Quando a cerveja é tratada como o vinho
É uma ciência. E há muitos "cientistas" que andam a fundir os poucos ingredientes da cerveja artesanal com vinho — nas suas mais diferentes formas e feitios. Há pipas de madeira entre cubas de inox, barricas onde envelhece um antes do outro, enólogos que são cervejeiros (vice-versa também) e até experiências que repousam durante a noite debaixo de videiras.
A cerveja e o vinho vivem em dois mundos diametralmente opostos? Há uma divisão entre os amantes de uva e os fãs de grãos? Uma nova onda de produtores artesanais está a combinar cerveja e vinificação para criar cervejas únicas perfeitas para os amantes do vinho, encontrando um terreno comum entre cervejeiros e produtores de vinhos com visão de futuro — duas facções tradicionalmente em silêncio.
"17-12-12" e "02-02-13". Os dois números estão escritos à mão de forma tosca no topo de uma pipa, conservada quase como uma relíquia. Significa que entre Dezembro de 2012 e Fevereiro de 2013 uma cerveja artesanal cresceu em contacto com madeira, que já tinha uma vida inteira de vinho do Porto. "Já tinha à volta de 60 anos de vinho do Porto", recorda Arménio Martins, mestre cervejeiro da Sovina, a primeira marca de cerveja artesanal em Portugal (foi lançada em 2011). "Esta era a segunda remessa. A pipa tinha borras, material precioso. Fizemos a primeira experiência no início de 2012 e saiu logo uma cerveja fantástica". Cresceu numa pipa com depósitos de vinho do Porto da Quinta de Tourais, de Lamego. Saiu para o mercado a Sovina Amber Vintage em garrafas de 75cl, cerveja artesanal que simbolicamente poderá assinalar o início de um produto híbrido que hoje continua a ganhar terreno não apenas nas bancas, mas nas pequenas adegas, nas grandes propriedades e em alguns esconderijos onde se escondem autênticos laboratórios de sabores.
"Era designer e a criatividade já vinha comigo. Mas quando descobri as cervejas artesanais percebi que podia ser ainda mais criativo". Nos planos de Arménio, o nascimento da cerveja artesanal e o seu casamento com o vinho começaram a fermentar praticamente em simultâneo. "Na minha cabeça era óbvio que tínhamos que fazer uma combinação com a tradição dos vinhos, que é muito forte no nosso país", diz. "Com a intromissão dos vinhos", prossegue, "há um espectro que se abre no universo das cervejas". E vice-versa.
Acredita "piamente" que esta é uma "oportunidade de ouro" para desenvolver um produto. "É possível conjugar as duas tradições. É a nossa alma. Lá fora, é disso que estão à espera", lança o mestre cervejeiro da Sovina, líder do segmento das cervejas artesanais recentemente comprado pelo Esporão — que quer crescer com ela [ver entrevista com João Roquette]. "Agora temos o Douro, temos o Alentejo e temos enólogos com uma experiência incrível. Está tudo em aberto para parcerias incríveis neste projecto embrionário", aponta Arménio Martins, em sintonia com José Luís e David Baverstock, respectivamente enólogos da Quinta dos Murças e da Herdade do Esporão. “Não é um mero investimento financeiro de uma empresa como o Esporão, que tem já quase dez anos no mercado, e se quer aproveitar do que os outros já tinham feito. Não. É, antes, aproveitar o que de bom tem cada uma destas empresas, para juntas fazerem um caminho novo”, sintetiza, do lado do Esporão, João Roquette.
O discurso de Arménio está cheio de "criatividade" e de "inovação". Esse é de resto o discurso daqueles que, inicialmente às cegas, arriscaram apresentar uma grape ale — cerveja feita com uvas — ou simplesmente daqueles que olham para as velhas barricas, cada vez menos dispensáveis, como mais um ingrediente desta receita, um vulcão de possibilidades. "É uma coisa muito simples", resumia em Novembro de 2017 o enólogo Anselmo Mendes na apresentação da primeira grape ale da minhota Letra onde é possível sentir os aromas tropicais da uva Loureiro — um ano em barrica reutilizada de Alvarinho e uvas originárias do Vale do Lima.
"Brindamos à cerveja artesanal com vinho do Porto", celebrava há cerca de dois meses Sophia Bergqvist enquanto erguia o copo de Quinta de la Rosa Porto Vintage para celebrar um projecto "um pouco diferente", a primeira linha de cervejas artesanais da quinta do Pinhão, uma fusão de técnicas apurada numa adega em Sabrosa por Jorge Moreira, enólogo que sentiu estar a trair o vinho quando trocou as uvas pelos lúpulos. "Peguei numa cerveja completamente inglesa e dei-lhe a identidade do Douro — não só pela utilização de barricas onde estagiamos o vinho La Rosa reserva branco, mas também pelo equilíbrio de sabores e de estrutura que tentamos passar do vinho para a cerveja. Tento passar a noção de equilíbrio e de elegância dos nossos vinhos para a cerveja. A cerveja tem a nossa marca, tem a marca La Rosa, e por isso tem que ter um padrão de qualidade e de identidade único."
"Reconhecido no mundo inteiro, o vinho do Porto", reconhece o mestre cervejeiro da Sovina, pode ser "o cartão-de-visita" das cervejas artesanais portuguesas. O futuro aponta para "cervejas novas", para o trabalho dos cervejeiros em sintonia com diferentes enólogos e com as "várias características de cada região vínica". Neste tipo de cerveja, diz, há aquilo a que chama de "acompanhamento sensorial". "Não são dados num computador que estão dentro de parâmetros. Provamos a cerveja em cada fase para ver como está a evoluir e reage. Cada lote de cerveja é um bebé que está a crescer", descreve este apaixonado por cervejas artesanais que se inspirou no exemplo dos Estados Unidos, a produzir em força desde os meados dos anos 80. Existiam duas grandes escolas de cerveja, a alemã e a belga. Os EUA vieram intrometer-se, cruzando variedades de lúpulos, introduzindo novos aromas e intensidades. As cervejas industriais, que estavam sossegadas, começaram a piscar o olho às artesanais. As artesanais vieram subir o patamar."
"Quase todos os dias", diz, há marcas novas de cerveja artesanal com uma ficha técnica simples (água, malte, lúpulo e levedura; talvez a barrica seja mesmo o quinto elemento, como sugere a lisboeta Dois Corvos, que fala em lotes "únicos e complexos") e 100 por cento natural. Quase todos os dias surgem também marcas novas das grandes cervejeiras, irrequietas. E é possível produzir artesanais em grande quantidade? "No estrangeiro há artesanais fantásticas, maiores do que as industriais cá. Tem a ver com as técnicas e com a escolha de ingredientes de grande qualidade", responde Arménio (a trabalhar com os maltes da Weyermann, mais de 200 anos de actividade), com "um grande passo" em mente: "Queremos produzir as nossas próprias matérias-primas de uma forma biológica. Uma receita cem por cento portuguesa."
Em Portugal, a pedalar atrás dessa receita encontrámos Tiago Falcone, que "já fazia experiências há dez anos no Brasil", onde a família faz cerveja desde 2004 — sem vinho. O mestre cervejeiro brasileiro, 30 anos, e uma bicicleta como apêndice, percorre actualmente a Europa à procura dessa fusão, dos híbridos, das "combinações perfeitas". "Resolvi partir em Junho do ano passado, já percorri 16 países e dez mil quilómetros", resume Tiago, que viveu em Roma e Londres (onde produziu na Beavertown Brewery, adega com mais de 250 barricas) antes de partir nesta aventura. "Sempre gostei de pedalar. Queria arranjar uma forma de viver por muitos anos, pedalando e fazendo o que eu sei fazer, que é cerveja".
Tiago vai ficar mais um ano pela Europa e programa passar quatro anos entre a Ásia, a América do Norte e Sul, parando por alguns meses para trabalhar e juntar dinheiro para continuar a viagem. Objectivo: conhecer "cervejas que envelhecem em barricas de madeira" e "trabalhar com produtos locais". "Interessa-me a cultura dos fermentados porque está muito ligado à cultura do povo", sublinha, mais ou menos a meio do seu percurso pelas principais regiões do vinho português e das suas "peculiaridades". "O mundo da cerveja tem muito a aprender com o mundo do vinho. Foi isso que eu vi em França, com um mercado de cervejas muito parecido com o português. O grande potencial em Portugal é essa aprendizagem no que se refere ao envelhecimento em barricas. É preciso experimentar muito e anotar muito. A parte científica é muito importante".
O laboratório secreto da Luzia
Está uma placa à saída da auto-estrada que assinala a rota de vinhos da Bairrada. Em Antes, a cerca de três quilómetros da Mealhada, a cerveja Luzia encontrou guarida na casa centenária que já foi da avó de Ruben Almeida. Ainda a Luzia não era Luzia. "A casa estava fechada há muitos anos. Já foi uma mercearia", explica o neto, 28 anos, fundador (com Patrícia Fernandes, 27) da marca de cerveja artesanal que faz da criatividade uma das suas melhores receitas.
Sobrevive com capitais próprios e por isso DIY é uma expressão digna da Luzia, literalmente um laboratório. Os "cientistas" de serviço usam os "económicos" tanques de vinho em vez das cubas de fermentação de cerveja e às vezes ainda vão colocar debaixo de videiras depósitos de 20 litros de cerveja de fermentação espontânea à base de trigo. "Terminado o processo de fervura, levamo-la para a vinha ou para a floresta onde arrefece e aí fica durante umas 12 horas, mais ou menos uma noite; de manhã recolhemos, tapamos e as colónias vão-se desenvolvendo. As pessoas arregalam os olhos pela diferença. É uma cerveja azeda, ácida e salgada. É uma quantidade minúscula, mas economicamente viável e com um grau alcoólico reduzido", descreve Ruben, um estágio em Bordéus — para além do Erasmus que ambos fizeram na cidade italiana de Viterbo na sequência do curso de Enologia da UTAD.
A Luzia apareceu numa feira local em 2013. "As pessoas ficavam curiosas mesmo achando as cervejas estranhas", recorda Patrícia, apontando para "a primeira panela" usada, agora a um canto da antiga mercearia. "As cervejas que saíam mais facilmente eram as que despertavam curiosidade". Daí à pesquisa por cervejas "em vias de extinção" foi um ápice. "Encontrámos um dia uma cervejeira italiana que estava a usar mosto de vinho para produzir cerveja. 'Isso é a nossa cara! A nossa formação é em enologia'", reconstitui Ruben. O curso de ambos ficou em stand-by, ganhando forma o plano "cerveja envelhecida em barrica", dentro da tipologia Italian Grape Ale e tendo em conta os "variadíssimos processos de fabrico". "Fizemos a nossa versão", contam. Sabiam que "as pessoas queriam coisas mais exóticas" e como tinham "uma barrica parada"... "Fizemos maturação em barrica durante seis meses e correu bem. Mesmo havendo pessoas que não gostavam, por ter um sabor diferente compravam na mesma", sublinha o fundador da Luzia que já usou barricas de vinho tinto em segunda mão, "raspadas e queimadas" e também barricas de uísque escocês.
Se a Gose, que fermenta sem adição de levedura, deu o primeiro sinal, a Italian Grape Ale ("base American Pele Ale com a levedura que vem da película da uva") foi a confirmação de que o risco valia a pena. "Essa encaixava tanto no nosso gosto como no das pessoas. 'As nossas cervejas podem ir por este caminho'. Com a nossa dimensão, se fizéssemos cervejas que os nossos colegas muito bem fazem, não teríamos hipóteses. 'As nossas seriam cervejas especiais'", sentenciou.
No primeiro ano foram produzidos 300 litros, no segundo 500 e o lote de 2017 ascendeu aos mil litros — um número que ameaça multiplicar-se. "Usamos cerca de 30 por cento de vinho. Fermenta tudo no mesmo tanque e fica a estagiar em barricas cerca de meio ano, a ganhar corpo, a decantar", descreve Ruben Almeida, tentando estabelecer um padrão e apesar de saber que o segredo está nas variáveis. "Fazemos a olho."
Se os vinhos "mudam de ano para ano", também os lotes Luzia. "Usamos uvas brancas que têm sempre alguma acidez. O único controlo que fazemos na vinha é do açúcar", refere Ruben, pais viticultores que apenas comercializam a uva como fruta. "Faço algum vinho para eles e para alguns amigos, mas apenas para consumo diário."
A Letra da revolução
Pedimos licença a um funcionário municipal ao mesmo tempo que nos esgueiramos na desactivada Adega Cooperativa de Vila Verde, há muito tempo abandonada à sua sorte, empoeiradas cubas em cimento e reservatórios imensos — nem sinal de cheiro a vinho. Já está adjudicado o projecto de requalificação da adega, localizada no centro da vila e que se vai transformar em auditório multiusos. Num espaço adjacente, adiantaram-se os antigos armazéns municipais, já com novos inquilinos, fervilhantes. "O edifício estava numa zona degradada", assinala Filipe Macieira, 33 anos, com uma palavra a dizer na revitalização da zona de Barbudo.
Letra é o nome da cerveja artesanal que inventou — correcção, vai inventando — a meias com Francisco Pereira, 32, colega de curso de Engenharia Biológica desde 2003, e que ambos produzem, explicam e vendem num espaço híbrido, paredes de vidro, "tubos de ensaio" de inox (e não só) à vista. Em 2008, quando terminaram o curso na Universidade do Minho (UM), estiveram os dois em contacto com a indústria cervejeira. Filipe foi para Praga, Francisco passou pela UNICER. "Percebemos que havia um mundo por conhecer", diz à Fugas Filipe. "Trabalhávamos os dois como investigadores na UM. Falámos com a direcção do departamento que nos deixou fazer os testes com receitas de 20 litros". Fizeram "provas cegas" e neste "challenge" as artesanais foram batendo aos pontos as industriais.
"Em 2010", recorda, "não havia cerveja artesanal em Portugal". Havia duas grandes marcas industriais e o consumidor estava "bloqueado em termos de sabores e de aromas." As conquistas do vinho (um produto premium com diferentes níveis de preço, com ligações a chefs e parcerias com produtores locais) levaram a dupla a querer algo semelhante para a embrionária Letra. "Captar públicos do vinho para a cerveja", sublinham, apontando para "a maturação em barrica", na altura uma referência nos EUA — e pouco mais.
A "fusão" com a Quinta do Portal surgiu em finais de 2013. "Queremos ter uma cerveja com a vossa marca", desafiou a Letra. "Vocês fornecem-nos as barricas de vinho do Porto que já não usam e nós colocamos lá cerveja e a vossa marca no contra-rótulo das garrafas". Foi mais ou menos assim que aconteceu com o enólogo Paulo Courinho. A cerveja ficou um ano a estagiar em barricas e surgiu nos copos em 2015. Na Letra fala-se de cerveja. E fala-se de Moscatel do Douro, de aguardente vínica, de Chardonnay e Cabernet Sauvignon. "E depois colocamos diferentes cervejas nas diferentes barricas", lança Filipe Macieira enquanto circula pelas instalações da fábrica "transparente" — um protocolo com a câmara de 25 anos que teve um "empurrão" de fundos comunitários Proder (de apoio ao desenvolvimento rural) — e entre cubas de inox e cerca de 50 barricas de madeira (70 por cento de vinho do Porto da Quinta do Portal, mas também de whisky feito com malte fumado proveniente da Escócia). "A qualidade do produto que tem antes (seja vinho, whisky, moscatel ou aguardente) transfere para a cerveja uma qualidade interessante sensorial. Esse é o jogo da parte criativa. Essa parte criativa de desenho da cerveja é que é interessante de desenvolver."
Se, em média, as cervejas artesanais se conservam um ano, estas "não têm prazo de validade de consumo". "Nestas colocamos no rótulo quase por brincadeira um prazo de validade de 30 anos como que a dizer que esta cerveja vai evoluir. É quase como um vinho, vai perdendo umas características mas vai ganhando outras. E normalmente as que ganha são melhores do que as que perde. Há inclusive cervejas industriais, belgas principalmente, em que um lote comprado fresco custa um euro a garrafa e num lote com cinco anos, já fora do prazo de validade, uma garrafa pode valer 10 euros. Esta dinâmica de cervejas datadas resulta em produtos exclusivos com aficionados sempre em busca de algo diferente." Foi aí que entrou a parceria com Anselmo Mendes, também minhoto. "Propusemos e ele aceitou", recorda Filipe. Não sabiam no que ia resultar, mas sabiam que ia sair algo. Bagos de uva do Vale do Lima na fermentação da cerveja, um ano em barrica reutilizada de Alvarinho, nova grape ale — apresentada em Novembro de 2017 na Letraria Craft Beer, espaço portuense onde a Letra exibe as suas "colheitas" e alguns exclusivos.
Se o gosto do enólogo "vai evoluindo ao longo do tempo", o do cervejeiro também. "O nosso trabalho é quase o trabalho de um enólogo". Os "taninos da madeira" e o "abaunilhado", o "perfil" e o "blend com barricas mais antigas e mais novas". E rótulos de lotes de mil litros com um número. "É um processo completamente natural", aponta o cervejeiro. "O foco no vinho é na persistência e na consistência. Na cerveja não há a variável da vinha, é uma receita como fazer uma sopa. A parte mais espontânea acontece na barrica."
Actualmente, a Letra lança no mercado quatro gamas: Letra (A Weiss, B Pilsner, C oatmeal Stout, D Red Ale, E belgian dark strong ale, F american Pale Ale), que representa 80 por cento da produção, Letra on oak (maturadas em barrica), Barbudo editions (edições novas, limitadas e não repetíveis) e outras Colaborações (Dois Corvos, Musa, Colossus e algumas marcas internacionais). A cerveja de Vila Verde quer fortalecer laços com produtores locais (framboesas, mirtilos, frutos vermelhos...) para continuar a fazer "cervejas diferentes" e já está a "desenhar" uma sidra e um gin.