As descobertas de Oluale Kossola
Muito tempo depois, uma mulher tocou à porta da casa que Cudjo Lewis construíra. Ouvira falar dele e queria registar a sua história. Ele contou-a desde o início.
Ordenaram-lhe que se despisse. Disseram-lhe que lá para onde ia — lá para onde o levavam e que ele, se nem sabia de que porto partia, menos sabia a que terra haveria de chegar — havia muita roupa adequada à sua nova vida. Assim chegou, nu, depois da viagem terrível, porque a sede e a fome eram muitas, depois da viagem assustadora, porque toda aquela água, água a toda a volta, um oceano, portanto, era coisa que nunca vira, poderoso ao ponto de rodear o barco e de o manipular até não se perceber onde era o céu e onde era o mar.
Longuíssimos dias viajou com os amigos, os que vinham de antes e os que passaram a sê-lo por partilharem a mesma língua e o mesmo espaço exíguo. Não lhe deram a roupa prometida quando desembarcou. Nunca se sentira tão envergonhado, tão humilhado. Nu desceu do barco para ver dedos apontados e vozes erguerem-se com espanto e escárnio — “selvagem”, chamaram-lhe.
Tudo podia ter sido diferente. Teria sido diferente se ele tivesse ficado em terra em vez de chamar os seus segundos captores, que quase se esqueciam dele no meio da fuga apressada aos que primeiro o capturaram — mas os seus amigos estavam a ser levados e ele estava em terra desconhecida, sozinho e assustado. Teria sido diferente se a sua cidade não tivesse sido atacada à traição enquanto todos dormiam, triste madrugada aquela em que viu cabeças decepadas, corpos cortados com catanas ou crivados de balas, em que se viu e viu os seus agrilhoados e o seu rei decapitado por recusar a submissão. Mas não foi diferente. Foi como havia sido com tantos e tantas ao longo de tantos, demasiados, anos.
Obrigaram-no então a descer e ouviu rostos diferentes exclamarem numa língua estranha: “Selvagens!” Viu como aqueles que lhe chamavam selvagem eram eles mesmos selvagens destituídos de honra, fazendo estalar chicotes nas costas de todos, e os homens aguentavam, mas não aguentaram quando o chicote tocou a pele de uma das mulheres. Lembra-se de explodirem nesse momento, de imobilizarem o selvagem, de lhe roubarem o chicote, de estalarem o chicote nas suas costas. Lembra-se dessa pequena vitória.
Cudjo Lewis, foi esse o nome que ganhou naquela terra. Nela trabalhou de sol a sol durante vários anos, alombando com as mercadorias que os barcos levavam pelos rios por toda a extensão daquele território desconhecido. Trabalhou enquanto chegavam aos seus ouvidos histórias de uma guerra feroz, uma guerra que, dizia-se, um dos lados combatia para libertá-lo a ele e a todos os que haviam sofrido o mesmo destino.
Muito tempo depois, uma mulher tocou à porta da casa que Cudjo Lewis construíra. Ouvira falar dele e queria registar a sua história. Ele contou-a desde o início. As correrias e as escaladas às palmeiras, as preparações para se tornar soldado, a guerra traiçoeira em que não teve tempo para ser soldado, apenas cativo. As barracas em que mantiveram os prisioneiros até chegarem estrangeiros que os viram, um a um, escolhendo quem levariam para longe, sobre o mar. Contou-lhe da viagem e da sede insuportável que sentiu, do trabalho de sol a sol, dos soldados que acenaram do outro lado do rio, anunciando-lhes que eram livres. Contou como ele e os seus planearam trabalhar para pagar uma viagem de barco de volta a casa, como perceberam que nunca conseguiriam reunir dinheiro suficiente para o fazer. Como decidiram, então, fazer daquele pedaço de terra estranha o seu lar.
Escolheram como líder um dos nobres da nação que atacara a cidade de Cudjo, ele próprio tornado cativo. Quando o homem que os obrigara a trabalhar gratuitamente durante anos se recusou a ceder-lhes um terreno para se instalarem, trabalharam até reunirem dinheiro para o comprarem. Nesse terreno construíram casas, construíram uma escola e uma igreja. Chamaram a uma dessas casas “Casa Grande” — deixaram-na vazia: seria para qualquer família que passasse por dificuldades e precisasse de um tecto.
A escritora ouviu e registou tudo. Ouviu Cudjo Lewis falar da mulher que viera parar àquela terra da mesma forma que ele, e dos seis filhos que ali tiveram. Ouviu Cudjo Lewis dizer-lhe o nome com que nascera, Oluale Kossola, na esperança de que o seu relato chegasse a casa e alguém lá se lembrasse dele ainda. Ouviu Oluale confessar-lhe que desejava morrer a sonhar com a mãe que nunca mais vira desde o dia em que foi acordado pelo ataque da nação vizinha, manchada na honra e manchada de sangue, mas enriquecida pela venda dos seres humanos que capturava a outros humanos que os levavam mar fora.
Conta-se que Timothy Meaher, de Mobile, Alabama, tinha decidido comprar escravos por causa de uma aposta, pondo assim em marcha toda a engrenagem que alcançou a costa africana a milhares de quilómetros de distância. Apostou que conseguiria contornar a proibição de tráfico humano inscrita em lei e trazer uns quantos seres humanos de África para escravizar nos Estados Unidos. Meaher ganhou a aposta. Já Oluale Kossola, nascido no que é hoje o Benim, ganhou as suas descobertas.
Quando Zora Neale Hurston o entrevistou para criar Barracoon, obra cuja edição foi recusada no seu tempo e que surge agora, por fim, cinco décadas após a morte da sua autora, estávamos em 1930. Em 1930 nascia a minha avó. O meu avô era uma criança de cinco anos. A vida de Oluale Kossola, o último sobrevivente do último barco negreiro, não foi há muito tempo. Foi ontem. Corrijo: é hoje.