É cada vez mais difícil salvar vidas no Mediterrâneo

Ninguém sabe quantos resgatados estarão à espera de saber para onde vão. Um navio americano tem 40 pessoas a bordo sem ter onde as desembarcar.

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O navio que viajou até Valência vai agora voltar para a zona de naufrágios Manuel Bruque/EPA

Há um mês havia quatro organizações não-governamentais empenhadas em resgatar gente a precisar de auxílio no Mediterrâneo. Há um ano eram 13. As decisões de Itália e da própria União Europeia, que assinaram acordos com diferentes autoridades da Líbia para evitar que requerentes de asilo cheguem a partir do destroçado país, tornaram o trabalho destas ONG muito arriscado. Para além disso, os próprios italianos chegaram a confiscar-lhes navios e a acusar funcionários de “ajuda à imigração ilegal”.

O último episódio da guerra entre Roma e as ONG começou há uma semana, quando depois de organizar o salvamento de mais de 600 pessoas, avisando o Aquarius das posições de embarcações naufragadas e mandando a sua Guarda Costeira entregar 400 resgatados ao navio gerido pela SOS Méditerranée em colaboração com os Médicos Sem Fronteiras (MSF), o Centro de Coordenação Marítima de Roma (CCMR) proibiu a embarcação de aportar em qualquer porto italiano.

A pequena crise dentro da tempestade em curso resolveu-se com a oferta do Governo de Pedro Sánchez para receber os resgatados em Valência, onde já chegaram. A SOS Méditerranée disse que enquanto decorreria a sua viagem até Espanha mais pessoas ficariam sem ser salvas no Mediterrâneo Oriental e a Sea-Watch-3, ONG alemã que deu o seu nome a outro navio, fez avisos semelhantes, acrescentando que tinha sido deixada sozinha a tentar salvar pessoas.

Actualmente, e de forma oficial, há três navios de socorro civis a operar ao largo da Líbia, de onde partem quase todos os que querem chegar às costas da Europa. Ao Aquarius e ao Sea-Watch-3 soma-se o Seefuchs, de outra ONG alemã, a See Eye. Todas se queixam de que realizam um trabalho cada vez mais difícil e com potenciais consequências graves. As ONG a bordo do Aquarius asseguram que vão voltar, mas não sabem o que fazer quando o novo Governo italiano, de extrema-direita, voltar a recusar acolher pessoas e Malta fizer o mesmo.

Grandes naufrágios

O esforço destas organizações, que em 2013 começaram a constituir-se como uma flotilha informal, surgiu na sequência de uma série de tragédias, como o naufrágio de 3 de Outubro desse ano de um navio com 500 imigrantes a bordo, onde morreram 370. Em 2015, já Itália tinha posto fim à sua missão de resgate, Mare Nostrum (custava 8 milhões de euros por mês e Bruxelas recusou contribuir), multiplicaram-se os naufrágios com números impressionantes de mortos, como o de Abril, quando se afogaram 800 pessoas junto a Lampedusa.

A UE substituíra entretanto a missão italiana por novas operações, mas agora com o objectivo de controlar fronteiras, não salvar pessoas, e com navios que têm ordens para não sair das águas europeias. O resultado foi a chegada ao Mediterrâneo de ainda mais ONG, incluindo os MSF, com o navio Prudence, a Save the Children ou a Proactiva Open Arms, a ONG que teve o seu navio Astral confiscado, viu os líbios dispararem contra os seus tripulantes e enfrenta a Justiça italiana. Em Maio, desistiu.

Os MSF, que ficaram a colaborar com a franco-alemã SOS Méditerranée, saíram em Agosto de 2017, depois das funções atribuídas por Bruxelas e Roma aos líbios, quando estes começaram a disparar, tentando impedir os navios humanitários de chegar às pessoas no mar – enquanto estão na Líbia, ou quando as forças líbias os apanham a tentar partir ou já na água, os potenciais refugiados são mantidos em centros de detenção onde abundam descrições de tortura, roubo e violações.

Porto seguro

As ONG obedecem às leis internacionais de socorro marítimo, que obrigam quem esteja no mar a salvar os que correm risco e a transportar os resgatados até ao “porto seguro mais próximo”. A Líbia não cabe nesta descrição.

Para além dos navios das ONG que resistem (o actual Governo italiano chama-lhes “táxis do mar”), estão no Mediterrâneo os barcos da Frontex, a agência que se ocupa da segurança das fronteiras da UE (cuja função é ainda dissuadir as pessoas de tentarem alcançar a Europa), navios italianos que têm de cumprir o seu dever e salvar quem está em risco de afogar-se, e outros navios estrangeiros que por ali passem.

É o caso do USNS Trenton, da Marinha americana, que na terça-feira se deparou com um barco de borracha com mais de 60 pessoas a bordo. A tripulação resgatou 40 (depois disso já não encontrou mais ninguém) e chegou a subir a bordo 12 cadáveres (segundo a ONG See-Watch-3, devolveu-os, entretanto ao mar).

Como contaram à revista Newsweek, os responsáveis do Trenton puseram-se em contacto com o See-Watch-3, de bandeira holandesa, mas a ONG recusou receber os sobreviventes sem uma garantia escrita de Itália de que os deixaria “desembarcar em 36 horas”. Como isso não aconteceu (Roma diz agora que só deixará aportar navios com bandeira italiana), as 40 pessoas (35 homens e cinco mulheres, incluindo quatro menores) continuam no barco dos Estados Unidos.

“Nada pode impedir Itália de assumir medidas contra nós, e talvez estejamos em breve fora de água, mas vamos tentar fazê-lo o mais dignamente possível e continuar a salvar as pessoas que seja possível salvar”, diz Giorgia Linardi, porta-voz da See Watch em Itália, citada pelo diário Le Monde. “O trabalho das ONG complicou-se muito, com uma criminalização das operações”, afirma Sophie Beau, co-fundadora e directora-geral da SOS Méditerranée.

“Cada vez é mais frequente que nos peçam para ficar em stand-by porque a Guarda Costeira líbia tem responsabilidades crescentes e há muitas situações confusas”, diz ao El País Aloys Vimard, director de projectos dos MSF que costuma estar a bordo do Aquarius. “O que queremos são regras claras.”

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