Referendo ao aborto é um teste ao impulso de liberalização irlandês

Sociedade de forte tradição católica tem suavizado aos poucos a sua imagem com a adopção de políticas liberais, mas a Irlanda ainda tem uma das legislações mais restritivas da Europa no que toca ao aborto. Despenalização está nas mãos dos indecisos.

Mary Lou McDonald, Michelle O'Neill, Gerry Adams, Pearse Doherty, Irlanda, aborto
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Gerry Adams e o Sinn Féin apoiam a despenalização do aborto CLODAGH KILCOYNE / Reuters
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Irlanda mantém praticamente a mesma legislação de há 35 anos AIDAN CRAWLEY / EPA
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Manifestações contra e a favor da legalização do aborto têm sido visíveis nas ruas de Dublin CLODAGH KILCOYNE / Reuters
Irlanda, lei do aborto, oitava emenda da Constituição da Irlanda, aborto
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Mural pró-aborto em Dun Laoghaire CLODAGH KILCOYNE / Reuters
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Manifestante pró-vida interrompe acção de campanha pró-aborto CLODAGH KILCOYNE / Reuters

“O Estado reconhece o direito à vida do nascituro e, com igual salvaguarda do direito à vida da progenitora, garante através da suas leis respeitar e, na medida do possível, defender e pugnar por esse direito” – é a frase central do debate sobre o aborto, consagrada há mais de trinta anos como a 8.ª emenda à Constituição da República da Irlanda. Riscá-la ou mantê-la é o que se pede aos mais de três milhões de eleitores que esta sexta-feira vão às urnas para participar num referendo que é muito mais do que um simples voto sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez: é uma prova à determinação do percurso liberal que a Irlanda tem vindo a trilhar.

Num país onde a tradição católica ainda tem uma influência muito significativa no dia-a-dia da população e cuja dimensão conservadora encontra paralelo na grande maioria dos partidos políticos e organizações civis, não é de estranhar que exista uma discrepância considerável em relação à maioria das democracias ocidentais, no que à liberalização dos costumes diz respeito. 

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Mas o surgimento e a consolidação de grupos defensores e promotores de direitos civis e de movimentos feministas, nos últimos anos, tem causado impacto e aproximado a Irlanda dos parceiros europeus. A aprovação em referendo do casamento entre pessoas do mesmo sexo, em 2015, é o resultado desse caminho e assume-se como o principal marco da chamada vaga progressista que está a crescer cada vez mais no país. 

O debate sobre o aborto na Irlanda consubstancia, no entanto, um cenário mais complexo que o comum, mesmo em comparação com outros países ocidentais de matriz católica. É que à luz da interpretação assumida pela doutrina irlandesa, da qual resulta que a mãe e o feto têm o mesmo direito à vida, a 8.ª emenda é, na prática, uma proibição praticamente total e inflexível do aborto e um obstáculo a uma futura regulação.

Casos dramáticos

Durante longos anos o debate manteve-se congelado e todas as reformas – ou tentativas de reformas – e apenas avançaram na sequência de casos dramáticos, que obrigaram os actores políticos a reagir. Nomeadamente o “Caso X” (1992), que envolveu uma decisão judicial sobre uma rapariga de 14 anos que engravidou depois de violada e que desenvolveu comportamentos suicidas, e o caso de Savita Halappanavar (2012), grávida de um feto não viável que o corpo começou a rejeitar às 17 semanas, mas que acabou por morrer no hospital ao ser-lhe ser negada um aborto. "Este é um país católico", disseram-lhe os médicos do hospital de Galway

Ainda que a legislação tenha sido suavizada por meio de referendos, emendas e reformas – como o levantamento da proibição de viagem para mulheres que querem abortar no estrangeiro (1992) ou a aprovação de excepções quando esteja em causa o risco de vida para a mãe (2013) –, a Irlanda continua a figurar no topo da lista dos países que possuem as leis mais restritivas da União Europeia no que toca ao aborto, acompanhada por Polónia, Malta e Chipre. De acordo com o Governo de Dublin, entre três a quartro mil mulheres irlandesas deslocam-se por ano ao Reino Unido para abortar.

O que o Executivo irlandês vem agora prometer é que em caso de vitória do “Sim” no referendo, a 8.ª emenda será substituída por outra frase: “Diligências para a regulação da interrupção voluntária da gravidez poderão ser feitas por lei”. Em paralelo, o Governo liderado por Leo Varadkar propõe apresentar legislação que permita o aborto até às 12 semanas de gravidez e em caso de violação, incesto ou malformações fatais do feto.

Os partidos Fine Gael (democrata-cristão) e Fianna Fáil (conservador) não tomaram uma posição oficial sobre o referendo e deram liberdade aos seus membros para fazerem campanha por qualquer um dos lados – o próprio Varadkar, do Fine Gael, dá a cara pelo “Sim”, dizendo que um chumbo da despenalização “enviará uma mensagem errada não apenas às mulheres mas a toda a sociedade”. Já o Sinn Féin (republicano) e o Partido Trabalhista (socialista) apoiam a legalização do aborto.

Um dos sinais de que os tempos podem estar a mudar na Irlanda é apontado pela Spectator, que destaca o “debate totalmente secular” da campanha e a “ausência da Igreja Católica da luta”. À revista britânica, o padre Patrick Claffey, de Dublin, diz que a posição da igreja é “deixar os leigos falar” e colher os frutos do seu “conhecimento” sobre os perigos da liberalização do aborto.  

Fenómeno “Brexit” assusta

Nas primeiras semanas que se seguiram à confirmação da data do referendo todas as sondagens davam ao “Sim” à legalização uma vantagem confortável sobre o “Não”. Mas essa diferença tem vindo a esvanecer-se. Um estudo recente divulgado pelo jornal Irish Times mostra que as intenções de voto favoráveis à despenalização do aborto rondam os 44%, enquanto a rejeição aponta para os 32%. Uma diferença que pode muito bem ser mitigada com os restantes 24% de indecisos ou não-declarados – um em cada 4 eleitores. 

O Guardian olha para Irlanda rural e alerta para a possibilidade de um desfecho semelhante à consulta do “Brexit". Até porque a defesa do “Sim”, sustentada por grande parte da imprensa e da classe política irlandesa, pode dar a errada sensação de que a legalização da interrupção voluntária da gravidez está garantida. 

John Waters, ex-jornalista e um dos rostos da campanha pró-vida, põe grandes esperanças na “maioria silenciosa” irlandesa e acredita que esta pode derrotar o “falso progressismo”. “Supostamente somos os retardados, mas na verdade estamos à frente do nosso tempo. Se mantivermos as nossas convicções e conseguirmos abafar o falso progressismo que nos assalta, um dia seremos reivindicados pela história e pelas ciências médicas”, disse, citado pela Spectator.

Milhares de emigrantes – principalmente jovens – que defendem a despenalização do aborto têm viajado nos últimos dias para a Irlanda, sob o mote #HomeToVote (Ir a casa para votar), para participar numa consulta histórica, que acreditam poder vir a confirmar que o caminho da liberalização dos costumes dos últimos anos é uma tendência e não uma casualidade. Pouco depois das 22 horas desta sexta-feira, quando encerrarem as urnas, terão a sua resposta.

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