"Luis, não mordas no Mundial"
As famosas dentadas do avançado a alguns adversários foram tema de Estado no Uruguai e já custaram a sua expulsão no Mundial do Brasil, onde teve um castigo exemplar. As diabruras começaram aos 15 anos.
Quando Luis Suárez recebeu a alcunha de “coelho” aos 12 anos, nos juvenis do Nacional de Montevideu, poucos imaginariam como o atacante iria usar a dentadura saliente ao longo da carreira. Na verdade, o epíteto foi-lhe dado por causa da sua velocidade dentro de campo, não pelas tentações vampíricas.
Faltavam dez minutos para o final do encontro entre a Itália e o Uruguai na fase de grupos do Mundial do Brasil quando Suárez se envolveu fisicamente com o defesa Giorgio Chiellini, dando-lhe uma valente dentada no ombro. O árbitro não viu, o jogo prosseguiu e os sul-americanos marcariam o único golo do encontro logo no lance seguinte.
Mas era impossível ignorar uma situação tão insólita – e recorrente no caso do avançado. Chiellini entrou numa lista onde já se encontravam os infelizes Otman Bakkal, da Holanda, e Branislav Ivanovic, da Sérvia.
A FIFA não teve contemplações e expulsou Suárez do Mundial de 2014, proibindo-o de entrar em estádios de futebol durante quatro meses e suspendendo-o por nove jogos com a sua selecção. O Uruguai revoltou-se e até o Presidente uruguaio criticou o peso excessivo da punição.
“Gostamos dele porque é um rapaz filho da pobreza que está a léguas de ter recebido a formação académica de um eventual protocolo diplomático”, salientou o chefe de Estado José Mujica (2010-2015). “É grande no campo porque tem o milagre maravilhoso dessa arte.” Mas Luis negou todas as evidências, sugerindo mesmo que Chiellini usara photoshop para se fotografar com as marcas dos dentes.
Rebelde e temperamental, Suárez teve sempre dificuldades em estabelecer os limites entre a picardia e a transgressão absoluta. Quando já jogava na Holanda, ao serviço do Ajax, protagonizou uma cena idêntica com Bakkal, durante um clássico com o PSV. E a partir desse momento começou a dividir radicalmente opiniões a seu respeito: alguns adulavam-no, outros odiavam-no.
O goleador continuou a não reconhecer limites dentro dos relvados. Ao serviço do Liverpool foi punido com oito jogos de suspensão, acusado de insultos racistas a Patrice Evra, do Manchester United. De acordo com a federação inglesa de futebol, depois de o uruguaio ter derrubado o defesa francês, este levantou-se e perguntou-lhe o que é que justificava uma entrada tão violenta. “Porque és preto” terá ouvido como resposta.
Não satisfeito com as críticas crescentes, voltou a usar a dentadura para castigar outro defesa, desta vez o sérvio Branislav Ivanovic, então no Chelsea, em Abril de 2013. Foi punido com dez jogos de suspensão. Sugeriu que estava mudado, mas não serviu de nada. No ano seguinte, no Brasil, os seus dentes tornaram-se um fenómeno global.
Nada é mais importante
A Itália colocou-o na lista negra, tal como grande parte dos ingleses (excepto o Liverpool), muitos holandeses e até ganeses, que nunca lhe perdoaram um outro incidente ocorrido no Mundial de 2010, na África do Sul.
As duas selecções discutiam a passagem às meias-finais, com o marcador empatado a uma bola no último minuto do prolongamento, quando um lance atacante do Gana ia sentenciar o encontro. Suárez impediu o golo defendendo a bola com as mãos. Foi expulso e assistiu a caminho dos balneários à infelicidade de Gyan que falhou o castigo máximo atirando à barra.
Luis festejou como se tivesse marcado um golo e mais ainda quando a sua selecção confirmou o apuramento na decisão por grandes penalidades. Todo um continente ficou chocado. “África foi roubada”, escrevia na primeira página um jornal sul-africano. O jogador voltou a justificar-se, sem aparente peso de consciência.
“Coloquei as mãos porque não podia fazer outra coisa. Não pensei em nada. Não há nada mais importante do que jogar com a camisola da selecção”, admitiu meses depois ao jornal El País (do Uruguai). “Ficaria mais contente se me recordassem pelos golos contra o México [fase de grupos] e Coreia do Sul [oitavos-de-final], mas esta mão foi importante para o país e não me arrependo”, disse.
“O Luis não aceita a derrota e o seu temperamento leva-o a cometer erros às vezes”, explicou o seu amigo e colega de selecção Diego Lugano. Já o Uruguai ficou-lhe eternamente grato. Aqui é e será sempre um herói nacional como constatou o jornalista americano da ESPN Wright Thompson numa visita a Montevideu, um mês antes do Mundial do Brasil.
A cara do árbitro
A ideia era traçar um perfil do jogador falando com pessoas que o conheceram na adolescência, quando tropeçou numa história curiosa e reveladora. Contaram-lhe que Luis tinha sido expulso de um jogo de juvenis quando tinha 14 anos por agredir um árbitro à cabeçada. Tentou confirmar tudo e encontrar a vítima mas deparou-se com um muro de silêncio e hostilidade.
Foi persistente e acabou por descobrir o nome do árbitro: Luis Larranaga. Ao mesmo tempo, encontrou um jornalista local que aceitou falar. Este recordava-se de facto de um incidente antigo ainda que sem grandes pormenores e não mostrava muita paciência para aprofundar o assunto. Revirou os olhos e disse-lhe que aquilo que procurava “era lixo”. Mesmo assim, acedeu em telefonar à sua frente para um antigo treinador de Suárez nas camadas jovens.
Depois de desligar o telemóvel estava pronto para contar a versão “oficial” dos factos. Luis tinha 15 anos e não 14 na altura do incidente, o jogo envolvera o Nacional (clube do avançado) e o Danubio e não houvera definitivamente nenhuma cabeçada. Tudo distorções com o objectivo de perseguirem Suárez.
A verdade era bem diferente: ele simplesmente protestara com o árbitro. “E quem não faz isso?” Claro está, a sua cabeça tinha batido na cara do juiz, mas não propositadamente. “Ele caiu acidentalmente” em cima do árbitro com a cabeça. Foi a primeira de muitas “quedas” polémicas.
Os dentes de fora
Por ocasião da dentada no Brasil, um repórter uruguaio deu também a sua versão do ocorrido com Chiellini. “Depois de saltar para a bola a sua cara acertou no ombro do jogador italiano”. E para azar do defesa transalpino tinha os dentes de fora.
Mesmo depois de todo o mundo ter constatado a mordidela, Luis continuou a negar. Até à própria mulher, Sofia. “Ele negava tudo”, contou, revelando que só dez dias depois do ocorrido é que admitiu à família. “Custou-lhe a assumir a realidade”, revelou, numa entrevista conjunta com Suárez a uma revista uruguaia. “Por que é demorei tanto a pedir perdão? Porque não podia acreditar que o tinha feito”, respondeu o atacante.
“Se ele pudesse ser um jogador sem essas polémicas, melhor. Mas também é muito difícil encontrar um com tanta raça e tanta vontade de jogar que não tenha pequenos problemas assim”, resumiu o jornalista uruguaio Mário Uberti.
Por via das dúvidas e para evitar outra transgressão polémica na Rússia, uma criança uruguaia pediu-lhe que fizesse uma promessa antes de o jogador viajar com a equipa para o torneio. Quando Suárez estava dentro do seu carro a dar autógrafos e deixar-se fotografar por adeptos, aproximou-se do veículo e gritou: “Luis, não mordas no Mundial!”