Referendo ao aborto é um teste ao impulso de liberalização irlandês
Sociedade de forte tradição católica tem suavizado aos poucos a sua imagem com a adopção de políticas liberais, mas a Irlanda ainda tem uma das legislações mais restritivas da Europa no que toca ao aborto. Despenalização está nas mãos dos indecisos.
“O Estado reconhece o direito à vida do nascituro e, com igual salvaguarda do direito à vida da progenitora, garante através da suas leis respeitar e, na medida do possível, defender e pugnar por esse direito” – é a frase central do debate sobre o aborto, consagrada há mais de trinta anos como a 8.ª emenda à Constituição da República da Irlanda. Riscá-la ou mantê-la é o que se pede aos mais de três milhões de eleitores que esta sexta-feira vão às urnas para participar num referendo que é muito mais do que um simples voto sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez: é uma prova à determinação do percurso liberal que a Irlanda tem vindo a trilhar.
Num país onde a tradição católica ainda tem uma influência muito significativa no dia-a-dia da população e cuja dimensão conservadora encontra paralelo na grande maioria dos partidos políticos e organizações civis, não é de estranhar que exista uma discrepância considerável em relação à maioria das democracias ocidentais, no que à liberalização dos costumes diz respeito.
Mas o surgimento e a consolidação de grupos defensores e promotores de direitos civis e de movimentos feministas, nos últimos anos, tem causado impacto e aproximado a Irlanda dos parceiros europeus. A aprovação em referendo do casamento entre pessoas do mesmo sexo, em 2015, é o resultado desse caminho e assume-se como o principal marco da chamada vaga progressista que está a crescer cada vez mais no país.
O debate sobre o aborto na Irlanda consubstancia, no entanto, um cenário mais complexo que o comum, mesmo em comparação com outros países ocidentais de matriz católica. É que à luz da interpretação assumida pela doutrina irlandesa, da qual resulta que a mãe e o feto têm o mesmo direito à vida, a 8.ª emenda é, na prática, uma proibição praticamente total e inflexível do aborto e um obstáculo a uma futura regulação.
Casos dramáticos
Durante longos anos o debate manteve-se congelado e todas as reformas – ou tentativas de reformas – e apenas avançaram na sequência de casos dramáticos, que obrigaram os actores políticos a reagir. Nomeadamente o “Caso X” (1992), que envolveu uma decisão judicial sobre uma rapariga de 14 anos que engravidou depois de violada e que desenvolveu comportamentos suicidas, e o caso de Savita Halappanavar (2012), grávida de um feto não viável que o corpo começou a rejeitar às 17 semanas, mas que acabou por morrer no hospital ao ser-lhe ser negada um aborto. "Este é um país católico", disseram-lhe os médicos do hospital de Galway.
Ainda que a legislação tenha sido suavizada por meio de referendos, emendas e reformas – como o levantamento da proibição de viagem para mulheres que querem abortar no estrangeiro (1992) ou a aprovação de excepções quando esteja em causa o risco de vida para a mãe (2013) –, a Irlanda continua a figurar no topo da lista dos países que possuem as leis mais restritivas da União Europeia no que toca ao aborto, acompanhada por Polónia, Malta e Chipre. De acordo com o Governo de Dublin, entre três a quartro mil mulheres irlandesas deslocam-se por ano ao Reino Unido para abortar.
O que o Executivo irlandês vem agora prometer é que em caso de vitória do “Sim” no referendo, a 8.ª emenda será substituída por outra frase: “Diligências para a regulação da interrupção voluntária da gravidez poderão ser feitas por lei”. Em paralelo, o Governo liderado por Leo Varadkar propõe apresentar legislação que permita o aborto até às 12 semanas de gravidez e em caso de violação, incesto ou malformações fatais do feto.
Os partidos Fine Gael (democrata-cristão) e Fianna Fáil (conservador) não tomaram uma posição oficial sobre o referendo e deram liberdade aos seus membros para fazerem campanha por qualquer um dos lados – o próprio Varadkar, do Fine Gael, dá a cara pelo “Sim”, dizendo que um chumbo da despenalização “enviará uma mensagem errada não apenas às mulheres mas a toda a sociedade”. Já o Sinn Féin (republicano) e o Partido Trabalhista (socialista) apoiam a legalização do aborto.
Um dos sinais de que os tempos podem estar a mudar na Irlanda é apontado pela Spectator, que destaca o “debate totalmente secular” da campanha e a “ausência da Igreja Católica da luta”. À revista britânica, o padre Patrick Claffey, de Dublin, diz que a posição da igreja é “deixar os leigos falar” e colher os frutos do seu “conhecimento” sobre os perigos da liberalização do aborto.
Fenómeno “Brexit” assusta
Nas primeiras semanas que se seguiram à confirmação da data do referendo todas as sondagens davam ao “Sim” à legalização uma vantagem confortável sobre o “Não”. Mas essa diferença tem vindo a esvanecer-se. Um estudo recente divulgado pelo jornal Irish Times mostra que as intenções de voto favoráveis à despenalização do aborto rondam os 44%, enquanto a rejeição aponta para os 32%. Uma diferença que pode muito bem ser mitigada com os restantes 24% de indecisos ou não-declarados – um em cada 4 eleitores.
O Guardian olha para Irlanda rural e alerta para a possibilidade de um desfecho semelhante à consulta do “Brexit". Até porque a defesa do “Sim”, sustentada por grande parte da imprensa e da classe política irlandesa, pode dar a errada sensação de que a legalização da interrupção voluntária da gravidez está garantida.
John Waters, ex-jornalista e um dos rostos da campanha pró-vida, põe grandes esperanças na “maioria silenciosa” irlandesa e acredita que esta pode derrotar o “falso progressismo”. “Supostamente somos os retardados, mas na verdade estamos à frente do nosso tempo. Se mantivermos as nossas convicções e conseguirmos abafar o falso progressismo que nos assalta, um dia seremos reivindicados pela história e pelas ciências médicas”, disse, citado pela Spectator.
Milhares de emigrantes – principalmente jovens – que defendem a despenalização do aborto têm viajado nos últimos dias para a Irlanda, sob o mote #HomeToVote (Ir a casa para votar), para participar numa consulta histórica, que acreditam poder vir a confirmar que o caminho da liberalização dos costumes dos últimos anos é uma tendência e não uma casualidade. Pouco depois das 22 horas desta sexta-feira, quando encerrarem as urnas, terão a sua resposta.