May enfrenta o seu “momento da verdade”
Os tories sempre estiveram profundamente divididos sobre a questão europeia. Há 30 anos que vivem assim.
1. A primeira-ministra britânica conseguiu, pela primeira vez, elaborar uma estratégia que tem pés para andar (um pouco mais depressa) em Bruxelas. Apresentou-a ao Governo, que a aprovou numa longa reunião realizada em Chequers no final da semana passada. Também pela primeira vez, a reacção de Michel Barnier, o negociador da UE para o “Brexit”, foi um pouco mais aberta, mesmo insistindo em que ainda há mais perguntas do que respostas. Se alguém ainda tivesse dúvidas sobre este resultado positivo, que é a opção por uma saída soft, perdê-las-ia ontem, graças à reacção de dois dos ministros do seu Governo, que anunciaram a demissão. O primeiro, David Davis, tinha a seu cargo precisamente o “Brexit”. É um ideólogo convicto da saída, considerando que a recuperação da soberania plena permitirá ao Reino Unido singrar melhor no mundo. A sua demissão faz sentido. Já o segundo a demitir-se, Boris Johnson, actual chefe do Foreign Office, pode querer dizer uma coisa muito diferente. Ao contrário de Davis, o excêntrico ministro britânico tem a ambição de liderar o Partido Conservador. Um “Brexit” bem sucedido daria a Theresa May um passaporte político mais sólido, retirando-lhe qualquer hipótese. A demissão de Davis não lhe permitia fazer outra coisa, se quer manter as suas ambições. “Davis resignou ao cargo por uma questão de princípio; Johnson por interesse pessoal”, escreve o Guardian.
2. Os tories sempre estiveram profundamente divididos sobre a questão europeia. Há 30 anos que vivem assim. Durante o reinado dos trabalhistas Tony Blair e Gordon Brown (1997-2010), o Partido Conservador foi elegendo líderes e recolhendo derrotas. Foi também por mero cálculo político que David Cameron, já depois de ter chegado ao n.º 10 de Downing Street, resolveu “jogar” a sua sorte com a “questão europeia”, para acabar de vez com as divisões internas e consolidar a sua liderança. Lembrou-se de sujeitar o lugar do Reino Unido na União a um referendo que nunca acreditou que perderia, depois de uma negociação com Bruxelas mais para “inglês ver” do que para restituir poder ao Parlamento britânico. Deixou sair o génio da garrafa e nunca mais conseguiu — ele ou May — voltar a aprisioná-lo lá dentro.
3. À frente de um governo dividido e absolutamente impreparado para uma negociação extremamente complexa, May ainda tentou reforçar a sua legitimidade política, convocando eleições (2017). O resultado não foi o que esperava. Ganhou, mas perdeu votos e uma confortável maioria. Ficou ainda mais fraca. Depara-se agora, provavelmente, com a mais grave crise do seu Governo. Tem o mérito, tardio, de obrigar a uma clarificação. É o que está a acontecer. A democracia britânica dá um enorme poder ao chefe do governo, inclusive o privilégio de marcar eleições, mas essa carta ela já a jogou, o que quer dizer que está nas mãos do grupo parlamentar do seu partido em Westminster. Os deputados conservadores podem demitir um líder e substituí-lo por outro. Foi o que aconteceu a Thatcher, que caiu (em 1990) às mãos de um grupo parlamentar que, até aí, a tinha seguido quase cegamente. Foi substituída pela figura apagada de John Major. Curiosamente, a derrota da “Dama de ferro” deveu-se, no essencial, a razões que estão nos antípodas daquelas que hoje levam a facção mais nacionalista dos tories a querer derrubar Theresa May. Uma maioria conservadora temia que Thatcher levasse longe de mais os seus braços-de-ferro com a Europa, ao ponto de causar uma ruptura que, naquela altura, ninguém queria. Foi Major quem negociou o Tratado de Maastricht, garantindo a sua aprovação no Reino Unido.
4. Nos últimos dias, entre a reunião de Chequers e a cimeira europeia de Bruxelas, May multiplicou-se em contactos para garantir uma boa recepção à sua nova estratégia, incluindo uma visita à chanceler alemã e outra ao primeiro-ministro holandês, Mark Rutte, ambos de países grandes exportadores para o mercado britânico. O novo modelo que apresentou defende a maior aproximação possível ao mercado único através de um acordo de comércio livre de mercadorias que reduza as barreiras alfandegárias ao mínimo e respeitando os padrões europeus. Um acordo diferente está igualmente previsto para os serviços, sector em que a economia britânica é muito forte. Há também a tentativa de responder à questão crucial da livre circulação de pessoas: um novo “quadro de mobilidade” em que “os cidadãos do Reino Unido e da União podem continuar a viajar nos dois territórios e candidatar-se a um emprego ou para estudar”. Também jogou a cartada da segurança, lembrando aos seus pares até que ponto o seu país é vital para uma dimensão cada vez mais importante da integração europeia. Os seus adversários internos já dificilmente podem invocar a special relationship com os EUA, seja em que domínio for, incluindo o do comércio. É na Europa que May tem encontrado os seus aliados contra as “provocações” made in Russia. Mesmo fora, o Reino Unido não quer ficar afastado da cooperação nas indústrias de defesa, de que é um grande fabricante, muitas vezes em concorrência com os EUA.
Quando o nevoeiro que “isola o continente” parecia estar a levantar-se, uma crise seria dramática. Para Londres mas também para Bruxelas. Mesmo assim, convém manter todos os cenários em cima da mesa.