Almere e Oostvaardersplassen: experiências humanas na paisagem

Um sítio é uma reserva natural inventada pelo homem. Outro é uma cidade que começou a ser construída há 40 anos no fundo do mar. A curta distância de Amesterdão, na Holanda, há dois laboratórios imperdíveis que provam o engenho transformador do ser humano.

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Animais na reserva natural de Oostvaardersplassen pklaver.com

Durante séculos, a população holandesa travou uma guerra com a água, socorrendo-se de diques, barragens e de uma larga parafernália de engenharia para proteger terras agrícolas e povoações das vontades do mar. A província mais jovem da Holanda, Flevoland (oficialmente criada como região administrativa em 1986) é filha desta luta, criada a partir de terra que começou a ser reclamada ao mar há precisamente 100 anos.

Quando se passeia por esta região a norte de Amesterdão, convém nunca perder a noção que os pés estão, de facto, a pisar chão que, outrora foi o fundo do mar, do Zuiderzee. E de entre os múltiplos pontos de interesse que a Flevolândia oferece, há dois que se destacam: a reserva natural de Oostvaardersplassen e a cidade de Almere.

Merecem esta distinção por razões diferentes, mas que têm uma raiz comum: resultam do engenho humano que, no primeiro caso, criou um parque único cheio de vida natural e, no segundo, inventou em 40 anos uma nova cidade que é um laboratório de arquitectura concebido sob a orientação do arquitecto (bem conhecido por cá) Rem Koolhaas, autor da Casa da Música, no Porto, e co-autor do plano geral de urbanização de Almere.

A Flevolândia nasceu em 1800km quadrados de terra que estava submersa pelo Zuiderzee. Desde o século XVII que se sonhava com drenar as águas deste mar interior, mas foi preciso esperar pela moderna engenharia do século XX para tornar esse plano uma realidade.

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"Exposure" é uma obra de Antony Gormley Allard Bovenberg / landartflevoland.nl

A drenagem começou em 1918, após a construção de um sistema de diques que serviria de muralha de protecção aos pólderes que ficariam a descoberto. A capital da região, que assenta no maior pólder do mundo (situado a leste de Amesterdão), é Lelystad. Documento vivo que testemunha a capacidade transformadora das sociedades modernas, Lelystad é uma cidade de arte e arquitectura. Exposure, gigantesca escultura com 26 metros de altura representando um homem agachado que olha para as águas do Markermeer, está ali, no que é hoje a costa de Lelystad. É produto de uma reflexão do artista Antony Gormley, que se apercebeu dos ritmos dados pelas linhas direitas de canais, campos e moinhos de vento daquela região, como se fosse uma espécie de sistema nervoso central. Gonley reconstituiu depois essa rede numa figura, marcante, desafiadora, maior e mais poderosa do que o próprio criador humano, ainda que agachada, como se mostrasse ser pequena apesar de tudo, sinal de respeito pela imensidão de águas que o rodeia. Exposure é uma das sete obras de Land Art, uma espécie de exposição ao ar livre espalhada pela Flevolândia que celebra o engenho humano naquele contexto de tensão permanente com o espaço que o rodeia.

Ali mesmo encontra-se ainda Batavialand, com um museu que conta as diversas etapas desta conquista humana face à natureza e onde está um dos 435 barcos que ali se afundaram ao longo de séculos e cujos restos ficaram à vista quando o leito do mar se deu a ver após a drenagem. É um testemunho histórico vastíssimo, um dos maiores “cemitérios de navios” do mundo, que destapou mais de 33 mil objectos.

Descendo para sul junto à costa chega-se à reserva natural de Oostvaardersplassen. Hans-Erik Kuypers, um dos curadores desta reserva, explica que a reserva deverá ser classificada como parque nacional lá para Setembro de 2018, se tudo correr como programado.

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Cavalos selvagens e diferentes espécies de aves são algumas das espécies da reserva natural criada no que era o fundo do mar Marcus Rudolph / Getty

Trata-se de um “exemplo notável” de renaturalização de um espaço que antes pertencia ao mar e que hoje é a casa de diferentes espécies animais e vegetais, salienta o mesmo responsável, que abandonou a prática da psicologia para abraçar ali uma nova carreira profissional.

Algumas espécies animais foram introduzidas pelo homem, mas entretanto outras acabaram por descobrir esta importante zona húmida, que integra a rede Natura 2000 (o que significa a protecção jurídica e de facto mais elevada que se poderia pedir). Há, por exemplo, aves migratórias que acabaram por surgir num habitat que não tinha sido pensado para elas. E outras que entretanto foram chegando e por ali se deixam ficar: algumas aves da família Anatidae, como gansos e patos; o pato de bico vermelho; o corvo marinho de faces brancas; o colhereiro europeu; garças brancas; a águia rabalva (a maior águia em espaço europeu); e o abetouro. Estas são algumas das aves que por ali podem ser avistadas.

Para tal, basta embarcar num dos safaris organizados pelo parque, e realizados segundo um rigoroso plano de acção que foi criado para reduzir ao máximo a pegada humana. Os carros que percorrem a reserva por caminhos seleccionados são eléctricos, e há um conjunto de regras que o visitante tem de observar para garantir que não interfere com o gado, os cavalos selvagens, as raposas, as rãs e todas as outras espécies animais ou vegetais que ali vivem. As mesmas regras garantem também a segurança dos visitantes, que poderão estranhar o facto de a reserva ter como vizinha uma via férrea muito frequentada. Porém, o traçado foi pensado e executado de modo a não pôr em causa aquele habitat e, como diz Kuypers, os animais que poderiam eventualmente reagir aos comboios que ali passam também já se habituaram àquela presença. De resto, fazer a viagem de comboio desde Amesterdão até Lelystad oferece ao viajante uma interessante panorâmica sobre a reserva, necessariamente curta e à velocidade do comboio e que em nenhum caso substitui um safari. Dá, porém, para ficar com uma pequena ideia de como é fácil e rápido chegar ali a partir da capital e toda a biodiversidade que se reuniu neste naco de terra com 52km quadrados conquistado ao mar.

Quem quiser perceber melhor do que se fala, antes de fazer uma visita, tem amplos recursos de informação na Internet e, além disso, pode tentar ver o documentário The New Wilderness, um campeão de audiências na Holanda, que foi visto por mais de 750 mil pessoas, uma cifra pouco comum para documentários passados em salas de cinema.

Para rematar esta visita, nada como atestar baterias com uma visita ao café da reserva, instalado num edifício de arquitectura arrojada, com uma enorme janela aberta para a reserva, e que, tal como muitos dos edifícios construídos no último meio século, desafia o olhar, as linhas tradicionais e a lógica mais comum das paisagens holandesas.

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"The Wave" é um edifício habitacional em Almere e um dos mais icónicos da cidade Sandra Silva / Redactioneel

O melhor exemplo disso é a cidade de Almere, cidade de 200 mil habitantes, que tem apenas 40 anos de existência. O comboio mais rápido liga esta cidade inventada em anos recentes e Amesterdão em apenas 20 minutos (bilhete: 6,20€).

Para apreciar os múltiplos exemplares de arquitectura que não deixarão ninguém indiferente, é preciso bem mais do que um dia. É fácil imaginar que o ambiente urbano disponível dará fotos de sucesso no Instagram: edifícios com ondas, como o The Wave (obra de Rene van Zuuk), um edifício habitacional de 49 apartamentos cuja fachada imita a pele de um peixe e se curva como se fosse uma onda; telhados que em vez de telhas têm jardins e relvas; edifícios que parecem torcer em ângulos insustentáveis ou que parecem desafiar a lei da gravidade; uma arrumação urbana que, tal como noutros pontos do país, privilegia o peão e a bicicleta mas que, por ser de construção recente, aproveitou ideias mais vanguardistas e a tecnologia mais recente para construir uma cidade mais amiga, mais inclusiva, mais limpa.

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Vista sobre Rechtenvrij, em Almere, com o edifício Silverline em pano de fundo Cris Toala Olivares
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"The Wave" tem 49 apartamentos. A fachada em painéis de zinco e com forma ondulada é inspirada na pele de um peixe p2cl / flickr

Mais um exemplo: o sistema de recolha de lixo dos caixotes espalhados pelo centro da cidade é subterrâneo. Em vez de gigantescos carros de recolha para esvaziar os caixotes, a cidade pensou numa rede de canais subterrâneos que está ligada aos caixotes e que, à hora marcada, sugam o lixo ali depositado, encaminhando-o para pontos de recolha que, depois, permitirão levar os resíduos para uma estação cujo edifício é, em si mesmo, uma estrutura sem igual que, ainda que não se goste do estilo, merece ser vista. 

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As casas de Katterug são feitas por segmentos. Cada proprietário pode escolher quantos segmentos pretende adquirir. O segmento do meio é sempre o mais alto DR

Marga Kleinenberg é gestora de projectos e guia turistas por Almere, indicando-lhes alguns dos exemplos mais notáveis do arrojo arquitectónico que diferentes profissionais lançaram sobre o plano geral e urbanização concebido por Rem Koolhaas e Floris Alkemade, que estiveram à frente de uma equipa de 12 pessoas responsáveis pelo plano geral de urbanização de Almere.

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Ao lado do Hotel Apollo Almere está a Bierfabrik, cujo edifício é conhecido como "a batata". O projecto original teve de ser ajustado. O arquitecto abdicou de uma ponta do edifício e, assemelhando-se a uma batata, mandou pintar esse lado de amarelo View Pictures/UIG via Getty Images

Aqui “a arquitectura é uma combinação dos anos 1980 e 90 com edifícios muito modernos”, sintetiza. “A cidade apresenta-se como um exemplo global de arquitectura moderna”, seja através de edifícios públicos ou privados, de habitação, comércio ou serviços, praças públicas ou infra-estruturas vitais para uma cidade desta dimensão, salienta. “Almere aprendeu com os erros e as boas práticas do resto do país. Há muita gente que acaba por não gostar do resultado. Dizem que acaba por não ter aquele aspecto acolhedor das casas antigas e praças históricas de Amesterdão, Harleem ou Utrecht, por exemplo.”

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"Smargard" (Esmeralda): o único edifício do centro de Almere com um esquema cromático diferenciado. As fachadas inclinadas permitem realçar a luz no interior. Tem habitação e serviços DR
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"Stofzuiger" (Aspirador de pó): um terminal amarelo e preto para onde o lixo da cidade é encaminhado desde os caixotes do lixo públicos, através de uma rede de tubos subterrâneos DR

Elege como favoritos o edifício The Wave e o da biblioteca municipal. Mas como sugestão aos turistas alarga a escolha ao porto de Almere, ao Homerusquarter, ao Filmwijk e a Floriade — esta última será palco de uma exposição mundial de comida e agricultura em 2022, mas já tem forma e conteúdo suficiente para ser visitada. O edifício mais desvalorizado será o teatro local. “Penso que é um edifício bonito, mas a maioria dos habitantes de Almere não gosta dele. Tem linhas pensadas, agudas, com perspectivas de enorme beleza, um pouco cubista, transparente, numa óptima localização, perto da água. Tenho pena que a maioria não partilhe desta opinião”, afirma.

Almere é assim, “ousada, excêntrica, estranha e destemida”, acrescenta. “É preciso ter muita coragem para se apresentar como exemplo ao resto do país”, justifica. “Também é perseverante, teve de lutar e continua a combater uma imagem de feia, aborrecida e mera fornecedora de habitação para famílias jovens. É uma imagem criada maioritariamente por quem nunca visitou Almere. E a esses eu digo: venham ver com os próprios olhos. Ou então calem-se.”

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