“É como se fosse uma cicatriz para o resto da vida”
Dois técnicos de emergência hospitalar, uma médica, uma psicóloga, um enfermeiro. Estavam ou foram chamados ao serviço pelo INEM para acorrerem a Pedrógão Grande no dia 17 de Junho. Um ano depois contam ao PÚBLICO o que viveram, o que sentiram e o que fizeram para ajudar quem precisava.
Saíram de Coimbra com a missão de ajudar, mas o fogo foi inimigo. Travou-lhes o caminho, obrigou-os a esperar, a procurar alternativas. Enfrentaram o medo, a frustração, a impotência de querer e não conseguir. Pedrógão Grande, 17 de Junho de 2017: 66 mortos, 253 feridos, 863 intervenções psicológicas, cerca de 500 casas e 50 empresas destruídas.
Carlos Diogo, Sara Rosado, Liliana Temudo, Nuno Marques e Paula Neto vestem azul e branco, as cores do INEM. Pedrógão faz parte deles, é mais uma aprendizagem de quem lida com a dor dos outros todos os dias. Tornou-os mais resilientes. “O ideal passou a ser o possível e o que existia foi o que foi feito”, diz Sara Rosado, psicóloga do INEM. “É isso que nos dá tranquilidade, saber que, no meio daquela destruição que não conseguíamos evitar, fizemos o possível.”
Carlos é técnico de emergência pré-hospitalar (TEPH), com funções de coordenação. Não estava a trabalhar, foi chamado a meio da tarde para um incêndio de grandes proporções na zona de Pedrógão Grande. Ia para o posto de comando montado em Escalos Fundeiros. Ligou ao colega Pedro Santos e foram os primeiros a ir para o local.
Deixaram o Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) de Coimbra com a indicação de uma bombeira ferida. Pelo caminho ouviram a comunicação de mais três feridos, vítimas de um acidente de carro apanhadas pelo fogo. O trajecto que em marcha de emergência leva 25 minutos precisou de 50 ou mais.
Caminhos tortuosos
“Quando chegámos ao primeiro cruzamento de Castanheira de Pêra, na Nacional 236-1, já não nos deixaram cortar.” Seguiram pelo IC8, mas ao nó da Graça, antes de Pedrógão, já a polícia cortara a estrada. Eles podiam passar, por serem carro de emergência. “As chamas estavam muito altas, decidimos sair e voltamos em direcção a Castanheira por uma estrada paralela à 236.”
Carlos não tem a certeza, mas pensa que algumas das pessoas que morreram na estrada poderão ser as mesmas que os ajudaram a encontrar o caminho. Lembra-se da cinza fina a cair, das golpadas de calor. “Tenho a perfeita noção que escapámos por um triz”, que atrás deles tudo se fechou numa cortina de fogo.
Escalos Fundeiros está cercada e Carlos e Pedro seguem para a zona industrial de Pedrógão, para onde foi o posto de comando. Não se recorda de mais horas, a não ser que chegou perto das 19h00. Pedro fica no posto de comando, Carlos começa a articular com todas as entidades que estão no terreno. Pede reforços: “Ambulâncias, médicos e montar um posto médico que de certeza ia ser preciso.” O posto, que ficou no Centro de Saúde de Pedrógão, recebeu muitos feridos durante a noite e madrugada.
Da tarde se fez noite, da noite se fez madrugada, da madrugada se fez dia. Não há uma linha do tempo. Lembra-se do menino de quatro anos, queimado, que chega transportado pelo carro conduzido pelo comandante distrital da Protecção Civil da zona Centro. “A criança vem para os meus braços, basicamente… Tínhamos lá a equipa do helicóptero que tinha sido chamada para os feridos do acidente. Não conseguiu ir para Figueiró dos Vinhos, contornou o incêndio e aterrou junto a nós.”
Estabilizaram e entubaram o menino, que foi transportado para o hospital. Está vivo. Foi a primeira vez que Carlos prestou assistência a uma criança queimada. É esta a primeira imagem que tem quando recorda Pedrógão. A voz treme. Perguntou por ele nos dias seguintes, como perguntou pelo bombeiro Rui Rosinha, de quem é amigo. Sabia que era grave.
Chegam informações de “aldeias cercadas, feridos, casas que arderam com gente lá dentro”. O ambiente pesa no posto de comando perante um “sentimento de impotência de não chegarmos a essas pessoas”. Os meios estão a caminho, mas o fogo complica a chegada. Dizem que vão demorar mais um pouco “porque a estrada está cortada e vão ter de dar a volta por outro lado”. “Vamos com uma missão, só mesmo se não der é que não avançamos mais. É um sentimento de derrota.” Quem vem de Castelo Branco e Abrantes, chega primeiro. Os outros chegarão à medida que o fogo deixar.
Luta desigual
Liliana Temudo esteve lá sem estar. No CODU sente a mesma angústia. “É um dia impossível de esquecer. Sempre que falo no assunto, o meu coração bate mais rápido… É como se fosse uma cicatriz para o resto da vida.” Destaca a solidariedade entre colegas num turno “em que não tínhamos tempo para chorar, desistir, para pensar”. “Queríamos fazer tudo para a ajuda chegar, mas não dependia de nós. Houve falhas de comunicação, dificuldade nos acessos para chegar às vítimas… Foi uma luta desigual.”
Os colegas estavam a receber as chamadas, Liliana fazia o accionamento de meios. Os encaminhamentos para o CODU, via 112 (central da PSP), eram muitos, nem todos a falar de feridos. Do lado de lá da linha havia gritos, choro, relatos de um vento que as fazia levantar os pés do chão. Alguém que dizia que tinha a casa rodeada de fogo e não conseguia sair ou que pedia ajuda porque tinha o pé a arder e não sabia o que fazer. Do CODU explicavam que estavam a tentar enviar ajuda, ao mesmo tempo que ensinavam o que podiam fazer. Toalhas molhadas junto à porta para travar o fumo, arrefecer a queimadura com água do autoclismo, a única que sobrara.
“Era o desespero de não saberem o que fazer, de se sentirem abandonadas. E havia o desespero que quem tinha a noção do todo, que as pessoas estavam ali e não havia como fazer chegar os meios”, diz Sara Rosado. “Sempre que fazíamos um accionamento para o local, lembrávamos: condições de segurança primeiro. Tivemos situações em que os meios nos diziam: ‘Estamos a ouvir pessoas a pedir ajuda, está aqui o fogo, mas vamos tentar passar’”. Mas não era possível.
Porto de abrigo
A psicóloga Sara Rosado deixou Coimbra, ainda era dia, na unidade móvel de intervenção psicológica de emergência em direcção a Castanheira de Pêra. O IC8 está cortado e o caminho para Pedrógão também já não é viável. Só depois do fogo passar a estrada consegue seguir para Pedrógão. Recorda-se da terra preta, do metal escorrido de uma jante derretida de um carro.
Foi com a missão de “criar um espaço que servisse de abrigo, onde as pessoas sentissem segurança e pudessem satisfazer as necessidades básicas como ter informações dos familiares e em que ponto estava o fogo”, um espaço “onde pudessem ventilar as suas emoções”. Ouviu relatos de quem perdeu família ao seu lado, a casa, os animais, que não sabia o que ia encontrar na manhã seguinte, quando fosse possível regressar.
E a manhã seguinte foi mais negra que a noite e o regresso às aldeias tão difícil como a saída. Foi preciso reforçar as equipas com psicólogos da Cruz Vermelha, PSP, Polícia Marítima, Exército, Segurança Social e de algumas autarquias. Era preciso trabalhar a integração da perda, ajudar a exteriorizar a dor.
Sara foca-se na reconstrução, na resistência de uma comunidade que foi destruída. Recorda um movimento de superação que começou durante aqueles dias, de quem era vítima mas estava a ajudar outros que precisavam. Lembra-se de uma mulher que levou pães e três litros de leite. “Não tinha mais nada em casa, mas trouxe isto para vocês...”, disse-lhes.
A noite era silêncio e escuridão
Também Paula Neto diz que quem lá esteve desde o primeiro momento sentiu mais o espírito de solidariedade do que a crítica. A médica e o enfermeiro Nuno Marques estavam na viatura médica de emergência (VMER). Foram activados como meio de excepção, reforço suplementar accionado em ocorrências de grande escala. As gentes da terra agradeceram-lhes por estarem ali, preocupados com a noite e madrugada que também eles tinham tido. Contaram-lhes que todos os anos há fogo na zona. Mas nunca um como aquele, que varreu tudo e entrou dentro de casas. Falam de um barulho como se a terra se estivesse a abrir.
Estavam em Castanheira de Pêra. A partir do momento em que lá chegaram, conseguiram assistir a todas as ocorrências para que foram chamados. Duas dezenas ou mais, fora o apoio no centro de saúde. “Era um pouco de tudo: queimados, trauma, descompensações agudas por causa do fumo, cansaço, stress”, conta Paula.
Difícil foi lá chegar. Muitos ajustes no caminho, visibilidade quase nula. Subiram e desceram a serra da Lousã. “Sentimo-nos angustiados por não chegar lá. Não dependia de nós”, refere Nuno, que ia a conduzir. Havia muitos carros na serra e foram surpreendidos por um quase em contramão. Algures pelo tempo cruzaram-se com outra equipa de Coimbra. Havia vítimas a serem transportadas.
Tiveram medo. “Estávamos sempre a ver onde estava a linha de fogo. Só a víamos quase em cima. À saída de uma curva, demos com o fogo e tivemos de fazer inversão de marcha. Onde é que ele está? Não tínhamos controlo da situação”, conta Nuno. As placas estavam todas queimadas, mas o que marca é o escuro e o silêncio à medida que passam pelas aldeias. “Lembro-me de só ver o branco de uma igreja e o fogo. Não se ouvia nada, nenhum cão a ladrar, um galo a cantar, um pássaro.”
Viram a morte. Passaram por ela “a caminho de outra situação em que se espera fazer alguma coisa”. “Estamos formatados para socorrer as pessoas. Não ficamos agarrados ao que vamos vendo, mas ao que podemos fazer”, afirma Paula. O dia a seguir amanhece negro e tarde. Todos eles regressam a casa na madrugada de dia 19. Receberam apoio, encontraram conforto na família e nos amigos.
Liliana diz que ainda está a fazer a sua caminhada. “Dois dias depois do dia 17 houve alguém que me chamou ao gabinete. Foi a grande Sara [Rosado]. Não vou esquecer os gritos, os pedidos de ajuda, o estar fechada numa sala a tentar encontrar estratégias e saber que estradas estavam a circular. Não vou esquecer o olhar da pessoa que estava ao meu lado. A angústia, o medo, a impotência. Apoiámo-nos muito no CODU. Naquela madrugada fui para casa cheirar os meus filhos, para chorar. Não fui capaz”, conta. Mas naquela sala, dois dias depois, com Sara e a outra colega, choraram as três.
Estão todos a trabalhar neste domingo, dia 17, à excepção de Sara, que sai de serviço às 8h00 da manhã e de Carlos, que colocou uma folga para não trabalhar domingo. Vai passar em Pedrógão e, se tiver oportunidade, estará com o bombeiro Rui Rosinha. Durante o último ano passou várias vezes no IC8, a estrada principal de onde sai o desvio para Pedrógão Grande. Nunca mais fez esse desvio. Este domingo será a primeira vez.