Old Spice, o cheiro e o frasco que guarda os anos 70 e 80

Um aftershave resumiu uma visão do masculino a partir da prateleira da casa-de-banho. Tornou-se sinónimo de conservadorismo — ou será de conforto? Renasce mas continua a cheirar a homem, a anúncio com surfistas e ópera. Cheira a pai. Na segunda série Objectos (quase) Obsoletos olhamos para o que foi substituído, eliminado ou transformado nas casas portuguesas nas últimas décadas.

Garrafa de vidro
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Fotografia, presente, imagem
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No Natal de 1971, as ideias para prendas incluíam um conjunto de Old Spice NCJ Archive/Mirrorpix/Getty Images
Licor, garrafa de vidro, vinho
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Anúncio, Shulton Old Spice Men's Fragrance, 1964, Saturday Evening Post DR

Quando se menciona o Old Spice, a resposta varia. “Carmina Burana!”, e começa o trautear de O Fortuna, da cantata de Carl Orff que marcou a publicidade do famoso aftershave nos anos 1980. “Smell like a man, man”, papagueia-se da campanha que o ressuscitou no mercado dos EUA e no YouTube do mundo. Ou lá vem a frase que encerrava a publicidade em qualquer país, “the mark of man”. É de homem, o Old Spice, um frasco leitoso e emblemático que vaporizava as casas e os homens do Portugal das últimas décadas do século XX. Descreve os anos 1970, de Serge Gainsbourg a O Tubarão, e finca-se nos anos 1980. No fundo, “é o perfume de uma geração”, como postula o perfumista Lourenço Lucena. É, para muitos, sinónimo de “pai”.

A nove mil quilómetros de Portugal, Adam Tschorn escreve sobre o frasco de Old Spice do pai que guardou após a sua morte. O cenário caseiro era o mesmo que em qualquer casa de banho portuguesa de há três, quatro, cinco décadas. Um frasco de Old Spice, uma lâmina de barbear robusta, um pincel de pêlo. Aquele frasco de loiça em forma de bóia, nascido há precisamente 80 anos numa empresa que começou por fazer um Old Spice destinado a mulheres, guardava em si o aftershave transversal. A colónia Old Spice seguia o mesmo caminho. Em Los Angeles ou em Lisboa, ou numa aldeia da Covilhã, era paisagem caseira.

“As recordações do meu pai tornaram-se ainda mais fortes, deixadas a flutuar por um frasco vintage — e ainda meio cheio — de Old Spice”, escreve Tschorn no Los Angeles Times sobre um frasco com 50 ou 60 anos que mereceu uma crónica no último Dia do Pai. Umas gerações mais novo que Tschorn e que o seu pai, o fotógrafo beirão Marco Gil resumia afectuosamente o seu progenitor numa crónica no P3 sobre a memória e os sentidos: “O meu pai é isso e umas peúgas cinzentas de algodão com quase tanto borboto como tecido, é também Old Spice e uma camisa de flanela só para os domingos”.

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Old Spice é um cheiro e um objecto, e tinha um lugar tão central nos hábitos portugueses que com os anos se tornou também num instrumento para recuar no tempo. Ou para descrever quem ficou preso nele. Outra resposta quando se fala do Old Spice, criado por Albert Hauck em 1938 para a Shulton Company e que desde 1990 pertence à gigante Proctor & Gamble, pode ser um olhar inquisitivo e uma ideia vaga do que representou de facto na época. Vende-se há 80 anos mas o clímax da sua relação com a cultura foi há décadas. Apesar de uma bem-sucedida campanha de relançamento em 2010/11, e de se manter no mercado com outra retórica, para quem viveu a era Old Spice ele também pode cheirar a conformismo.

Como quando “às cinco e meia uma invasão de Old Spice anuncia o despejo de dezenas de funcionários públicos com tendências conservadoras”, como descreve Valério Romão no seu livro Dez Razões para Aspirar a Ser Gato (2015). Ou quando é usado pelo cronista José Diogo Quintela como um adereço para recuperar Salazar nos tempos da austeridade: “É ir então ao Vimieiro e desencovar o que sobra do tirano, borrifá-lo com Old Spice e pô-lo em contacto com a troika”, atirava.

Um homem à antiga

Foi nas décadas Old Spice que Lourenço Lucena viveu, como recorda, as suas “primeiras experiências olfactivas”. Hoje, “a dimensão do mercado é bem maior do que há 40 ou 50 anos”, contextualiza ao PÚBLICO. É um nez, um nariz profissional, um compositor de perfumes e o único português membro da restrita Société Française des Perfumeurs. Grato pelas memórias, não as trocaria pelo momento actual, “muitíssimo mais interessante do que há 30 ou 40 anos, no tempo em que o Old Spice e Aqua Velva tinham a sua hegemonia”.

Um anúncio português da concorrente do Old Spice, datado de 1966, intrigava-se: “Há ‘qualquer coisa’ naquele homem: ‘Aqua Velva!’”, respondia a mesma publicidade sobre o rosto de uma mulher perspicaz envolto pelas mãos de um homem. O anúncio era para ele — e a aplicação do aftershave era, garantia-se, sinónimo de “um dia... ou uma noite... de sucesso”. De Aqua Velva ao Drakkar Noir nascido já em 1982, as mensagens destes perfumes acessíveis e aftershaves imprescindíveis eram claras. O homem era assertivo, o seu público — feminino — ficava rendido.

Nos anos 1980, o Old Spice era vendido para o homem à séria, que arreia um cavalo num instante ou surfa ondas de quatro metros, “para quem gosta de um desafio… ao sucesso” como dizia o anúncio de 1987 que passava na RTP. O objectivo era sempre esse, o sucesso. Esse homem todo poderoso até dá a volta ao planeta num veleiro — em 2000, o iate que assinalou a circum-navegação de Sebastião Elcano e Fernão de Magalhães chamava-se precisamente Old Spice.

O Old Spice terá sido “dos primeiros perfumes ditos para o grande consumidor — e na época era mais fácil vender mais aftershaves do que perfumes. Era um aftershave com um aroma muito característico, muito fresco. A fórmula clássica é uma composição marinha com notas aquáticas frescas e notas aromáticas bastante evidentes”, recorda Lourenço Lucena. Era o que “se procurava nesse segmento na época — perfumes muito frescos, com notas de madeira bastante masculinas, o vetiver, as madeiras aromáticas como o cedro, mesmo o sândalo. Porque os perfumes masculinos eram muito masculinos”, no sentido mais convencional. Evoca outros perfumes coevos como o Aramis ou o Azzaro, “muito amadeirados, muito aromáticos, um aromático denso, masculino, com uma personalidade masculina vincada — chegava e sentia-se que estava a chegar”.

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Era um cheiro acessível e forte, um cheiro para todo o serviço. Steven Spielberg que o diga. Quando pôs Roy Scheider num barco em Tubarão (1975) a arranjar isco para atrair o predador do filme que mudou o cinema, a personagem do chefe Brody encharcou um pano em Old Spice para se proteger com o mítico aroma, um escudo olfactivo contra o cheiro aviltante do balde onde vasculhava. O realizador voltaria a confirmar o frasco com um navio azul e letras vermelhas como ícone dos anos 1970 e 80 quando, explorando o seu habitual tema dos pais ausentes, os meninos Mike e Elliott cheiram, saudosos, as camisas dos pais cada vez mais distantes em E.T. - O Extra-Terrestre (1982). “Old Spice”, inspira Mike.

O objectivo de Serge Gainsbourg era diferente. Internado em 1973 com o primeiro dos seus dois enfartes, a primeira coisa que o poeta da canção francesa pediu à mulher, Jane Birkin, para ter no hospital foi o seu frasco de Old Spice. Como ela recordou à Vanity Fair, achou que “ele estava a tornar-se muito caprichoso” com tais pedidos e vaidades, mas afinal o que Gainsbourg queria era camuflar o cheiro dos cigarros que continuaria a fumar no hospital.

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No Natal de 1971, as ideias para prendas incluíam um conjunto de Old Spice NCJ Archive/Mirrorpix/Getty Images

“Homem que é Homem”

Hoje, e sobretudo depois do seu relançamento em 2010 com uma campanha forte e premiada em Cannes e nos Emmys que espalhou o musculado Isaiah Mustafa e o ainda mais trabalhado Terry Crews pelas televisões e pela Internet, o Old Spice está em franca recuperação. Antes dessa campanha, revistas especializadas como a Ad Age escreviam que “a Old Spice está a esfumar-se na história”, depois dela tinha o canal mais popular no YouTube.

Em Portugal, e como disse ao PÚBLICO a gestora de marca da Unibrands Teresa Coelho, “é uma das marcas mais conceituadas para o público masculino” e o seu aftershave, que foi mudando de fórmula, ganhando declinações, nova embalagem e frasco, é este ano o aftershave com maior crescimento de vendas. “Oscila entre a 2.ª e a 3.ª posição na categoria” e “tem aproximadamente 10% de quota de mercado”, estando “presente na generalidade das lojas de grande consumo que representam cerca de 15 mil pontos de venda em Portugal”, diz a empresa de gestão e distribuição de marcas, que tem a Old Spice no seu portefólio.

Nos hipermercados, lá está ele, com o vermelho a dominar agora a sua identidade. Lourenço Lucena recorda outro contraste com o passado: “Era um produto que encontrávamos sobretudo nas drogarias, em espaços que também se perderam, outra coisa que também se tem vindo a evaporar com os novos modelos de grande distribuição. Encontrávamos aguarrás, petróleo ou os sabões para lavar as escadas mas também produtos de toilette, como era hábito denominá-los”.

Ainda se encontra nas drogarias e lojas de utilidades das cidades, da Rua do Benformoso lisboeta às grandes superfícies de todo o país, porque a sua história não é de um desaparecimento. O seu mercado, e o seu homem, é que mudaram. “Era um tempo em que as escolhas eram muito mais limitadas e isso levava a que existisse uma massificação maior dos hábitos. Hoje, com a multiplicidade de perfumes, marcas e ofertas a individualidade ganhou outra importância. Hoje é muito mais fácil termos uma identidade olfactiva própria, que não faça lembrar o nosso pai, o nosso amigo ou o nosso colega de trabalho”, congratula-se Lucena, também CEO da agência criativa Blug.

Neste negócio milionário, muitas marcas clássicas foram recuperadas, os fundos de investimento entraram no sector e marcas mais estáticas perderam terreno. “O fim dessa hegemonia vem com a modernização e evolução da indústria da perfumaria nos últimos 30 anos”, explica o perfumista. Outras recuperaram, também graças a campanhas como a do regresso da Old Spice, que se dirigia sobretudo às mulheres apresentando “the man your man could smell like” — “o homem a que podia cheirar o seu homem”.

Do clássico sedutor à Corto Maltese dos anos 1960 e 70 passou-se ao surfista corajoso para yuppie ver nos anos 1980, e os navios transformaram-se em iates elegantes. Marcas como a Axe entraram no mercado dos sedutores olfactivos, homens cheirosos nos transportes públicos e nas ruas publicitárias, ímanes de mulheres indefesas. Portugal assistiu ao relançamento da Old Spice em 2011 com a campanha “Homem que é Homem”, que além de ter Terry Crews e Isaiah Mustafa na Internet pôs por escrito que “Homem que é homem não usa roupa interior. Usa cueca” ou “Homem que é homem não apanha fruta. Abana a árvore” nos jornais. A masculinidade redefiniu-se e além de mais individual, ri-se da sua hipérbole.

Não há pai para a marca do pai, parecem querer dizer os publicitários, apostados no exagero nos anos da metrossexualidade, da pansexualidade, dos lenhadores sensíveis e das barbas rijas mas meticulosamente tratadas. Entre o passado e o presente, num mundo heteronormativo onde outros modos de vida tentam afirmar-se igualitariamente, a sua abordagem de hipermasculinidade não tem sido isenta de críticas. Em altura de campanhas de Natal, Miguel Esteves Cardoso defendia há uns anos que a melhor água-de-colónia masculina é a Old Spice, embora o seu aroma tenha mudado um pouco. Mas lamentava: “No Natal de 2013 precipitou uma crise de masculinidade. O Old Spice, antigamente, era o after-shave de quem não pensava nessas coisas. Hoje, pelos vistos, precisa de reafirmar, ridiculamente, essa masculinidade”.

As mudanças do Old Spice tornaram um frasco branco clássico em desodorizantes ou gel de banho vermelhos com nomes novos como "Bearglove" ou "Wolfthorn". Em paralelo, os coleccionadores guardam e trocam frascos vintage no mercado da nostalgia. A sua hegemonia material e olfactiva é uma história de outros tempos. Por isso se diz “o Old Spice cheira a memória”, como escreveu Alan Stokes no jornal australiano Sydney Morning Herald.

A memória, o pai, um objecto ou um cheiro que nos leva a casa são constantes de que precisamos. Que por vezes procuramos para viver. Las Vegas, 2010. Glenn Harrington, de 44 anos, vivia nos túneis daquela cidade norte-americana e o Los Angeles Times acompanha-o na recordação de quem deixou para trás quando finalmente saiu das ruas. “Começou a listar as coisas que os seus antigos vizinhos não tinham. Um frigorífico. Desodorizante Old Spice. Comida quente, duche quente, café quente. O sentimento de dignidade que acompanha tudo isto.”
 

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