Um Alfacinha que perdeu a galeria mas está na ARCOlisboa
Uma galeria "falecida" também conta a história, ao contrário, da dinâmica de Lisboa. Expulsa pela gentrificação, mostra do melhor que se pode ver nesta edição da feira, segundo um périplo guiado pelo curador João Mourão.
“Esta é uma das melhores paredes da feira”, diz o curador independente João Mourão no stand da Galeria Pedro Alfacinha, que integra o espaço dedicado às galerias mais jovens na ARCOlisboa — a secção Opening —, a feira de arte contemporânea que junta até domingo 72 galerias na Cordoaria Nacional.
“A ideia das peças do stand tem muito a ver com o espaço anterior do Pedro [Alfacinha], que ele muito recentemente perdeu, por estas questões ligadas à habitação em Lisboa, provocadas pela subida dos preços na cidade”, explica um dos directores do Kunsthalle Lissabon, um espaço independente de arte contemporânea, que faz a pedido do PÚBLICO um périplo pela feira (ele que foi também um dos convidados das conferências organizadas pela ARCOlisboa). Uma escultura-bengala, animada por um dispositivo mecânico, sai e entra na parede, provocadora, pronta para pregar uma rasteira aos mais distraídos. Um bocado de chão, que faz parte de uma antiga instalação dos Von Calhau!, a dupla formada pelos artistas Marta Ângela e João Alves, ressuscita aqui numa escultura-tapete que recebeu o nome de Valun Chão (2018). Um cão de olhar triste habita uma fotografia de António Júlio Duarte, intitulada Canil (2018) – e “é uma das melhores fotografias da feira”, nas palavras do curador.
Pedro Alfacinha, conta o próprio, foi despejado a 31 de Janeiro do seu pequeno espaço de 50 metros quadrados na Rua de São Mamede ao Caldas, na Baixa de Lisboa, porque o prédio foi vendido. A galeria, que abriu em 2014, ainda não tem nova morada, porque "está tudo a preços exorbitantes". Por isso, o stand na ARCOlisboa é “uma espécie de fóssil da galeria falecida”.
Para João Mourão, a parede expõe aquilo que a cidade está a atravessar: “A gentrificação, a turistificação, a impossibilidade que nós, locais, temos de nos aguentar no nosso próprio espaço. Sabemos todos que a cidade muda, e estamos de acordo que a cidade mude, mas não debaixo desta pressão imobiliária, deste interesse capitalista tão grande. Nós, os lisboetas, estamos a perder o acesso ao centro da cidade.”
Antes de passarmos a outra das 12 galerias da secção Opening, João Mourão explica que procurou fazer uma visita guiada capaz de falar do momento político actual, de problemas como a gentrificação, mas também da polémica à volta do futuro Museu da Descoberta, que a Câmara Municipal de Lisboa está a pensar criar, ou que conseguisse mostrar como uma feira é uma oportunidade para conhecer novos artistas. Na Galeria Francisco Fino, destaca a obra de Mariana Silva, um vídeo de dois minutos realizado em 2013 por esta jovem artista: “A peça faz-nos reflectir por que é que estamos a discutir como país os ‘Descobrimentos’. Por que é que ainda temos esta palavra e como é que ela pode ser usada? O vídeo alerta para o que estamos a discutir como sociedade. Fala-nos do uso das correntes e dos anéis, que são vistos quase como adereços, mas que introduzem a questão da escravatura. Temos esta questão de descolonizar a linguagem, mas temos de descolonizar os objectos também.”
Aliás, diz ao PÚBLICO, a comunidade artística está a ultimar uma carta para tomar posição, tal como fizeram os historiadores e outros cientistas sociais, contra a designação e a missão do Museu da Descoberta. Durante este fim-de-semana, esclarece, continua a recolha de assinaturas.
Outras das novidades que destaca na edição deste ano da ARCOlisboa é o facto de existir, pela primeira vez, a secção Projectos, em que as galerias só podem apresentar o trabalho de um artista. Nesta secção que ocupa o segundo andar do Torreão Poente, e entre dez galerias, escolhe o trabalho da espanhola Esther Ferrer, na Galeria Àngels Barcelona, uma instalação de parede e seis desenhos preparatórios. “Estes projectos especiais dão-nos a possibilidade de entrarmos mais à séria no trabalho de um artista. E, apesar de Espanha ser aqui ao lado, os artistas espanhóis são pouco mostrados. [Esther Ferrer] é uma das mais importantes artistas espanholas, que nunca foi muito vista. Está a ser redescoberta pelas instituições e é uma referência para as jovens gerações”, defende Mourão, que tem sido várias vezes convidado para fazer curadoria de projectos especiais em feiras internacionais, como a Artissima, em Itália.
Já na nave principal da Cordoaria, onde estão as 50 galerias do programa geral, João Mourão aponta ainda o trabalho de Carmela Gross, um nome histórico do Brasil trazido pela galeria paulista Vermelho. São alguns desenhos da série Bando (2016), feitos em aguarela líquida e grafite, que mostram animais a vomitar, “uma boa metáfora dos tempos em que estamos”.
Na Galeria Filomena Soares, João Mourão escolhe uma grande pintura em tons rosa de Bruno Pacheco, Sem Título (2017). “O Bruno representa sempre grupos num momento em que não percebemos bem o que estão a fazer. Ou estão a tomar uma posição conjunta ou a estão a fazer algo que não é imediatamente identificável.” Aqui, parecem estar a lavar, à beira de um tanque. “Para mim, as pinturas dele mostram a possibilidade de uma construção em conjunto da sociedade. Precisamos uns dos outros para fazer qualquer coisa de relevante.”
A última paragem volta a ser numa galeria estrangeira, mas desta vez também instalada em Lisboa, a Monitor, que tem sede em Roma. Mourão aponta o trabalho em terracota de Sérgio Carronha, um artista mais jovem que vive no Alentejo, em Montemor-o-Novo, onde faz a recolha de todos os materiais com que trabalha, do barro das esculturas à cortiça sobre a qual pinta. “Fala-nos de um posicionamento no mundo mais ecológico. Mas a galeria de Paola Capata também nos fala da integração de jovens artistas no mercado, porque ela faz muitas visitas aos estúdios e está a trabalhar com todos estes miúdos. Ajuda a expandir um bocadinho...”.
Expandir a cidade
Mas nem só da ARCOlisboa se faz este circuito para ver gente mais nova, e o curador diz que vale muito a pena completar este périplo com as exposições que algumas galerias têm nos seus espaços fora da ARCO. Além da Monitor, que mostra o trabalho de Mariana Caló & Francisco Queimadela, há também que visitar a Madragoa para ver o trabalho de Luís Lázaro Matos ou a Vera Cortês, que expõe André Romão.
Pedro Alfacinha, para já, foi obrigado a interromper a programação. “Procurei no centro [de Lisboa] em todo o lado, mas neste momento já não quero o centro. Passei de uma fase em que achava isto tudo negro para pensar que isto é uma possibilidade de expandir a cidade a sério, porque temos todos uma mentalidade de que Lisboa é pequena, mas Cascais é Lisboa, Barreiro é Lisboa, Loures é Lisboa. Na realidade, esta é uma cidade grande.” A interrupção vai servir para decidir o que quer fazer com a galeria. “Neste momento não tenho pressa de arranjar um sítio, porque já estou a trabalhar com os Von Calhau! e com o António [Júlio Duarte] a pensar numa escala que eu nunca podia pagar numa base regular. Eu digo que não estou à procura, mas estou disponível para encontrar.”