Acordo para nova “geringonça” deve incluir política externa e europeia
A renovação das alianças à esquerda depois das próximas legislativas obrigará a “um nível de comprometimento superior” ao actual, avisa o número 2 do Governo.
O ministro dos Negócios Estrangeiros anota que “felizmente” o Bloco de Esquerda já esclareceu “o equívoco” sobre o acordo das leis laborais não ser condição para negociar o Orçamento do Estado para 2019. Mas põe pressão nos partidos de esquerda. Em entrevista ao PÚBLICO e à Renascença (que pode ouvir às 12h), Augusto Santos Silva diz esperar que PCP e BE tenham tirado lições da experiência destes últimos três anos.
O Estado da Nação é inversamente proporcional ao estado da “geringonça”? Ou seja, a nação está a melhorar e a “geringonça” a emperrar?
Portugal melhorou bastante nos últimos anos. Não reclamo crédito exclusivamente do actual Governo. Resulta também muito do trabalho das pessoas, empresas, funcionários públicos, sociedade civil. Quando fazemos a comparação do Portugal 2018 com anos anteriores, vemos que há progressos assinaláveis em vários domínios, da situação financeira do país à política económica e social.
Jerónimo de Sousa disse que “o mito acabou”. Francisco Louçã escreveu que, “para António Costa, terminou a fase dos acordos de esquerda”. Isto significa que, para os parceiros do Governo, esta fase acabou?
Isso terá que perguntar aos parceiros. Do lado do PS, o secretário-geral já disse que, do nosso ponto de vista, a actual solução política resultou bem e, como tal, pode ser renovada.
Acha que estas frases significam uma vontade de repetir?
Significa uma coisa normal: que o essencial dos acordos conjuntos está cumprido e que cada um dos nós tem que trabalhar no programa que vai apresentar tendo em vista as próximas eleições. É natural que cada um queira aumentar a sua influência política e eleitoral.
A maioria absoluta?
O PS quer o melhor resultado eleitoral possível. É natural que PCP, BE, PEV, assim como o CDS e o PSD, queiram também.
Se está tudo bem, como explica a contestação na saúde e educação e a crescente tensão pública entre partidos que apoiam o Governo? Catarina Martins disse no fim-de-semana que não pode haver orçamento sem antes haver acordo na legislação laboral...
No que diz respeito à contestação, pode ser bem compreendido com um exemplo concreto. Depois dos salários terem sido repostos, a punção fiscal ter diminuído, as carreiras descongeladas, começaram a surgir reivindicações para a reestruturação de carreiras, eventuais aumentos salariais e contagem de tempo de serviço. Estas questões são novas, não são compromissos do programa de governo com o cenário macroeconómico que desenhámos. Vão-se colocando novos problemas e os partidos políticos nas próximas eleições terão as suas propostas relativamente a estas novas questões. O que temos dito é que não pode haver precipitações. Não podemos avançar mais, de forma a pôr em causa os restantes compromissos que assumimos, designadamente as metas de défice orçamental. Agora, as pessoas que já não se confrontam com o risco de ver os seus salários cortados, pensões cortadas, impostos sobre o trabalho aumentados – porque isso é passado – colocam novos objectivos.
Então não era melhor irmos já para eleições?
Não. É muito importante que a actual solução política mostre que é estável e que vai completar a legislatura.
Está confiante que isso vai acontecer? Vão ser capazes de aprovar o próximo OE?
Sim. Acredito que vamos ter um bom orçamento.
O BE juntou aquilo que parece ser mais uma dificuldade: ver as leis laborais aprovadas como condição para o OE.
Felizmente, na passada segunda-feira, os dirigentes do BE esclareceram esse ponto e dissiparam as dúvidas que também no meu espírito tinham surgido. Disseram que não há aqui nenhuma espécie de condicionamento de voto no OE, fazendo-o depender de um acordo na legislação laboral. A sua orientação era apenas a que se fizesse uma negociação do OE de forma a que não houvesse nenhum recuo em relação a progressos já dados. A nossa lógica é a mesma.
Não vamos andar aqui de ultimato em ultimato?
Nunca ouvi nenhum ultimato. Essas afirmações que podiam ter sido percepcionadas como condicionamento foram esclarecidas. Pessoalmente, não tenho hoje nenhuma preocupação.
Disse, este fim-de-semana: “O que é preciso fazer é negociar sem ultimatos. O Partido Socialista tem-no dito com toda a clareza, o Partido Comunista Português tem-no dito com toda a clareza, ao Partido Ecologista Os Verdes nunca lhes ouvi dizer o contrário, mas o Orçamento precisa do voto dos quatro partidos que constituem a actual maioria parlamentar”. Disse-o porque o PCP tem sido um partido responsável e o BE um partido traiçoeiro?
Não, não é verdade. Como bons parceiros, devemos esclarecer as coisas de forma a não haver nenhum equívoco.
O BE é mais dado a equívocos?
Não, não foi isso que eu disse. Seria importante que nós todos falássemos sem qualquer ambiguidade. A negociação do OE deve fazer-se de modo a que os nossos compromissos sejam respeitados, mas também de modo a que os parceiros respeitem esse compromisso maior do Governo do PS que é o compromisso com as regras da zona euro e da UE. Compreendo e agradeço a forma como os partidos que apoiam o Governo permitem que o Governo apresente e faça aprovar orçamentos que cumprem integralmente todos os nossos compromissos europeus.
Mas, entre a UE e os parceiros de esquerda, o PS escolhe a Europa?
Não, o PS foi capaz de escolher os dois, e esse foi o grande triunfo.
Se o PS ganhar as próximas eleições com maioria relativa e não conseguir fazer acordo com PCP e BE, governa com maioria relativa?
Não é tempo de responder a essa pergunta. Nunca fui grande adepto de cenarizações.
Na moção que irá ser discutida na próxima convenção nacional, o BE oferece-se para ir para o Governo. Veria com bons olhos uma solução mais de coligação?
A forma é secundária. A questão essencial é: se nós – como eu espero – caminharmos para a renovação da actual solução política, ela exigirá certamente um nível de comprometimento nessa solução que será superior àquele que se verifica neste mandato.
Superior, como?
No sentido em que já não podemos fazer um acordo fundado na melhoria dos mínimos sociais, na reposição de rendimentos, porque já o fizemos. Temos todas as condições para fazer um acordo que signifique um avanço no que diz respeito a políticas estruturais que o país precisa no domínio do território, ambiente, transição energética, política económica e também na política externa e europeia.
E acha isso possível com estes actuais parceiros?
Não sei. Depende de três condições: da avaliação que o PS fará (tenho a mesma opinião que o secretário-geral de que há todas as vantagens que, independentemente do resultado [das eleições legislativas], se renove esta solução); da vontade dos outros partidos (li com especial interesse a declaração do secretário-geral do PCP de que era impossível repetir a “geringonça”, mas podia encontrar-se outra forma. Veremos); e da vontade do povo.
Parece-me difícil um maior compromisso de política externa com dois partidos que são anti-UE e anti-NATO...
Veremos. Seria um pouco estranho que esta solução política, correndo bem até ao final da legislatura, não significasse também aprendizagem para os quatro partidos. O PS aprendeu bastante, e os outros partidos, espero que também.
Está a dizer que espera que o PCP e o BE percebam que o futuro é dentro da UE ou que as eleições na Venezuela não são tão livres como pensavam?
Não tenho uma relação paternalista nem com o meu partido nem com os outros. Digo que espero que este tenha sido um período de aprendizagem muito importante para os partidos. Espero que os outros partidos terminem esta legislatura confiando mais no PS.
Isso não é ser demasiado optimista?
Estou a descrever o universo de possíveis.
Não é pôr um impossível em cima da mesa?
Não. Na sequência das eleições de Outubro de 2015, eu fui das pessoas que exprimiram dúvidas sobre um Governo do PS apoiado pela esquerda... Até ao dia em que ouvi da boca do secretário-geral do PCP que “o PS só não é Governo se não quiser”. Aí percebi que havia uma nova disponibilidade. Isso foi uma mudança muito considerável. Diria que seria estranho que todos os partidos não tirassem lições positivas disso.
Espera outra mudança histórica, portanto...
Vamos ver.
Até que ponto as próximas eleições europeias podem ser decisivas?
Vão ser muito importantes no plano europeu e interno. O recrudescimento de forças xenófobas e populistas é real. Tem importância no plano nacional porque as europeias serão cinco meses antes das legislativas. Será um teste interessante porque será uma área em que as posições dos partidos que apoiam o actual Governo serão muito diferentes, senão contraditórias. Mas estou seguro que procederão na campanha das europeias de forma a não enfraquecer a actual solução política.