Precariedade e segurança económica – a caminho de um rendimento básico?
Do ponto de vista de uma ética social, a vitalidade de uma sociedade também se mede pela capacidade que tem de acolher novas ideias.
A utopia não tem boa imprensa. Não é raro encontrar-se uma ou outra tirada grandiloquente a ridicularizar toda e qualquer ideia que escape, em maior ou menor grau, àquilo que é tido como “realista”. Por isso mesmo, é sempre de saudar quando uma instituição como a Fundação de Serralves dedica um ciclo de conferências a um tema à primeira vista tão fora do comum quanto as “Utopias Europeias”. Afinal, se dar tempo de antena às utopias for mais do que um simples exercício de projeção de desejos vagos, então o que pode ser? Nada menos, arriscar-me-ia a dizer, que um exercício de deliberação coletiva sobre os ideais que merecem tornar-se mobilizadores e, na medida do possível, desdobrar-se num conjunto de tarefas potencialmente exequíveis.
Vem isto a propósito da próxima sessão deste ciclo, sobre o rendimento básico incondicional (RBI) como possível “utopia social”. Existem muitas e boas razões para se defender a desejabilidade da implementação de um rendimento básico. Elas vão desde a erradicação da pobreza à potenciação da liberdade de cada um, dando a todos os cidadãos, de forma não paternalista nem sujeita a condições de recursos, a possibilidade de escolher livremente o tipo de vida e as atividades a que se quiserem dedicar, sem que a sua sobrevivência esteja em risco. E, mais do que isso, não parece absurdo conjeturar que a possibilidade desta implementação passe de alegada utopia longínqua a solução premente, caso se confirmem os cenários de desemprego tecnológico associados à quarta revolução industrial e se quiser evitar uma situação de queda na pobreza de todos aqueles que o mercado de trabalho não consiga integrar.
Por que é que é importante levar a sério esta possível solução? Porque ela pode representar, de facto, o próximo estádio do desenvolvimento dos nossos sistemas de proteção social, numa perspetiva de aprofundamento do Estado Social para fazer face às transformações do mercado de trabalho. A verdade é que parece estar hoje provado que uma defesa da proteção social cujo enfoque esteja exclusivamente nos direitos laborais pode ser insuficiente para proteger todos, e simultaneamente conseguir responder a dinâmicas cuja reversão parece muito improvável.
O fim do paradigma das carreiras estáveis com direito a um nível adequado de proteção social é, em si, um problema grave que exige soluções novas. A flexibilização do mercado de trabalho e a proliferação generalizada dos vínculos precários fazem com que a segurança laboral seja uma das grandes preocupações dos trabalhadores, sobretudo dos mais novos. Os precários vivem, grande parte do tempo, de empregos esporádicos, frequentemente mal pagos, não têm segurança no emprego nem, a maior parte das vezes, qualquer capacidade de reivindicação perante patrões, ou forma de negociação coletiva, pelo que são duplamente excluídos: dos direitos laborais clássicos e da capacidade de representação, de poder reivindicar uma voz que lhes permitisse, de alguma forma, lutar por uma melhoria das suas condições.
Significa isto que existe algum grau de irracionalidade na forma como o trabalho é pensado hoje em dia. Por um lado, existe um endeusamento do mesmo, uma tentação de controlo absoluto da performance e uma competitividade levada ao extremo. Por outro lado, as condições de acesso ao emprego são profundamente desiguais e, quer no caso da obsessão pela performance, quer no caso da precariedade imposta, existe uma tendência para a aparição de diversas patologias, como o stress e o burnout. Isto já para não falar da pobreza existente mesmo para quem trabalha a tempo inteiro, ou a distância a que a esmagadora maioria dos portugueses está de um “rendimento adequado”.
Por todos estes fatores, parece fazer sentido analisar este complexo de problemas, como o faz Guy Standing, orador principal da conferência de Serralves a que aqui me refiro, a partir da perspetiva mais alargada da “segurança económica”, noção que inclui a segurança laboral, mas vai para lá dela. Standing, autor de um livro sobre o “precariado” (O Precariado. A Nova Classe Perigosa, publicado em português em 2014 na Editorial Presença), propõe uma agenda progressista que permita incluir esta enorme massa de pessoas num projeto de sociedade que funcione com base numa nova ética de solidariedade social e universalismo. E é por isso que advoga uma nova “política de paraíso” que é “vagamente utópica” e “com orgulho nisso”. Desse igualitarismo emancipatório fazem parte uma crítica do modelo neoliberal de globalização, uma recusa do populismo, mas também um conjunto de direitos económicos dos quais o RBI, como política pública universal e não paternalista, é uma parte fundamental.
O RBI, por si só, obviamente não acabaria com a precariedade nem com os problemas que esta acarreta. Não negaria a importância do trabalho remunerado como fonte de socialização e realização pessoal (pelo menos nalguns casos). Mas permitiria fornecer um nível básico de segurança económica a todos, incluindo os mais pobres e os precários, e remunerar as atividades não monetizáveis (como o trabalho criativo), libertando simultaneamente algum do tempo das pessoas que, em consequência da sua implementação, decidissem trabalhar menos numa sociedade onde, apontam as estimativas, a produtividade poderá ser cada vez mais assegurada pelas máquinas.
Do ponto de vista de uma ética social, a vitalidade de uma sociedade também se mede pela capacidade que tem de acolher novas ideias que permitam a cada um viver de forma mais digna e mais livre. Saibamos nós percorrer esse caminho, e a utopia parecerá menos inalcançável.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico