Moçambique e Portugal perante Américo Sebastião

Américo Sebastião é qualquer um de nós. O rapto que lhe aconteceu podia ter-se passado com qualquer um, numa circunstância de insegurança.

As relações diplomáticas entre os Estados têm muito pouco préstimo se não servem para proteger reciprocamente os seus cidadãos. Mesmo quando dizemos – e bem – que são relações de Estado a Estado é porque, entre outras coisas, no mundo contemporâneo, os Estados têm o dever de proteger os cidadãos uns dos outros. O que seria se um moçambicano desaparecesse numa bomba de combustível na estrada da Beira, nos contrafortes da Serra da Estrela, e dele nada se soubesse, ao fim de dois anos? Não o creio possível, pois a polícia portuguesa investigaria energicamente o caso e tê-lo-ia esclarecido e enviado a tribunal em poucos meses. O nosso irmão moçambicano teria sido resgatado e devolvido à família; ou, se os bandidos fossem brutais e o houvessem assassinado, tudo estaria claro e o corpo entregue para o luto dos seus. Os autores do crime estariam identificados e presos, para serem julgados.

Imaginemos, porém, que não era assim; e que, por uma qualquer razão, as autoridades portuguesas não conseguiam produzir a mais leve explicação, nem apresentar pista para localizar o cidadão moçambicano raptado em Portugal. Seria natural que a opinião pública moçambicana se inquietasse e indignasse, que as autoridades de Moçambique exprimissem inconformismo pelo vazio de verdade e pela incapacidade de acção e propusessem, sugerissem ou exigissem que quadros da polícia moçambicana apoiassem em Portugal os trabalhos da polícia portuguesa no esclarecimento do caso. O que faria o Governo de Portugal? É óbvio que acolheria de braços abertos a colaboração presencial da polícia moçambicana, no esclarecimento do mistério da estrada da Beira. E, caso o Governo o não fizesse, seria duramente fustigado na Assembleia da República, pois os deputados não tolerariam, num caso humano tão dramático, prolongado e doloroso, que o Governo se pusesse com esquisitices e, assim, ferisse quer a decência da relação entre portugueses e moçambicanos, quer a credibilidade dos dois Estados, um perante o outro e ambos perante o mundo. De facto, as relações diplomáticas entre os Estados têm muito pouco préstimo, se não servem para proteger reciprocamente os seus cidadãos.

No domingo, 29 de Julho, passaram dois anos sobre o desaparecimento de Américo Sebastião. Juntei-me, a meio da tarde, em frente da embaixada de Moçambique, numa vigília simbólica de dezenas de portugueses, pedindo Américo de volta. Fizemo-lo sob impulso da mulher, Salomé Sebastião, dos filhos, Rodrigo e Afonso Sebastião, e da mãe. Com excepção de um dos filhos, que busca em Moçambique notícias do pai, estivemos com os familiares e alguns amigos, partilhando a sua determinação e a esperança de ter Américo restituído aos seus. No caso de Salomé, uma grande mulher, não é apenas uma esperança, é uma certeza. Ela sabe que Américo, o seu marido, está vivo.

Nenhum de nós, em Portugal e em Moçambique, pode ficar quieto. Do mais simples ao mais poderoso, do mais próximo ao mais distante, há sempre algo que podemos fazer – e esse algo... temos de o fazer! O desafio da vigília de 29 de Julho é esse: “junta a tua à nossa voz.”

Américo Sebastião desaparece na manhã de 29 de Julho de 2016, na província de Sofala, quando estava junto à estrada, no posto de combustível Funae Funae, em Nhamapaza, distrito de Maringué. Segundo os testemunhos mais frequentes, foi levado por agentes fardados e armados. Há indivíduos que dizem coisa diferente. A família é avisada na tarde daquele dia, pelo telefonema de um conhecido. Nos dias imediatos, informam as autoridades portuguesas e entram em contacto com a representação consular na cidade da Beira, capital da província de Sofala. Guardam muito boa ideia desse cônsul-geral português e da sua actuação. Viajam para Moçambique logo em 1 de Agosto, aterrando em Maputo na manhã do dia 2. Reúnem-se com o director nacional da polícia de investigação (então PIC, hoje SERNIC) e, voando para a Beira, reúnem-se com o comandante da PRM em Sofala. Não conseguiram saber mais nada do que já sabiam. Receberam indicação para abrir um processo de investigação criminal, o que prontamente fizeram. Mas, em dois anos que vão passados, depois de múltiplas insistências e incansáveis diligências, a única verdade objectiva é esta: desde aquela manhã de 29 de Julho de 2016, em Nhamapaza, não sabem mais nada de Américo.

Há rumores. E receios. Mas, na nossa era, nenhum Estado decente se fica por rumores. Nem por receios. Tem obrigação de descobrir a verdade e apresentar a verdade. Há medos também: medos de alguns que não querem contar, medos de muitos que não querem perguntar, medos difusos só de falar. Moçambique tem tido casos de estranhos desaparecimentos, face aos quais muitos deslizam para a filosofia dos três macacos: não vejo, não ouço, não falo. Não pode ser. Nenhum Estado pode pactuar com a indiferença e a impunidade. Ninguém consegue, por exemplo, entender como o dono do posto onde Américo desapareceu não foi devidamente investigado, face às circunstâncias objectivas e às histórias que, na zona, correm a seu respeito.

Portugal tem feito alguma coisa. A Presidência da República, o Ministério dos Negócios Estrangeiros, a embaixada em Maputo e o consulado na Beira, alguns oficiais de ligação, têm feito alguma coisa – o Presidente da República com mais intensidade e visibilidade. Mas não chega. Por que é que não chega? Porque, ao fim de dois anos, estamos na mesma. Ninguém sabe nada de Américo Sebastião.

Só é possível os dois Estados pararem quando Américo for reencontrado e devolvido à família; ou, se o mataram, quando descobertos os assassinos para serem julgados e encontrado o corpo para ser identificado e sepultado. Por isso, é altura de nos perguntarmos: que instrumentos tem Portugal? Que forças temos, no quadro da amizade que nos liga a Moçambique e queremos fortalecer?

Creio que muitas, se formos todos. A página no Facebook Free Americo é o mais simples instrumento. Há relações culturais entre moçambicanos e portugueses de primeiro plano. Há relações entre Igrejas. Há relações de jornalistas e universitários dos dois lados. Há relações entre organizações não governamentais, com redes no terreno. Todos podemos fazer pressão social e cívica. Nos contactos com o povo de Maringué e noutros distritos ao lado, há que recolher todas as informações sobre o que se passou. Temos de manter Américo Sebastião no topo de agenda. Mas há mais histórias de desaparecidos em Moçambique: moçambicanos, portugueses, outros estrangeiros. Há que fazer o cadastro de cada caso e a lista de todos. Para lutarmos por todos. Isto não pode continuar.

No plano Estado a Estado, é evidente que a Polícia Judiciária portuguesa tem que poder auxiliar no terreno as diligências da polícia moçambicana e cooperar activamente no avanço das investigações. Se for preciso uma voz mais assertiva, tem de ser usada. Ninguém entende que a cooperação policial seja bloqueada. É importante que os deputados na Assembleia da República de Moçambique levantem a voz perante o seu Governo, como nós faríamos. Em Portugal, o Presidente da República e o Governo devem intensificar a acção política e a internacionalização do caso: na CPLP, na União Europeia, junto da SADC, nas Nações Unidas. O nosso Parlamento deve agir, em contínuo, pela diplomacia parlamentar e os partidos políticos portugueses têm o dever de usar as influências de que dispõem junto dos partidos moçambicanos.

Américo Sebastião é qualquer um de nós. O rapto que lhe aconteceu podia ter-se passado com qualquer um, numa circunstância de insegurança. É um cidadão português, empreendedor, pai de família, que sonhou desenvolver projectos agrícolas em Moçambique, o que faz com sucesso desde 2001. Contribuiu para o crescimento do país. Criou postos de trabalho para muitos moçambicanos. Mas não é um qualquer. Não era um clandestino. É empresário credenciado, com actividades licenciadas, com passaporte português e residência legal. Tem direito à protecção das autoridades de Moçambique, estando confiado às leis e à polícia do país. Tendo Américo Sebastião esse direito, o Estado português tem de vigiar pela sua garantia.

Este caso não é um caso político. É um caso humanitário. Só pode deslizar para um caso político se o caso humanitário não fosse devidamente tratado. Temos de lutar pela liberdade da vítima. E obter a verdade. É pelos olhos de Américo Sebastião que olharemos Moçambique e Portugal, os seus órgãos políticos, as suas autoridades. As relações entre Estados de pouco servem, se não protegem devidamente os cidadãos.

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