Roteiro de Amesterdão sem Amesterdão

Estar na capital holandesa e não dar uma fugida até à inesperada arquitectura de Almere ou relaxar na reserva natural de Oostvaardersplassen é como visitar Lisboa e ignorar Sintra, por exemplo. À volta de Amesterdão há motivos de sobra para reservar um ou dois dias longe das enormes filas que enchem a capital. Há arte, safaris e castelos à espera de quem arrisca.

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Não é possível fazer uma lista de capitais europeias a visitar e excluir Amesterdão. Tal como começa a ser difícil visitar Amesterdão sem sentir a pressão que mais de dez milhões de turistas estrangeiros exercem sobre uma cidade que está a rebentar pelas costuras. A capital holandesa é tudo aquilo que já se sabe: uma metrópole histórica de mentalidade vanguardista; a casa de Van Gogh e de Rembrandt; uma colecção de canais navegáveis; o berço das coffee shops e do Red Light District; em suma, uma colecção de sítios e lugares tão populares que já se tornaram um estereótipo, as típicas armadilhas de turistas que, como todas as armadilhas do género, amamos odiar pelo tempo que roubam. Mesmo quem não abdique de alguns ex-líbris, só precisa de dois dias para conhecer a Amesterdão essencial, como diz Preben Maltesen, um dinamarquês que trabalha para a HP e que há 30 anos trocou Copenhaga pela cidade dos canais. A menos de meia hora de viagem do centro, há um mapa de tranquilidade, sem filas, mais barato, de acesso fácil. Há praias, há um país povoado de castelos bem preservados, com parques naturais em terras roubadas ao mar, cidades que arriscaram ser laboratórios de arquitectura, locais que pedem para ser visitados, “instagramados” e partilhados. Senhoras e senhores, eis um roteiro de Amesterdão sem Amesterdão.

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Laren, a “Beverly Hills da Holanda”

Pépé Gregoire (n. 1950) é um dos mais reputados artistas da Holanda. Tão distintivo quanto o penteado dele (um híbrido entre a irreverente peruca que Andy Warhol começou a usar na década de 1950, mas com linhas e cores do cabelo de David Bowie versão 2004) é a obra deste escultor, simultaneamente séria e filosófica, porque subversiva e repleta de humor de qualidade. A casa dele, em Laren, é também o ateliê dele, onde criava esculturas em bronze e, mais recentemente, se tem dedicado às fotoesculturas — formas tridimensionais em aço inoxidável ou alumínio revestidas por fotografia, que funcionam como uma pele. Ele próprio se encarrega de guiar uma visita ao jardim lá de casa, onde tem algumas das obras, um recanto que coloca esta vila imediatamente no mapa dos pontos obrigatórios deste roteiro.

Laren fica 30km a sudeste de Amesterdão. É “a Beverly Hills da Holanda”, descreve o actual director do Museu Singer, Jan Rudolph de Lorm. A vila onde trabalha tem mais fama do que o museu que dirige. A proximidade a Hilversum (cidade que concentra as principais empresas de media do país) encheu Laren de vedetas de televisão. Atrás delas vieram futebolistas e outras figuras que povoam o espaço mediático. “Nem sempre foi assim”, anota o director do Singer, uma casa que é herança de Anna e William Singer, um endinheirado casal de norte-americanos que descobriu esta terra no início do século XX, quando esta deixara de ser uma bucólica terra de pastores para ser uma vibrante colónia artística, sobretudo para os impressionistas que ali encontravam paisagens inspiradoras.

À porta do museu, cujo edifício principal abriu em 2007, está uma escultura de Pépé Gregoire, uma mão que agarra um pé. São figuras omnipresentes no trabalho dele porque, segundo o próprio, remete para um momento primordial de qualquer ser humano. “É no ventre da mãe, quando a mão toca o pé ou outra parte do corpo em formação, que o ser humano começa a ter consciência de que existe num corpo. É uma descoberta fundamental”, sustenta o artista. A avaliar pela luxuosa paisagem de vivendas e lojas comerciais com marcas de renome, se Amesterdão fosse o ventre Laren seria um mealheiro cheio.

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O jardim escultórico do Museu Singer casa o trabalho de Piet Oudolf – "o Rembrandt dos jardins", que ajudou a projectar o High Line de Nova Iorque – com obras escultóricas de diferentes autores Christian Boontjes

Além da colecção permanente, fortemente marcada pelo impressionismo (Monet, Lieberman e Mauve têm lugar aqui) e pelo expressionismo, o museu guarda outras jóias, em especial o jardim escultórico, que mistura obras de variados autores com o trabalho de jardinagem de Piet Oudolf (n. 1944), o “pintor que desenha quadros na terra”. Os mais atentos reconhecerão Oudolf por causa do High Line, de Nova Iorque, o famoso reaproveitamento de uma antiga linha férrea elevada, reconvertida em passeio urbano ajardinado na cidade que antes de se chamar assim dava pelo nome de Nova Amesterdão. Para os menos atentos, basta referir que Oudolf é também conhecido como o “Rembrandt dos jardins”, tal é a importância do trabalho que tem produzido em jardins públicos e privados. De carro, a viagem de Amesterdão até Laren demora menos de 30 minutos. Outra solução é o comboio Intercity até Hilversum (5€-10€) e depois o autocarro (linhas 108 ou 109, €3-€5) até à vila, numa viagem de 50 minutos; ou, directamente da capital, por autocarro (302, de Amstelstation até Blaricum, por 3€-5€; e daqui a Laren com o 109 ou 202, pelo mesmo preço). O museu abre de terça a domingo, das 11h às 17h. Para visitas ao ateliê de Pépé Gregoire, contacto através do endereço info@pepegregoire.nl.

Naarden, o floco de neve fortificado

De Laren até Naarden são apenas 12 quilómetros. Faz-se rapidamente por autocarro (linha 109, 3€-5€). Naarden é um dos mais notáveis exemplos de uma cidade fortificada bem preservada, ainda que o que hoje lá se encontre seja produto de muitas reconstruções.

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A forma geométrica da cidade-fortaleza de Naarden advém da sua função militar. Actualmente é muito concorrida na Sexta-feira Santa: a igreja é todos os anos palco para a Paixão Segundo São Mateus, de J. S. Bach Cris Toala Olivares

Há registos do século X que mencionam a cidade, que ficava a 2,5km da costa do Zuiderzee (Mar do Sul, que entrava pela terra dentro e que foi separado em dois, na década de 1930, após a conclusão de importantes diques de protecção), mas as constantes cheias e a guerra civil destruíram a povoação em 1350. Na época medieval, era protegida por um fosso e um simples muro de terra, obstáculos que não impressionariam nem o mais fraco dos invasores. Por isso mesmo, o muro seria gradualmente substituído por uma muralha em alvenaria. Apesar da melhoria evidente, nem os espanhóis, que dizimaram a população masculina em 1572, nem os franceses, que ali entraram sem oposição precisamente 100 anos depois dos espanhóis (em 1672), sentiram dificuldades na ocupação desta cidade-fortaleza que estava na linha de defesa de outras cidades mais importantes como Amesterdão (a noroeste) ou Utrecht (a sul).

É no final do século XVII que começa a desenhar-se a fortificação que hoje se pode parcialmente observar de cima, se se vencerem os quase 300 degraus que levam ao topo da torre da igreja local, a St. Vitus Kerk, que se ergue a 73 metros de altura.

É uma formação defensiva em forma de estrela de seis pontas — chamam-lhe floco de neve — com seis bastiões de terra em cada ponta e circundada por dois fossos. No fosso interior foram construídas ilhas artificiais. Situadas entre as pontas da estrela, têm forma triangular (e por isso se designam como rebelim, termo da arquitectura militar), que serviam para colocar homens e armas para reforçar a defesa.

Do cimo da torre (que é a única construção que resta da igreja original católica, convertida em protestante no tempo da Reforma) vislumbra-se, em dias de céu limpo, Amesterdão e Utrecht.

A história deste local é explicada pelo Museu Holandês das Fortalezas, onde se encontram diversos artefactos militares, desde armas a uniformes. A própria cidade, classificada como paisagem protegida, vale bem um passeio, com especial atenção para a Casa Espanhola (palco de uma carnificina posta em marcha pelos espanhóis), que é um dos poucos edifícios que restam da época medieval. Também vale a pena mergulhar no museu dedicado a Jan Amos Comenius, um pastor protestante de origem checa que no século XVII viveu na região, tendo ficado famoso pelo livro-abecedário que escreveu para crianças de tenra idade aprenderem a ler. É motivo de romaria de turistas checos até Naarden — mas nada que se compare ao movimento que encontrará noutros museus da capital holandesa.

A igreja é um dos palcos musicais mais conhecidos da região, porque todas as sextas-feiras santas recebe a Orquestra da Sociedade Bachiana da Holanda, que ali intepreta anualmente a Paixão segundo São Mateus, de J. S. Bach (para um "cheirinho", vídeo YouTube aqui; para uma actuação completa, vídeo YouTube aqui).

Muiden, entrada para um país de castelos

Oito quilómetros separam Muiden (lê-se Mauden) de Naarden. Dá para ir de bicicleta, ou autocarro (linhas 110, 3€-5€). Um passeio pelo casco velho de Muiden leva o visitante até ao pequeno porto — com sorte, encontrará o Dragão Verde, embarcação à vela da Princesa Beatriz, antiga rainha da Holanda, que lhe foi oferecida pelo povo quando fez 18 anos e que ali costuma ficar atracada.

Este ponto é a melhor porta de entrada para um país que é conhecido pelos moinhos de vento, mas que bem poderia vender a imagem de um país de castelos. São cerca de 300 espalhados pelo país, segundo Fred Vogelzang, professor universitário e membro da Sociedade Holandesa de Castelos. Uma ninharia se comparado com outros países europeus, como França, mas que estão abertos ao público. E Muiderslot, em Muiden, é uma excelente porta de entrada para essa viagem às construções medievais que são tão diferentes do que habitualmente se vê em Portugal, por exemplo.

“Steen rijk” é a expressão holandesa para “podre de rico”. É composta por duas palavras, pedra (steen) e rijk (rico) — e como sempre acontece com as línguas, não é fruto do acaso. Há uma razão histórica e cultural para a riqueza se medir em pedras — ou melhor, em tijolos. Num país sem montanhas, era virtualmente impossível construir em pedra natural. A opção era, portanto, o tijolo (baksteen). E foram muitos os holandeses que em tempos idos pagavam contas em tijolos. Foi assim em Naarden, por exemplo: quem quisesse viver dentro da cidade fortificada pagava 2000 tijolos ao município, que os usava para (re)construir a cidade medieval.

E um dos traços distintivos de Muiderslot e outro castelo não muito longe (De Haar, em Utrecht) é que foi integralmente construído em tijolos. Fundado no século XII, Muiderslot foi erguido junto ao rio Vlecht, por ordem do conde Floris V, que irritava os governantes de Utrecht ao exigir pagamentos pesados para a época a quem queria atravessar tal rio. Assassinado por nobres que não gostavam da ligação dele ao povo — o primeiro livro de história publicado na língua local e não em latim, como era tradição, foi encomenda de Floris V, que queria o povo instruído —, o conde deixou o castelo ao único dos sete filhos que chegou à idade adulta, Jan, mas Muiderslot foi destruído por ordem do bispo de Utrecht, que era o maior adversário da família.

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O Castelo de Muiderslot é hoje o castelo medieval mais bem preservado do país e fica a curta distância da capital Mike Bink / Redactioneel

Hoje é o castelo medieval mais bem preservado (vídeo Youtube aqui). Originalmente, era apenas uma fortaleza com missão defensiva, dispondo de quatro torres circulares, com paredes que chegavam a ter 1,5 metros de espessura. A torre oeste é a mais alta — e a mais inclinada. É preciso galgar 83 degraus em espiral para chegar ao topo. Como toda a fundação foi feita em cima de areia, e o edifício era rodeado por um fosso junto ao rio, as infiltrações ameaçaram seriamente a estrutura — mas no último século as bases foram refeitas e a estabilidade assegurada. A história e os detalhes em torno desta construção são incontáveis, e merecem bem uma manhã de visita, que tanto pode terminar nos jardins de hortícolas e aromáticas que ainda hoje são cuidados ou então com uma pausa com direito a reforço de energias num dos cafés mais icónicos e antigos ainda em funcionamento da Holanda, o Café Ome Ko, fundado em 1810.

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A partir de Amesterdão, o castelo de Muiderslot é uma boa porta de entrada para um país de castelos Mike Bink / Redactioneel

Dali pode-se saltar para uma relaxante viagem de barco. Ou simplesmente entrar num autocarro (323, 324 ou 328) até à estação de Amesterdão Bijlmer Arena e dali apanhar o comboio para Utrecht, rumo ao castelo De Haar. Em cerca de 30 minutos e por 11€-17€ chega-se à estação central de Utrecht e até ao castelo, o ponto mais distante de Amesterdão neste roteiro, a opção mais rápida é apanhar um táxi. Assim que chegar, vai perceber que este pequeno esforço vale mais a pena do que o mesmo tempo numa fila de espera em qualquer atracção turística da capital.

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O castelo De Haar, nas imediações de Utrecht, foi recuperado com o dinheiro dos Rotschild. Hélène de Rotschild casou com o herdeiro da propriedade. Viria a morrer em Lisboa DR

Disney revisitada

Visto de longe, o castelo De Haar parece saído de um conto de fadas Disney. É uma imagem que pede para ser apreciada e memorizada. Pela mão de Fred Vogelzang, co-autor de uma importante obra sobre o local (“o maior livro sobre castelos de toda a Europa”, garante o próprio”), a reportagem da Fugas segue pelos históricos jardins e tem logo de fazer uma escolha: ou visita o vasto interior (mais de 300 compartimentos), ou fica-se pelos parques circundantes, com a capela, a casa secundária e os estábulos. A melhor solução, para quem dedicar uma manhã ou uma tarde inteira, acaba por ser um salomónico 50/50, dividindo o tempo disponível pelos compartimentos interiores mais significativos e por um passeio pelos jardins.

Os primeiros registos do castelo datam do final do século XIV. Nessa altura já teria o formato pentagonal que hoje apresenta, pertencendo à família De Haar. Em 1440, passou para as mãos dos Van Zuylen, cujo ramo católico se mudou para o Sul do país, quando rebentou a Reforma. É desta linhagem da família Zuylen (que tinha mais de 15 ramos genealógicos) que provêm os proprietários que acabariam por vender o castelo a uma fundação, mas mantém o direito a habitá-lo durante um mês por ano. Num lote com mais de 400 hectares de área (mais de 500 campos de futebol), é um conjunto especial porque há pouco mais de 100 anos foi totalmente restaurado e parcialmente reconstruído, com uma intervenção “sem paralelo na Europa”, segundo Fred Vogelzang. É ainda hoje considerada a maior restauração neogótica que esteve a cargo do mais importante arquitecto holandês, Pierre Cuypers — autor da estação central de Amesterdão e do edifício que alberga o Rijksmuseum, a “casa” de Rembrandt e de tantos pintores do Século de Ouro na capital holandesa.

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O castelo é actualmente propriedade de uma fundação, mas os herdeiros que venderam a propriedade conservam o direito a morar nele durante um mês por ano DR

Porém, a restauração (que não incluiu a capela) só foi possível graças à fortuna dos Rotschild, família que se cruzou com a família Zuylen graças ao casamento entre o barão Etienne e Hélène de Rotschild — uma socialite francesa que viria a viver em Lisboa. Há artigos que dizem que teria morrido em 1947, na capital portuguesa, mas o arquivo online dos Rotschild afirma que morreu em Nova Iorque. A história desta personagem é, só por si, tão rica que mereceria artigo próprio — foi a primeira mulher a competir numa competição internacional de carros (a corrida era Paris-Amesterdão-Paris e o barão com quem se casara era o presidente do Automóvel Clube da Holanda). Fê-lo sob pseudónimo (as mulheres não podiam participar), convenientemente escolhido (Caracol).

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Tudo é grandioso: De Haar, com o edificado e os jardins e parques, ocupa uma área de 400 hectares - mais de 500 campos de futebol. Para se fazer a obra, foi necessário mudar uma aldeia de sítio DR
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Um dos múltiplos salões do castelo De Haar, que cerca de 300 compartimentos e foi todo ele recuperado pelo histórico arquitecto Pierre Cuypers, autor do Rijksmuseum e da Estação Central de Amesterdão DR

Onde hoje se situam os jardins romanos, existia uma vila, Haarzuilens, que teve de ser mudada de sítio, para permitir a megalómana restauração. Setembro é o melhor mês para visitar este sítio pitoresco, que parece saído de uma pintura, porque nessa altura celebra as festas locais, que ainda hoje são inauguradas por um membro dos Van Zuylens, que oferecem o fogo-de-artifício que marca o arranque das celebrações.

Nas áreas do castelo, realizam-se festas de casamento, há zonas para piqueniques e festas temáticas ao longo do ano. De Haar nunca foi sítio de realeza. Mas no país dos klompen (socas), é rei e senhor.

A Fugas viajou a convite da Transavia/KLM e do Turismo de Amesterdão/Amsterdam Marketing

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