A minha relação com a Escola é esquizofrénica. Julgo que quase me convenceu que eu era doente mental, e nunca percebi a razão para querer diagnosticar algo que era óbvio. Foi essa dicotomia que me confundiu. A bem da verdade, tem sido um belo combate de boxe. Não que eu perceba de boxe, não vos quero surpreender. Gosto das luvas, é só. E hei-de manter-me de pé. Até porque dentro do ringue estamos empatados no que se refere a knockouts. Recentemente, a Escola baixou a guarda e eu enfiei-lhe uma direita incrível mesmo no queixo, quase que caiu, balançou, balançou, mas agarrou-se a tempo às cordas. O combate continua.
A Escola tem sempre razão. Quem se atreve a dizer que a Escola não tem razão? Tem sempre! Afinal, é a Escola. E "ela", essa figura aristocrática tão próxima da altivez da estátua da liberdade — ou daquela bela lusa, de formas arredondadas, no fim da ponte 25 de Abril — é uma senhora imponente.
A lição, a primeira lição, é que a vida é um conjunto de eventos racionais. A Escola tentou ensinar-me a suprimir as emoções e a afastar-me da herança dos macacos, desses jagunços ancestrais que são como uma maldição, ou uma espécie de Amor de Perdição impregnado nos meus genes. A segunda lição foi que a vida é passível de ser vivida folheando um livro e seguindo todas as regras elementares, desde aquelas que estão escritas pelos doutos senhores das leis às outras — as convenções sociais —, que até no mais banal e aparentemente inocente comentário do vizinho constituem a cartilha do comportamento adequado em sociedade. A terceira lição é que a vida sem memória não existe e, espantai-vos, é talvez a lição mais inteligente. O problema é quando perante discursos ocos, sem conteúdo e desinteressantes a partir do quadro negro, eu adormecia acordado, e de repente do outro lado era despertado por uma espécie de zumbido — enquanto viajava com O Principezinho pelas estrelas e curtia um momento zen — ò Hélder, responda lá à pergunta, por favor! — e eu a acordar lentamente e a pensar — estou desgraçado que não ouvi um caraças, vamos lá ver como me safo desta! —, mas agarrava na espada, assumia a posição do D. Quixote e dizia convicto — desculpe, professora, pode repetir a pergunta? E vocês, boquiabertos, pensam — Brilhante! — como, a bem da verdade, só descobri esta estratégia quase na minha adolescência, até lá “levei nas trombas como gente grande”.
Depois, havia o tormento dos testes. Ficava impressionado, verdadeiramente impressionado. Há pessoal que decora tão avidamente e reproduz tão fielmente que é como colar selos com a língua (e há pessoal incrível a decorar páginas dos livros escolares). No meu caso, se for um bom poema curto ainda se dá, ou o nome de jogadores de futebol, ou curiosidades. Sim, sou muito bom com curiosidades. Sei de cor que Miguel Torga é o pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, por exemplo.
Voltando ao que interessa. A minha estratégia nos testes era ler a pergunta com atenção e agarrado ao sentido, dissertava. Não há nada como ler com atenção e escrever umas linhas porreiras, criativas, bem adjectivadas. Claro que, a bem da verdade, era para divertir os professores. Imagino que estarem a corrigir testes com respostas idênticas, umas atrás das outras, deve ser muito, muito aborrecido, por isso, e como normalmente pela ordem alfabética eu aparecia lá pelo meio, os professores encontravam o meu teste, começavam a ler e percebiam que quem tinha respondido àquilo havia sido um marciano.
A minha professora da primária costumava usar uma expressão furiosa comigo — eu pergunto alhos, tu respondes bogalhos! —, nunca tive coragem para lhe responder. Apetecia-me dizer "Ò professora, não leve essas coisas tão a peito, fazem-lhe mal ao coração!", mas era capaz de em vez de levar um estalo ou duas reguadas a coisa ser a duplicar. No meio desta algazarra tive sorte, como a hiperactividade e o défice de atenção ainda não tinham chegado à aldeia, não “doparam” a minha alegria, e acreditem que ser criança é trabalhoso. Infelizmente é um trabalho muito pouco reconhecido e considerado. Mais tarde, já na secundária, o meu professor de Filosofia não deixou de qualificar a minha qualidade na escrita e o meu poder criativo. Deixou-me um recado num teste que dizia assim: “Muita parra, pouca uva.” Abandonei a escrita criativa para sempre, nem a posso ver.
A Escola esforçou-se, acreditem que se esforçou. E eu guardo bem vivos momentos incríveis; do recreio aos momentos atrás do pavilhão C, passando pelos grandes desafios nos campos de futebol de alcatrão, guardo tudo na memória. Portanto, nem tudo se perdeu. Entretanto, já na faculdade, apresentaram-me o Pierre Bourdieu, um francês catita e inteligente que escreveu uma curiosidade ainda antes de eu nascer, e é algo do género: toda a imposição cultural é uma violência simbólica e a imposição da cultura escolar não é excepção. Muito bem, não acham? E não foi o único, Basil Bernstein, Ivan Illich escreveram coisas idênticas, e Paulo Freire reforçou, todos usando as suas próprias palavras, como devem compreender senti-me mais aconchegado. Antes de eu nascer já andavam por aí a escrever estas coisas. Senti-me compreendido. Eu que já coleccionava um conjunto de nódoas negras e feridas abertas, juntei mais este ponto fraco da Escola para, se se proporcionar, arrear-lhe com a esquerda.
Por fim, deixo-vos um conselho. E vocês perguntam, o que pode um falhado deixar como um conselho? E têm razão. Por isso vou recorrer a outra pessoa para vos deixar um conselho e vai ser… deixem ver… Samuel Beckett… é mesmo isso. Um excerto da peça Worsward Ho, que diz assim: "(…) Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better. First the body. No. First the place."