Carlos Martins: “Foi a primeira vez que ouvi um som e disse: eu tenho de fazer isto”
Saxofonista, animador do projecto Sons da Lusofonia, Carlos Martins escolheu o disco que o empurrou para o jazz. Uma noite, desceu umas escadas e ouviu Duke e Coltrane.
Alentejano nascido em Grândola, em 1961, até àquele momento Carlos Martins “nunca tinha ouvido jazz na vida, nem na rádio nem em discos.” Até que, numa viagem a Lisboa com a namorada, tinha ele 17 anos, entrou por sugestão dela no Hot Clube. “Quando entrei estava a tocar um disco do Coltrane com o Duke Ellington. Nunca mais me esqueci disso, porque foi a primeira vez que ouvi um som e disse: eu tenho de fazer isto.” O que ele fazia antes já andava lá perto: tocava num conjunto de Grândola, em saxofone e clarinete, Mack the knife ou temas de Louis Armstrong “durante horas, nos bailes, para o vocalista descansar.” A namorada ouviu-o e disse-lhe que aquilo era uma coisa “muito próxima do jazz”. Para ele, que não conhecia o jazz, o Hot foi a decisiva iniciação.
“Quando ouço as notas do In a sentimental mood do Duke Ellington com aquele saxofone do Coltrane a tocar, digo ‘uau, é isto que eu quero seguir, esta energia’. Claro que depois fiquei no clube, mas não havia ninguém a tocar, só discos. Lembro-me de ter pedido para ver a capa do disco, que nessa altura era em vinil.” Isso apressou a sua ida para Lisboa. Mas com um novo e curioso episódio: foi apurado, por concurso nacional, para a banda da GNR como clarinetista. “Fiquei entre os primeiros cinco que entraram. E com um ordenado fabuloso para um miúdo de 18 anos. E tinha todo o espaço do mundo para ir para o Hot Clube estudar com o Zé Eduardo e outros e participar nas orquestras.”
Bateria e Luís Morais
Antes destas histórias há ainda outra, mais extraordinária. Carlos tocava na filarmónica grandolense, clarinete, mas o que adorava tocar era bateria. “Passava horas a tocar com tachos e panelas. Nessa altura reactivou-se em Grândola um conjunto chamado Inovação e eu disse-lhes que gostava de tocar bateria.” Disseram-lhe que o ensinavam, mas, como já tocava clarinete e saxofone, pediram-lhe para tirar umas músicas de uma cassete vinda de África. “Começo a ouvir, eram mornas e coladeiras do Luís Morais, e pela primeira vez comecei a praticar treino auditivo. Graças a isso pude começar a ouvir a música por dentro e não a lê-la num papel; a música na sua grande tradição, que é a oral.”
Cinco anos depois, já em Lisboa, ele e o trompetista Tomás Pimentel, estavam a ajudar a gravar álbuns cabo-verdianos produzidos por Paulino Vieira. “Uma noite chega o Bana e havia uma enorme festa para celebrar uma comitiva que tinha vindo da Cabo Verde. O Paulino disse-me que tínhamos de tocar, começámos, e há um velho que vem ter comigo e pergunta: ‘O que é isso? Onde é que aprendeste a tocar assim?’ Olhei para ele e disse: ‘Aprendi consigo’.” Era Luís Morais, e Carlos contou-lhe a história da cassete. “Depois fomos para o palco e tocámos a noite inteira. Mas antes ele disse para a Cesária [que estava lá, mas ainda não era muito conhecida]: ‘vamos tocar, que este fulano…’ E ela, com o seu ar, disse: ‘primeiro quero ouvir’. Ouviu, gostou e nunca mais saiu de lá.”
Encontro inédito em Lisboa
Por estes dias, Carlos Martins está também ligado à European Jazz Conference, que pela primeira vez decorre em Lisboa, de 13 a 16 de Setembro, no CCB e noutros espaços (Hot Clube, Ler Devagar, Capitólio). “A consciência da qualidade do jazz português nos últimos dez anos foi adquirida durante a Festa do Jazz. Mas Portugal continua a não ter apoios suficientes para o jazz ou salas específicas para se tocar. A única solução é a Europa, é integrar uma rede europeia de jazz.” A conferência surge na sequência deste esforço. “E temos a nosso favor duas coisas: a nossa vontade muito forte e a curiosidade dos outros. Agora temos a possibilidade, inédita na história do jazz português, de ter a primeira conferência europeia, e o primeiro encontro mundial, onde Lisboa fica no mapa como um sítio a visitar, uma cidade que produz grandes músicos e grandes artistas.”