Uma total falta de estratégia
Nada conseguiu ser mais perturbador para a estabilidade mundial do que a mais recente decisão do Presidente americano, tomada sem pré-aviso.
1. Angela Merkel está em Pequim para debater a forma de manter vivo o acordo nuclear com o Irão, mas também para avaliar o impacto da nova política comercial americana, que ameaça a Europa e a China com novas tarifas sobre as suas importações. Os dois países têm os maiores excedentes comerciais do mundo. Trump jurou reduzi-los. Ambos subscreveram o acordo nuclear com o Irão, em 2015. Foi este igualmente um dos temas centrais da visita de Emmanuel Macron a Moscovo. O Presidente francês está a tentar dar à França e, por essa via, à Europa um peso internacional que não tem tido ultimamente. O dia não foi propício ao relacionamento da Europa com a Rússia que, desde a crise ucraniana, ficou reduzido a próximo de zero. As investigações holandesas provaram que era russo o míssil que derrubou um avião comercial saído de Amesterdão, com mais de 200 passageiros a bordo, quando sobrevoava a Ucrânia.
2. Mesmo assim, nada conseguiu ser mais perturbador para a estabilidade mundial do que a mais recente decisão do Presidente americano, tomada sem pré-aviso, de suspender a cimeira com o seu homólogo da Coreia do Norte prevista para 12 de Junho. Não foi uma total surpresa. O ambiente tinha vindo a deteriorar-se na última semana com uma escalada de acusações mútuas, que começaram por ser vistas como “normais” à medida que as duas partes se preparavam para negociar. A mais recente foi a reacção de Pyongyang às palavras de John Bolton, primeiro, e de Mike Pence, depois, que compararam a sorte de Kim à sorte de Khadafi, mesmo que, alegadamente, tenham sido mal-interpretadas. A reacção foi imediata: a Coreia do Norte pode provocar aos EUA “uma tremenda tragédia”, disse a vice-ministra dos Negócios Estrangeiros de Pyongyang, sugerindo que os dois países podiam “envolver-se num confronto nuclear”. A resposta chegou ontem. Na terça-feira passada, o Presidente americano tinha acusado a China de estar a tentar sabotar a cimeira com Kim, alegando que as coisas se tinham complicado deste o último encontro entre os Presidentes chinês e norte-coreano, no início do mês. O papel da China teria de ser necessariamente relevante, mas não tanto como Pequim desejaria, de acordo com alguns analistas.
3. Houve, desde o início, um mal-entendido. Trump sempre falou na destruição total do arsenal nuclear norte-coreano, exigência que a maioria dos analistas entendia que Kim não poderia aceitar. Kim manteve a ambiguidade. Não havia até ontem, segundo o New York Times, uma estratégia bem delineada da parte americana para a cimeira, o que também incomodava os principais aliados americanos na Ásia Oriental. Na quarta-feira, o líder sul-coreano, um dos principais artífices da negociação directa, esteve na Casa Branca para tentar garantir que os EUA não vão retirar as suas tropas da Coreia do Sul, deixando-a sozinha perante um parceiro pouco fiável. Teme que essa seja uma das moedas de troca pedidas por Kim, que poderia ir de encontro à vontade de Trump. Convém não esquecer que o Presidente americano sempre defendeu que a América não queria continuar a garantir a segurança dos aliados, na Europa ou na Ásia, pagando um custo financeiro e militar muito elevado, aconselhando-os a fazer mais por si próprios.
Ou seja, na contagem decrescente para a cimeira, a falta de estratégia americana começava a ser demasiado evidente. “Trump acreditou que iria conseguir a desnuclearização completa e agora percebeu que não”, disse ao mesmo jornal Michael J. Green, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais de Washington, ainda sem o anúncio do cancelamento da cimeira. “Estão agora a tentar encontrar uma forma credível para reclamar que a cimeira conduzirá à desnuclearização”, mesmo que não imediatamente. Foi, porventura, este o dilema com que os negociadores americanos se viram confrontados.
4. John Bolton, o mais recente Conselheiro de Segurança Nacional do Presidente americano, terá tido influência na decisão. O seu papel, desde a Administração Bush, foi quase sempre “incendiar” as tensões internacionais, a partir de uma política com um só argumento: o poderio militar e económico da América, que ninguém está em condições de desafiar. Trump não pensa muito diferente. Gideon Rachman citava recentemente na sua coluna do Financial Times uma frase de Bolton, que data do início do primeiro mandato de Bush, e que define o seu pensamento: “Se estivéssemos a refazer o Conselho de Segurança, eu defenderia um único membro permanente, porque é esta a tradução real da distribuição do poder no mundo”. No mesmo texto, Rachman classifica a política externa do actual Presidente de “unilateralismo agressivo”, com uma característica particular: pela primeira vez desde a II Guerra, os EUA dispensam qualquer aliado. O Irão é a mais recente prova disso. Também ontem, o departamento de Estado anunciou uma escalada de sanções contra Teerão para forçar o regime a cumprir os compromissos nucleares (os do acordo e mais outros tantos), independentemente do que foi negociado em 2015 com os europeus, a China e a Rússia. O que se vai seguir? Com Trump, a incerteza ainda é a única certeza.