A cadeira vazia de Salvato Trigo
O reitor teve uma condenação, uma pena de prisão suspensa e uma aula de ética. Se fosse uma palestra, o título seria simples: “Uma fundação não pode ser confundida com o seu fundador."
A cadeira ficou vazia. O reitor Salvato Trigo não assistiu à leitura da sua sentença e percebe-se bem porquê. Não é fácil ouvir um juiz dizer “condenado”. No caso, com uma dificuldade extra: ouvir também uma longa aula sobre ética. Sobre a sua falta de ética.
Depois de meses a criticar a decisão do juiz do Tribunal de Instância Local Criminal do Porto de julgar Salvato Trigo à porta fechada, é preciso dizer agora — ouvidas as duas horas de leitura da sentença —, que não terá sido por falta de coragem. Ou, se foi, essa fraqueza surgiu fugazmente e desapareceu.
Em 44 anos de democracia, ninguém se lembra de um crime de “colarinho branco” — o caso do reitor — julgado com “exclusão de publicidade”, juridiquês para “ninguém pode ver”. Praticamente, só nos crimes sexuais, casos que envolvem menores e tráfico humano é que a sociedade não vê a justiça a ser feita. Não é opacidade, mas protecção de cidadãos com uma vulnerabilidade particular. Nos crimes de “colarinho branco” a regra é a transparência. Porquê então aplicar uma excepção tão excepcional a Salvato Trigo?
Alguns leitores foram enviando propostas por email. Embora diferentes, todas desembocavam no mesmo cais: o juiz deixara-se intimidar pela “notoriedade”, “prestígio” e “reconhecimento” do arguido. O fundador da Universidade Fernando Pessoa, distinguido com medalhas, títulos e prémios ao longo de décadas, eleito em 2016 para a Academia das Ciências de Lisboa, o clube da elite intelectual portuguesa, e um “notável do Norte”, pedira para ser julgado sem público e sem jornalistas e o juiz não se atrevera a contrariá-lo. Nem ele, nem o Ministério Público.
A sentença lida nesta sexta-feira não apaga o erro dessa decisão. Mas revela que o juiz José Guilhermino Freitas acabou por não se deslumbrar com o estatuto do reitor. Não sei em que momento isso aconteceu, mas aconteceu.
Meticuloso, o juiz estudou a literatura jurídica sobre as fundações (citou Mota Pinto, Rui Vilar, Cristina Casal Baptista, entre muitos outros) e explicou: as fundações “não podem ser Estados paralelos”; têm de existir para “benefício da sociedade, não para benefício do próprio fundador”; “uma fundação não pode ser confundida com o seu fundador”, “não pode ser gerida de acordo com a vontade do seu fundador”, mesmo que ele trabalhe nela; as receitas devem reforçar o “património da fundação e não ser usadas para beneficiar a família”; um fundador tem de “evitar conflitos de interesses”; tem de “actuar com autonomia e independência”; “as fundações são autónomas dos fundadores”; não se pode criar uma fundação, obtendo benefícios fiscais, “e depois querer tratar a fundação como se de uma normal sociedade se tratasse”. O juiz não foi sintético.
A aula de ética incluiu a boa gestão: “A obrigação dos gestores é fazerem uma gestão responsável e racional” e “nenhum gestor quer perder dinheiro”. Se é isso que nos dizem as “regras da lógica” e a “experiência comum”, como explicar os cinco negócios que Salvato Trigo fechou causando um prejuízo de mais de dois milhões de euros à sua própria fundação? A pergunta é do juiz, que logo deu a resposta: as pessoas são livres de escolherem os seus modelos de negócio, mas os negócios de Salvato Trigo não eram nem “racionais”, nem “lógicos”. E, já agora, a literatura também já mostrou que são as pessoas “muito criativas e muito inteligentes” que fazem este tipo de crimes.
E incluiu a notoriedade (tinha de ser): “Pessoas muito empreendedoras e com grande prestígio também cometem crimes”, disse o juiz. Na criminalidade empresarial, “aproveitar as oportunidades exige criatividade e inteligência”, porque o padrão é “misturar coisas legais com coisas ilegais” e isso não é para qualquer um.
Para não ouvir isto, Salvato Trigo deixou a cadeira vazia. Também porque teria perguntas incómodas à saída. Por exemplo esta: não se sente aliviado por ter sido acusado de um crime tão pequeno (infidelidade patrimonial), cuja pena máxima é de três anos, o que significa que nunca iria ter uma pena de prisão efectiva? Criminosos condenados por desvios de valores bem menores recebem penas bem mais pesadas.
No fim, fico a pensar se coragem é a palavra certa. Aquilo que o juiz teve para saber dizer o que disse e o que o reitor não teve para ouvir. Liguei a um amigo: “A palavra é sabedoria.” É preciso sabedoria para corrigir e assumir as asneiras. E foi isso que aconteceu no tribunal da Rua do Bolhão.