noiva parte do seu bragal”.
As disparidades económicas impediam que este objectivo social transversal, bem como o ideal de mulher do Estado Novo, exclusivamente dedicada ao lar e à família, fosse cumprido por todos. Era preciso trabalhar fora e nem sempre havia dinheiro para grandes linhos, estopas e bordados, muito menos arcas de cânfora. Mas a aldeia mitificada seria sempre a da roupa branca, com “Três corpetes, um avental/ Sete fronhas, um lençol/ Três camisas do enxoval/ Que a freguesa deu ao rol” no trinar de Beatriz Costa nos anos 30.
Na era colonial, os enxovais viajariam também com os portugueses para o chamado UItramar – "A arca da minha mãe foi para Moçambique com o seu enxoval, nas entranhas do [paquete da Companhia Colonial de Navegação] Infante”, relata Isabela Figueiredo no seu Caderno de Memórias Coloniais (2009).
Noutra parte da experiência portuguesa, e desde meados do século XX, encontrávamos a clientela da Príncipe Real Enxovais. “Os principais clientes, que mais fama davam a esta loja, eram todos os banqueiros – Champalimaud, Espírito Santo, Mello, Pereira Coutinho”, elenca Victor Castro, que fala com carinho das clientes Mary Espírito Santo ou Amália Rodrigues.
“Na década de 70, 80 e 90, quem pagava os enxovais em Portugal era a avó e a mãe. Vinham com a filha casadoira para fazer o seu enxoval. E havia avós e mães que assim que nascia um filho ou mais um neto começavam logo a fazer o enxoval. Entre as classes médias e os mais ricos, do Alentejo, os enxovais eram feitos na própria casa pelas mães e avós, e punham as filhas todas a bordar. Não havia televisão e a diversão era tudo a falar à noite a bordar para o enxoval. Os mais ricos, quando não estavam para fazer isso, vinham aqui.” Victor Castro tem a história na ponta da língua. Ela acabava com Maria Cristina a entregar tudo “em caixinhas muito bonitas e em papel de seda”.
Mas “desde que o Durão Barroso disse que isto estava tudo de tanga, começou a desaparecer esta gente toda, já não havia avós com dinheiro, já não havia mães com dinheiro, as mães agora trabalhavam. Acabou-se, é a própria noiva que vem”, dispara o comerciante. “O que não quer dizer que não haja casos excepcionais como a senhora que vende peixe lá em baixo no Mercado da Ribeira e que quis daqui o melhor que houvesse para a filha que ia casar.”
Nas últimas poucas décadas, ou as arcas ficaram para trás enquanto as raparigas faziam outros caminhos, ou os seus conteúdos viajaram com elas para vidas independentes. Nos centros urbanos e mesmo nas localidades mais pequenas, é menos frequente "fazer enxoval" ou algum jovem ter um enxoval à sua espera quando atingir o patamar da emancipação. Monta-se casa sozinho ou acompanhado, aluga-se quarto ou casa, comprar é mais difícil, mas às compras para os panos, lençóis e mobílias de montagem rápida é mais fácil.
Aprisionamento feminino
As finanças esticam e encolhem – e também deixaram de ter um só fim. O enxoval claramente “simboliza uma concepção da mulher e da família”, atesta ao PÚBLICO Sandra Marques Pereira, também autora de Casa e Mudança Social (2013). “É um objecto que, para os padrões contemporâneos, tem uma carga simbólica de aprisionamento feminino e de destino e acredito que isso [hoje] seja repudiado pela maioria porque significa a responsabilidade no tratamento da casa” exclusivamente para a mulher, analisa. “É um símbolo de uma perspectiva completamente anacrónica do que é a mulher e a família” – e do matrimónio como destino único.
Vânia Estima, de 25 anos, cresceu numa aldeia na zona de Albergaria-a-Velha. A mãe e a tia, duas irmãs com dois anos de diferença nas idades e nascidas entre 1968 e 70, tiveram enxovais “exactamente iguais”. A mãe de Vânia casou, teve a filha, “tudo como os chamados parâmetros da sociedade exigiam”, conta ao telefone. A irmã não, e a avó de Vânia muitas vezes era ouvida a queixar-se: “Gastei tanto dinheiro no teu enxoval e não te casas?” Vânia Estima viu construir o seu próprio enxoval, embora algumas das suas amigas e contemporâneas não tenham passado pelo mesmo processo. A socióloga Sandra Marques Pereira é cautelosa na avaliação do fenómeno, salvo em dizer que se trata de uma prática em desuso excepto em “certos segmentos sociais mais conservadores, mais católicos” ou “eventualmente em certos meios rurais”, diz, para quem “a ideia do casamento continua a ser algo cristalizado”. A tradição tem o seu peso, mas hoje um enxoval é o que fazemos dele.
“Tenho uma arca desde pequena, sempre no meu quartinho, e a minha mãe e as minhas avós sempre que tinham algum dinheiro ou viam algo de útil iam lá juntando”, conta Vânia Estima. Não só têxteis, mas também tachos ou talheres. A mãe de Alexandra Silva, de 39 anos e que cresceu na Piedade, perto de Águeda, também preparou um enxoval para ela e para a irmã de 34. Parte dos enxovais de Alexandra e de Vânia tiveram o mesmo destino: acompanharam-nas, solteiras e boas raparigas, na ida para a universidade. Hoje Alexandra é professora, Vânia fisioterapeuta.
“Fui a primeira pessoa da minha família a ir para a universidade e a minha mãe percebeu que quando eu saísse de lá não ia voltar”, conta Alexandra. Parte do enxoval foi com ela para Coimbra. “Quando fui para a universidade”, recorda Vânia, o enxoval “foi uma grande ajuda” entre despesas como as propinas. “Calhou mesmo bem estar tudo prontinho.”
O investimento social no matrimónio “foi substituído por outras coisas, nomeadamente o investimento na educação", confirma Sandra Marques Pereira. "A maior parte dos projectos para os pais, mesmo para as filhas – e as mulheres hoje estão em percentagem bastante superior no ensino superior – passam muito pelo capital escolar e pelo investimento profissional. As pessoas hoje não têm tanto um projecto de vida que seja condicionado pelo casamento – é a autonomia, é a tentativa de realização pessoal através da profissão.”
O que não quer dizer que se abra mão do sonho que se tem em casa aos pés da cama. Há peças, como as rendas feitas pelas avós e panos e toalhas pintados à mão “que não ponho a uso por respeito”, diz Vânia Estima. Têm valor afectivo. “Os linhos, as colchas que valem muito dinheiro com bordados à mão, isso a minha mãe não liberta – e estão guardados na arca”, acrescenta Alexandra Silva. “E há peças de enxoval que já serviram – durante dois dias, na Páscoa e na festa da terra. E voltaram exactamente para o mesmo sítio. Para a arca.”
O enxoval é uma experiência internacional, encontrada em força no Brasil actual ou na Kerala da indiana Arundhati Roy no seu Deus das Pequenas Coisas. Na Alemanha estão também em armários altos, com baixelas e trens de cozinha à mistura. O “trousseau” francês também define enxoval em inglês. Na Austrália chamam-lhe “glory box”, como a emblemática canção dessa espécie de última era forte dos enxovais, os anos 90 dos Portishead, e os americanos de 1955 já lhe chamavam a "hope chest", como aquela onde Lorraine pousa as calças de Marty McFly em Regresso ao Futuro. Os rapazes também podem ter enxoval, é certo, mas são uma minoria.
Nas últimas décadas, as camas cresceram, os edredons assentaram, o comércio globalizou-se, a manufactura não parece competitiva. Os gostos individualizaram-se. As peças de linho não são tão práticas, os lençóis podem não servir nas camas, as colchas de renda pesam. Compra-se peças de enxoval, mas as lojas especializadas são raras. E “tudo o que é bordado manual torna-se caro porque o preço das bordadoras é dez euros à hora, um napperon demora um dia a fazer, 80 euros para o fabricante”, enumera Victor Castro. "Antes, recorríamos às 900 e tal fábricas na ilha da Madeira; neste momento só há duas. Os Açores tinham 19 fábricas, neste momento só têm uma.”
Hoje tem bordadeiras na Lixa, “das melhores”, e diz ser a única casa de enxovais lisboeta em que tudo é feito à mão. O preço de um bom enxoval, de manufactura, é três mil euros. Todos os dias, apesar de tudo, faz boas vendas e por vezes bem avultadas. Mas de peças avulsas. “Fazíamos dez a 30 enxovais por mês, passou a um por mês e a um por ano. Este ano não tive nenhum. Estou aqui para perpetuar o nome da minha mãe, que é famosa em todo o mundo.”
A construção, manutenção e transmissão do enxoval é ainda praticada como “legado patrimonial de uma cultura familiar”, remata Sandra Marques Pereira – guardar o que foi das mães, avós, bisavós. O futuro dos enxovais pertence para já aos bebés, sempre candidatos à construção do devir em algodão macio. Já o seu presente pode muito bem ser aquele que Vânia Estima conjuga. “Hoje a arca é a minha caixinha dos tesouros, é mais uma caixinha de recordações do que um enxoval. Pus lá algumas das minhas recordações de infância, uma prenda de família mais especial, um poema, uma assinatura do meu avô. É onde vou para aumentar o calor interior, procurar alguma orientação.”