Os portugueses da vida de Kylian Mbappé
Cresceu com um poster de Cristiano Ronaldo no quarto; foi lançado no futebol profissional por Leonardo Jardim; deu os primeiros passos ao mais alto nível ao lado de Bernardo Silva, João Moutinho, Dinis Almeida e Ivan Cavaleiro. A história de uma viagem supersónica entre os subúrbios de Paris e a final de Moscovo.
A camisola 10 da França tem peso e tradição. Com ela, Michel Platini ergueu a taça europeia em 1984, o primeiro grande título internacional dos tricolores. Com ela, Zinedine Zidade festejou o único Mundial da selecção, em 1998, e o segundo Europeu, em 2000. Será com ela que Kylian Mbappé tentará chegar ao pedestal no domingo, em Moscovo, e dar à França o segundo título. Uma gigantesca honra aos 19 anos.
Foi também com este número mágico e para mágicos da bola que Pelé entrou de rompante no planeta futebol, em 1958, na Suécia. Um campeonato do mundo em que se tornou no primeiro jogador sub-19 da história a apontar dois golos numa fase a eliminar. Foi na meia-final do torneio organizado pela Suécia (finalista), o penúltimo obstáculo antes dos “canarinhos” festejarem o primeiro dos cinco títulos que ostentam.
Na verdade, o “rei” marcou três e a vítima foi precisamente a França, de Just Fontaine, Raymond Kopa e Robert Jonquet (o “10” gaulês), vergada por 5-3.
Foram os primeiros golos do astro do Santos em Mundiais. Um recorde que se manteve inigualável até outro puto cheio de talento e muita arte nos pés lá chegar há 12 dias, numa goleada quase tão expressiva como a de 1958. E para a lenda viva do futebol não ficar melindrada o miúdo ainda lhe deu a satisfação de ser a Argentina de Messi, com Maradona na tribuna, a sofrer a tropelia, logo nos oitavos-de-final: 4-3.
Kylian Sanmi Mbappé Lottin tem tudo para ser um predestinado. E para sorte dos franceses nasceu no país para onde os pais imigraram. Veio ao mundo no ano da maior glória futebolística da pátria. No Stade de France servia-se bem fria a vingança dessa antiga humilhação de Pelé, com uma goleada ao Brasil – de Ronaldo, o “Fenómeno” –, por 3-0. Didier Deschamps, seu actual seleccionador na Rússia, era o capitão dos “bleus” e tinha então 29 anos. Zidane era a estrela galáctica.
Quase seis meses depois, em vésperas do Natal, Wilfried Mbappé e Fayza Mbappé Lamari tinham o seu primeiro filho, a dez quilómetros do palco daquela final. Ele veio dos Camarões, com antepassados nigerianos nos genes; ela já lá estava há mais tempo, vinda da Argélia. Ele tornou-se treinador das camadas jovens do pequeno clube da cidade periférica onde se instalaram, no nordeste de Paris; ela estava a terminar uma carreira profissional no andebol.
O puto de Bondy
Na pequena localidade de Bondy, com 54 mil habitantes, há hoje um mural gigante com a imagem de Mbappé nas paredes desbotadas de um dos grandes blocos de apartamentos que dominam o horizonte. Este é uma dos inúmeros “banlieue” (cidades de subúrbios) multiculturais e pobres que compõem a Grande Paris. Esta comuna de Bondy é geminada com a portuguesa Alcácer do Sal e tem um lema interessante: “Heureux sous son ombre” (“Feliz sob a sua sombra”).
Aos cinco anos, quase seis, Kylian era uma criança feliz com a sua bola sempre por perto e na sombra dos pais, muito presentes na sua educação pessoal e desportiva. Wilfried começou a treiná-lo na Association Sportive de Bondy, onde trabalhou com crianças e jovens durante duas décadas. As suas habilidades prematuras provocaram espanto.
“Eu costumava vê-lo com a mãe perto do estádio. Ele tinha sempre a bola nos pés e já era muito, muito rápido. Era rápido e com técnica, conduzindo e driblando”, contou à rádio francesa Europe 1 Jean-François Suñer, director desportivo da colectividade. “Dissemos a nós mesmo: “Ooh, este que tenha cuidado!” Já na escola, a concentração e dedicação eram bem menores e, por vezes, chegava a ser insolente. Os pais matricularam-no numa escola particular e as coisas melhoraram.
Mas a sua praia era mesmo o futebol. Passou a ser acompanhado no Centro Técnico Nacional de Clairefontaine, uma academia gerida pela federação francesa. Seguindo as pisadas de ilustres como Thierry Henry – com quem foi muitas vezes comparado, antes de Pelé passar a ser a bitola.
Os dotes inatos e a incrível habilidade e potencial começaram a ser também seguidos por alguns colossos do futebol europeu. Por várias ocasiões os caça-talentos do Real Madrid, Chelsea, Liverpool, Manchester City e Bayern Munique sondaram a sua família. A opção dos pais foi o Mónaco, clube com um longo historial de formação, de onde saíram nomes como Emmanuel Petit, Lilian Thuram, David Trezeguet, Thierry Henry ou, mais recentemente, Yannick Ferreira Carrasco, que foi seu adversário nesta meia-final.
Os portugueses
Chegou às camadas jovens monegascas com 14 anos. Mas antes da viagem para o principado, aceitou um convite de Zidane para visitar a base de treinos do Real Madrid, em Valdebebas. Um episódio que não iria esquecer. Aqui encontrou Cristiano Ronaldo, que ocupava o pódio da sua galeria de ídolos, com o brasileiro Neymar e o belga Hazard nas posições seguintes. De fora ficava sempre Lionel Messi.
Tirou uma fotografia com o “melhor do mundo”, os dois abraçados. Transformou-a num poster e tinha-a no quarto, fosse em Bondy ou na residência dos jogadores de formação, em Monte Carlo. Pouco tempo depois de chegar ao Mónaco entrou no clube outra das personagens importantes na sua carreira: Leonardo Jardim, contratado ao Sporting no Verão de 2014.
O treinador português rapidamente reparou na pérola da academia, que passou a acompanhar atentamente. Não foi preciso esperar muito. A 2 de Dezembro de 2015, o miúdo Mbappé estreou-se na equipa principal, 18 dias antes de completar 17 anos. Começou logo aqui a sua demanda pela quebra de recordes de prematuridade. Foi o mais jovem de sempre a vestir a camisola do principado, superando o feito de Henry, 20 anos antes.
Ainda sem qualquer contrato profissional apontou o primeiro golo em Fevereiro do ano seguinte (17 anos e 62 dias), mais um recorde no clube, e assinou por três temporadas logo depois. “Foi muito importante para mim poder trabalhar com alguém como ele [Jardim]. Ajudou-me muito e fez-me progredir tacticamente. Foi ele quem apostou em mim”, sublinhou Mbappé ao jornal Recorde no final da segunda temporada, após ter sido fundamental para a conquista do título francês.
“Tinha pouco mais de um ano quando o Mónaco foi campeão pela última vez [1999-2000]”, recordou. Mas a gratidão não durou muitas semanas. Quando o milionário PSG lhe acenou com um pote de ouro não resistiu e entrou em conflito com o técnico. Queria regressar a Paris e passou a desleixar-se nos treinos, algo imperdoável para a personalidade de Jardim, que o deixou fora de algumas partidas após uma grave discussão, segundo contou ao PÚBLICO o jornalista Julien Guester, do Libération, no Media Center do estádio de São Petersburgo.
“A minha filosofia é jogar com jogadores que estão disponíveis a 100% para o grupo. E Mbappé não está”, justificou o treinador aos jornalistas que questionavam a sua ausência das convocatórias. “É normal. Se outro jornal vos propuser pagar 15 vezes mais do que ganham, vocês vão escrever menos nos vossos computadores.”
No último dia de Agosto do ano passado a sua contratação pelo PSG (que também já convencera Neymar) foi acertada a troco de uns exorbitantes 175 milhões de euros. A transferência mais cara de um menor na história do futebol. Na capital venceria todas as competições internas nessa temporada e garantia (se dúvidas houvesse) o bilhete para a Rússia.
Para trás ficavam os amigos portugueses do Mónaco: Bernardo Silva, João Moutinho, Dinis Almeida e Ivan Cavaleiro. O primeiro seguiu também viagem para o Manchester City, mas não esqueceu o jovem fenómeno. “O que ele faz é incrível. Desde o início sabíamos que era um jogador diferente, pela sua maneira de tocar na bola. O seu jogo tem algo de especial e, além disso, trabalha muito”, descreveu Bernardo Silva, ainda quando os dois alinhavam pelas mesmas cores.
Aos 19 anos, Kylian Mbappé está, a par de Neymar, na primeira linha de sucessão aos gigantes Cristiano Ronaldo – que não imaginaria tal cenário quando tirou aquela fotografia em Valdebebas – e Lionel Messi. É também o inspirador de uma comuna pobre, periférica e multicultural que olha para ele com toda a esperança.
Como disse recentemente Mahmoud Bourassi, ao jornal espanhol El País, ao regressar a casa, vindo da Rússia onde foi apoiar a França: “Antes de Mbappé, uma pessoa vir de Bondy podia ser um motivo de discriminação ao procurar um trabalho. Hoje, acontece o contrário: pode ser positivo.”