Pôs a raiva numa pintura e agora mandou-a fora

João Viola e Dina Duarte dedicaram-se a ajudar os vizinhos depois dos incêndios. Fizeram reuniões em casa, organizaram voluntários, procuraram ajuda junto de empresários e vão inaugurar um memorial em Nodeirinho. Fizeram disso a sua vida no último ano. O PÚBLICO esteve com eles nos últimos meses e conta-lhe como esta comunidade recupera o dia-a-dia.

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João Viola Adriano Miranda

A luz do fim da tarde torna tudo mais negro, mesmo que os fetos e os rebentos de eucaliptos tenham despontado ainda no Outono. Finalmente, já a Primavera cheirava, começaram a aparecer os primeiros melros na aldeia do Nodeirinho, em Pedrógão Grande. “Achávamos que tinham morrido os grilos todos.” Mas não. Chegaram primeiro os corvos, que “dão um certo sinal”, depois uma águia, depois um melro, depois um grilo e outro, e outro. O som dos animais que o acompanhava e lhe dava ânimo e alento foi regressando aos poucos. Sentado na cadeira de madeira, que pediu a um amigo para esculpir a partir de uma árvore queimada, João Viola olha em volta – o que se ouve é um “silêncio ensurdecedor”, apenas entrecortado por um ou outro chilrear tímido.

Está cansado. De manhã tinha pegado no seu bombo, percorrido uns quilómetros até chegar a um monte na serra da Lousã, ali à beira da vila vizinha de Castanheira de Pêra, para com o som seco daquele instrumento chamar as forças vivas da terra, em que acredita.

O fogo matou a fauna agarrada à flora, perdeu-se biodiversidade; sobreviveram os resistentes e as aves migratórias que agora, neste início de Primavera, começam a espreitar. Muitas não ficam. A comida ainda lhes deve saber a cinza, e ainda não há coelhos nem cobras. Viola não desiste. Vai espalhando no carvalho centenário que lhe sobreviveu à porta, bem como na figueira e nas oliveiras que lhe restam, taças com cereais para chamar animais. No incêndio, de que Viola escapou na N236-1, “sobreviveu o ganso”. Qual mascote da resistência desta casa que, de janelas abertas naquele dia, viu o fogo poupá-la graças à teimosia do vento que levou as chamas para alguns metros mais à frente.

No meio da tragédia, que chegou com nome de downburst, João e Dina tiveram “sorte”. Foram poupados nos seus bens. Por isso, pegaram nas forças que tinham para ajudar outros, a quem as forças faltaram. “Decidimos que devíamos ajudar todos aqueles que perderam as suas coisas, devíamos lutar por isso. Era a nossa missão”, conta João. Fizeram parte da Associação de Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande (AVIPG), que abandonaram no início do ano, e agora ajudam amigos e vizinhos por conta própria.

“Estas árvores chegaram esta semana”, contava João em Março, quando preparava uma plantação com voluntários. Tem sido assim a vida por aquelas aldeias. De vez em quando chega um autocarro de voluntários de empresas que fazem acções de solidariedade. Mas falta muito. Falta tanto. Faltam muros por pintar, árvores por cortar, eucaliptos para arrancar pela raiz, árvores para plantar e crescer, casas por reconstruir – casas de segunda habitação e casebres que albergavam a lenha e os animais a que todos chamam “barracões”.

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Uma das placas de Nodeirinho pintadas por João Viola Adriano Miranda

Todos juntos, muitas dúvidas

Passa mais um mês. 17 de Maio de 2018. A paciência existe, mas fraqueja. A porta desta casa onde as flores, o incenso e as pinturas são reis está aberta, sem sequer precisar da chave na porta. À hora marcada entram a Fernanda, a Gina, o Paulo, a dona Cassilda, a Adelaide… São 18 ao todo em volta de uma mesa, onde os profiteroles contrastam com as palavras de desamparo. “Não vamos já pensar numa catástrofe”, diz Viola aos seus vizinhos do Nodeirinho, que lançam dúvidas para o debate.

Falta ainda cortar as árvores em torno da aldeia. A lei fala em 50 metros de limpeza, mas querem 100, não vá o diabo voltar a tecê-las. Mas como? Ainda há donos por identificar e decisões por tomar. A Associação Raiz Permanente oferece braços aos fins-de-semana, porque são todos voluntários. Dois fins-de-semana depois lá estariam, oferecendo a força braçal, a tratar de um terreno para o memorial que será inaugurado neste domingo, 17 de Junho, em homenagem às vítimas da aldeia.

No meio das dúvidas naquela reunião de habitantes do Nodeirinho na casa de João e Dina, há quem diga que vai cortar as oliveiras, se a lei assim o obriga. “Não!”, gritam de supetão. Nada disso. A legislação não manda cortar árvores de fruto. A campanha agressiva que foi lançada pelo Governo no início deste ano foi fazendo caminho, mas também por aqui foi sendo mal interpretada.

Os problemas repetem-se. “Eu tinha um barracão que ardeu [e para o reconstruírem pediam] que o meu marido se inscrevesse na Segurança Social – um homem com 88 anos ia colectar-se?”, questiona, encolhendo os ombros uma das habitantes da aldeia. Ao lado tem um casal que, já na reforma, tinha a sua casinha por ali, mas a residência oficial era em Grândola e continuam sem ter telhado naquela aldeia. Questionam o porquê de não haver ajuda para segundas habitações. Não há. E não se prevê que haja.

O assunto tem sido recorrente em conversas com o município e o presidente da câmara não tem respostas. “Esperamos que a Assembleia da República se pronuncie para ajudar a reconstrução das segundas habitações”, respondeu Valdemar Alves a um deputado municipal da oposição que o questionou na assembleia municipal, em Fevereiro, sobre o dinheiro que a câmara recebeu. A resposta, além do esperar pelo Parlamento, foi um talvez. Ou um deixar “escoar tudo aquilo que possa vir do Governo e de outras entidades”, porque, depois do “dar, dar, dar” do início, deixaram de chegar tantos donativos à câmara. Nessa altura, a câmara tinha 289 mil euros numa conta. “Este dinheiro está aqui. O executivo [da câmara] ainda não decidiu. Temos de ver em termos de lei, do regulamento do Revita, o que vamos fazer. Gostava muito que este dinheiro fosse para ajudar os barracões… mas todos”, defendeu o presidente da câmara.

A verdade é que o tempo foi passando e há ainda muitas respostas por dar.

Mais tarde, em Maio, soube-se que um dos bombeiros de Castanheira de Pêra que sobreviveram ao acidente na N-236-1, Rui Rosinha, recebia uma pensão de 267 euros. A notícia chega àquela casa para onde convergem muitos dos que têm perguntas ainda sem respostas. O telefone toca. Dina está a tentar arranjar forma de lhe construírem uma casa. Já tem quem a faça, mas não consegue desbloquear a cedência do terreno. Pouco depois sabe da situação de um ferido grave de Pedrógão e promete falar com um empresário para ver se consegue arranjar forma de se construir uma casa adaptada à nova situação de quem fica limitado na mobilidade e precisa de deslocações constantes para tratamentos. Já falou com o seu contacto no Ministério do Trabalho e Segurança Social, que procura responder caso a caso aos problemas fora da norma que vai recebendo.

Os feridos graves são aqueles com quem Dina se preocupa mais agora, porque estavam ausentes da terra quando Pedrógão Grande estava debaixo dos holofotes e por isso, acredita, não receberam tanto apoio quanto deveriam. “São os que sofreram mais. Sofreram na pele uma dor… e sofreram mais pela ausência, não estavam cá”, lamenta.

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João Viola ajuda vizinhos e vai espalhando no carvalho centenário que lhe sobreviveu à porta, bem como na figueira e nas oliveiras que lhe restam, taças com cereais para chamar animais Adriano Miranda

Aos poucos esta comunidade vai renascendo, não sem problemas, dificuldades, queixas, cobiças ou injustiças. Há conversas de quem se queixe de ter casas construídas à pressa em comparação com os “palácios” que foram edificados pela Gulbenkian, que, quase pelo mesmo preço por metro quadrado, fez casas adaptadas aos moradores, diferentes das que ficaram queimadas.

Mas naquela noite de Primavera, já com as estações do ano volvidas depois da tragédia, as maiores dúvidas estavam viradas para o futuro. O projecto Aldeias Seguras, anunciado pelo Governo, começa a dar os primeiros passos, mas ninguém sabe muito bem como vai ser por ali. “O problema é que estamos em Maio. O que fazer?”, questiona Adelaide, uma das habitantes da aldeia que dá aulas de formação para estrangeiros na AVIPG, uma das actividades que a associação desenvolveu ao longo do ano, assim como formações em agricultura biológica.

“Agora vimos um incêndio e se calhar não vamos reagir como reagíamos antigamente. Antes, ardia ali na ponta do cabeço e vinham os bombeiros ou esperávamos que viessem. Agora, estamos traumatizados”, diz João Viola. Os vizinhos concordam. Querem saber se, afinal, há novidades do programa lançado pelo Governo, inspirado num que foi desenhado pela AVIPG. “Temos de ter um sítio seguro e temos de ter tempo de salvar os nossos animais”, lança um dos habitantes. A interrupção soa de chofre: “Salvar as pessoas já é bom.” Naquela terra, salvarem-se as pessoas tinha sido muito bom.

E é isso que lhes continua no pensamento – o receio de um dia se voltarem a deparar com o mesmo cenário.

O manto negro e o jardim

Durante o último ano, João saiu de casa todos os dias e via aquele manto negro. Chegava a Pedrógão Grande e tinha de tratar do verde do jardim municipal de que cuida. O saltitar entre o desalento e a esperança pelas cores dava-lhe voltas à cabeça. “Chegou uma altura em que eu não conseguia ver o verde. Aquilo que era vida estava a perturbar-me um bocado”, conta.

João, que perdeu amigos e vizinhos, mas escapou fisicamente ileso, assume que tem tido dificuldades em lidar com a situação. Cultor de várias artes, homem de vários talentos, refugia-se nas pinturas que quer fazer de todas as pessoas da aldeia, nas sessões de xamanismo ou nos tratamentos com taças tibetanas, mas os sentimentos vão por lá ficando. Foi ele quem pintou a placa ardida com a indicação do nome da aldeia e quem espalhou olhos “vigilantes” pintados um pouco por toda a parte. Mas isso não foi suficiente para exprimir a revolta que tinha dentro de si.

“A dada altura a doutora Ana disse-me: ‘Você é artista, ponha a sua raiva numa pintura.’ E eu pintei a raiva.” A pintura em tons de laranja, verde, preto foi feita olhando-se ao espelho: “A minha feição de raiva é o que lá está.” Era o que lá estava, na verdade, quando Viola falou em Março. “Um dia a Dina disse-me: ‘Tira-me isso daqui que me está a deprimir.’” E a raiva do João acabou. Foi deitada fora, tapada, mudada, nas camadas de tinta verde que foi pintando por cima, o mesmo que espera ver acontecer agora àquela pequena aldeia de Nodeirinho, que perdeu 11 dos seus.

Este domingo terá um memorial erguido à beira da fonte de água onde se salvaram quase 20 pessoas naquela noite. Na base de duas pedras altas que simbolizam um Deus protector e os protegidos estará uma frase do livro do Apocalipse, que andou na cabeça de João no último ano. “Eis que faço novas todas as coisas.” Desde então, as gentes de Pedrógão têm feito todos os dias novas todas as coisas.

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