À vida dele
Até os andorinhões se enganam. Até os andorinhões se enganam a voar. Pensava que isso era impossível até hoje quando um andorinhão entrou
por uma janela para uma casa de banho. Estava aflitíssimo, preso ao chão abrindo e mexendo as asas sem conseguir mexer-se.
Apanhei-o numa toalha e devolvi-o ao ar. Subiu logo, certamente aliviado de estar outra vez na casa dele. Os andorinhões são magníficos a voar. É difícil tirar os olhos deles. Mas no chão tem tanto jeito como os nossos braços têm para fazer de asas e voar.
Quando estamos onde não devíamos ou queríamos estar dizemos que nos sentimos como um peixe fora de água. Mas um peixe fora de água é muito mais sério. É como nós dentro de água, sem podermos respirar.
Um dos chavões do nosso tempo é que é bom, de vez em quando, sair da nossa zona de conforto. Trata-se apenas de mais uma variante da velha noção religiosa que o sofrimento faz bem à alma.
Bom é ter uma zona de conforto onde se possa estar. Abençoadas sejam as nossas zonas de conforto e malditas sejam as acções de despejo.
Não custa nada pôr o peixe outra vez no mar mas para o peixe é a diferença entre a morte e a vida. Foi o mesmo com o andorinhão:
recebe-se imenso por um gesto que nos sai tão barato. Não há neste mundo investimento mais espectacular.
O andorinhão não voa só duas horas. Voa toda a vida. A única coisa que custa é o medo de apanhá-lo e de fazer-lhe mal. Mas ele sozinho agitando freneticamente as asas também se poderia magoar. Só o ajudei a escapar, a ir à vida dele.