Que diversidade existe na Assembleia da República?
Há quem diga que os partidos estão fechados à diferença. Há quem diga que os grupos minoritários não fazem lobby. Será só por isso que no Parlamento predominam homens, brancos, hetero, altamente escolarizados? Hoje é Dia Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e para o Desenvolvimento
Logo no início desta legislatura, anunciaram-se 151 homens e 79 mulheres, de várias partes do país, entre os 22 e os 70 anos, um dos quais com mobilidade reduzida, que caiu na primeira vez que se deslocou da bancada para o púlpito. Aí se esgota a diversidade da Assembleia da República Portuguesa? Quase, reparámos neste que é o Dia Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e para o Desenvolvimento. Só há um deputado negro, uma deputada com ascendência goesa, uma deputada com antepassados ciganos, um deputado abertamente gay e, agora, uma deputada abertamente lésbica.
O sociólogo João Mineiro, que mergulhou no dia-a-dia do Parlamento para investigar o seu funcionamento, sente tensão entre quatro filiações: “os deputados representam a sociedade no seu conjunto; o distrito pelo qual foram eleitos; o seu partido, que tem um programa; e a sua consciência individual”. Não sente tensões relacionadas com género, etnia, nacionalidade, orientação sexual, diversidade funcional. E isso parece-lhe revelador do predomínio de homens, brancos, hetero, altamente escolarizados.
“A representação política demonstra, de alguma forma, que apenas as elites acedem à representação parlamentar”, comenta. De acordo com o projecto “Crise, Representação Política e Renovação da Democracia: caso português no contexto do sul da Europa (2016/2019)”, coordenado pelo politólogo André Freire, só 7% dos deputados têm entre o 9.º e o 12.º ano. Todos os outros têm pelo menos uma licenciatura. Quase metade está a fazer ou já fez mestrado ou doutoramento. Imperam os juristas (26%), seguidos pelos professores (17%), os economistas (13%), os engenheiros (8%) e os médicos (2%).
O que poderá explicar isto? O mundo parlamentar é “altamente tecnicizado”. Os partidos têm “critérios fechados”. E há “desigualdades anteriores à formação das listas e da assembleia”. “Pessoas que tiveram a oportunidade de ter um percurso de vida marcado por alta escolaridade, acesso a profissões qualificadas ou militâncias dos partidos têm mais facilidade”, sublinha. As que têm de trabalhar e de estudar, por sua vez, dispõem de menos tempo para a militância partidária, para ganhar espaço.
A socióloga Isabel Estrada Carvalhais – que com Catarina Reis de Oliveira fez um estudo sobre diversidade étnica e cultural na democracia portuguesa – também considera que “a vida partidária não é muito compatível com a vida de muitos cidadãos”. “Pensemos nas dificuldades que milhares de mulheres têm em conciliar as suas profissões com a vida familiar; pensemos que nem todas podem contar com a presença de redes de apoio, seja por ausência das famílias, seja por falta de rendimentos para contratação de serviços de apoio”, exemplifica.
A presença das mulheres aumentou com a imposição de quotas. Para Mamadou Ba, dirigente do SOS Racismo, assessor do grupo parlamentar do BE, está na hora de perguntar por que motivo, tirando o CDS/PP que tem Hélder Amaral, nenhum partido quis ter candidatos negros nem ciganos em lugares elegíveis. Têm receio que isso afaste eleitores?
Diz a experiência de Celeste Correia, professora luso-cabo-verdiana que cumpriu diversos mandatos no Parlamento, na bancada do PS, que os partidos são fechados em relação a todos aqueles que são diferentes. São “máquinas de poder altamente competitivas”. Seja lá qual for o género, a etnia, a orientação sexual, não é fácil disputar posições. Tudo começa “com a luta pelas posições dentro dos órgãos locais dos partidos”.
As investigações de Isabel Estrada Carvalhais e Catarina Reis de Oliveira revelam que os partidos fazem “mea culpa pela ausência de diversidade étnica”, por exemplo, mas “não têm mudado muito as suas acções”. E que os jovens políticos de origem migrante admitem que as suas comunidades também não se têm empenhado na arte de fazer lobby.
Idália Serrão – a violinista eleita por Santarém nas listas do PS que teve um avô cigano mas não se sente representativa dessa população “brutalmente discriminada” – responsabiliza os partidos, que não têm sensibilidade, e as minorias, que “não participam nos fóruns públicos e acabam por não chegar à discussão dentro dos partidos políticos.” Parece-lhe que isso começa a mudar.
Os sinais não vêm só das comunidades afrodescendentes. O Conselho da Europa está a incitar a capacitação de três dezenas de ciganos, que querem ser reconhecidos pelo seu valor e não pela sua pertença étnica, enfatiza Bruno Gonçalves, dirigente da Letras Nómadas que nas últimas autárquicas foi eleito para assembleia da junta de Buarcos e São Julião, na Figueira da Foz, pelo BE.
“É gente que tem de chegar aos centros de discussão. Para chegar, tem de querer, não pode ter receios”, torna Idália Serão. “Este trabalho que está a ser feito é muito importante para atenuar os défices de participação. Nós, só quando estamos habilitados, é que damos o passo em frente.”
O assunto pode ser mal interpretado. Quando se lhe fala em diversidade étnica e cultural, Nilza de Sena, académica que foi eleita pelo círculo do Beja nas listas do PSD e tem ascendência goesa, irrita-se com a possibilidade de alguém pensar que foi escolhida pela origem étnica e não pela sua preparação técnica, pelo seu percurso.
Para discutir a representação, Nilza Sena julga que há que atender a diversos factores, como “o recurso a tecnologia de informação, o nível de formação, o acesso à informação, o interesse progressivo por temas sociais”. Não lhe parece, por exemplo, que os ciganos estejam menos representados por não haver ciganos no Parlamento. “Os deputados representam todos”, diz. “Não tenho menos consciência social relativamente a pessoas portadoras de deficiência pelo facto de não ser deficiente.”
O arquitecto Jorge Falcato, eleito como independente nas listas do BE, desloca-se em cadeira de rodas. “Sendo a única pessoa com diversidade funcional no Parlamento, achei que me devia dedicar a essa área”, esclarece. “Não vejo mal algum em ter deputados especializados numa área.” É muito procurado por pessoas com deficiência que o encaram como a sua voz no Parlamento e sente isso como “uma grande responsabilidade”. Já tinha um historial como activista. Fizera parte do colectivo (D)Eficientes Indignados.
“Em relação à deficiência, muito se discutiu na última década neste Parlamento”, nota Idália Serrão. “Provavelmente, isso não tinha a visibilidade que tem hoje ao termos um deputado que se desloca em cadeira de rodas. Ele traz as questões para a discussão na primeira pessoa.” E este exemplo mostra-lhe como a participação é uma possibilidade de entender melhor as exigências e as especificidades de grupos minoritários.
“Em princípio, a diversidade traz maior sensibilidade”, explica Isabel Estrada Carvalhais. Não é, todavia, forçoso que assim seja. Não será correcto “pressupor que alguém que não tem determinada identidade não consegue ser solidário com essa identidade”. Nem que quem “tem determinada identidade tem necessariamente de estar em representação dessa identidade”. É, em qualquer caso, uma questão de o Parlamento reflectir ou não a diversidade da população portuguesa, remata João Mineiro.