Vigée le Brun: é francesa e sedutora a segunda artista nas paredes do Museu de Arte Antiga
Retrato que a pintora francesa fez de uma das suas maiores amigas chega ao MNAA como obra convidada e, depois, passará à exposição permanente. Pertence à colecção do Novo Banco e ficará em depósito. Esta sexta-feira é Dia Internacional dos Museus.
Uma nasceu em Sevilha mas trabalhou toda a vida na região das Caldas da Rainha, tornando-se numa das grandes referências do barroco português, celebrizada sobretudo pelas suas naturezas-mortas meticulosas, que continuam a encantar os coleccionadores. A outra é francesa, viveu num período politicamente muito atribulado e notabilizou-se como retratista da aristocracia europeia nos séculos XVIII e XIX. Em comum têm as origens relativamente modestas, os pais pintores e o facto de serem mulheres cultas, emancipadas, habituadas a viver do seu trabalho, num tempo em que a independência e a força de carácter femininas não eram coisas que fossem vistas com bons olhos. Em comum, e a partir de esta sexta-feira, têm também o facto de serem as únicas mulheres artistas representadas na exposição permanente do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa.
A primeira chamava-se Josefa de Óbidos (1630-1684) e é ainda pouco conhecida fora do país (apesar de haver já uma pintura sua no Louvre), a segunda é Élisabeth Louise Vigée Le Brun (1755-1842), pintora da rainha Maria Antonieta, e está hoje representada em alguns dos maiores museus do mundo.
Retrato de Anne Catherine Le Preudhomme, Condessa de Verdun (1782) chega ao MNAA saído directamente das paredes de uma das salas da administração do Novo Banco, no edifício sede da Avenida da Liberdade. O protocolo entre o banco e a Direcção-Geral do Património Cultural permitirá ao museu ficar com a obra em depósito e com ela mostrar o trabalho de uma artista que teve na sua época uma imensa popularidade, mas que só muito recentemente entrou no circuito de retrospectivas dos grandes espaços culturais (Vigée Le Brun: Uma Mulher Artista na França Revolucionária foi inaugurada em 2015 no Grand Palais, em Paris, e seguiu depois para o Metropolitan Museum de Nova Iorque e para a National Gallery do Canadá, em Otava).
“Vigée Le Brun é uma excelente pintora que só agora se está a redescobrir”, diz o conservador de pintura José Alberto Seabra Carvalho, director-adjunto de Arte Antiga. Até aqui, as entradas que se referiam a ela nos dicionários de História de Arte – uma história por tradição e durante décadas escrita por homens – eram muito reduzidas, apesar de ter tido uma carreira longuíssima (viveu até aos 87) e de ter pintado mais de 600 retratos e paisagens, explica. “Isto não se deve só ao facto de ser mulher, tem motivações políticas. Os pintores que estiveram muito próximos da casa real acabaram por ser muito maltratados pela república.” E Vigée Le Brun esteve. Pintou cerca de 30 retratos de Maria Antonieta, a arquiduquesa que se tornou talvez na mais odiada das rainhas francesas, e poFr causa disso, e da Revolução Francesa, acabou por ser forçada a 12 anos de exílio que seriam de intenso trabalho nas cortes de Nápoles, Rússia, Áustria e Prússia.
“Como a Angelika Kauffmann [pintora suíça, 1741-1807], a Vigée Le Brun não é uma mulher qualquer. É uma artista que consegue afirmar-se contra todas as probabilidades, numa França em que as mulheres ainda são elementos estranhos na academia e em que têm ainda vedadas várias áreas da formação [não podiam, por exemplo, assistir a aulas com modelos masculinos nus].”
Artista e resistente
Foi o pai, artista sem grande sucesso, que desde cedo deu conta do seu talento e que começou por ensinar Vigée Le Brun a pintar. Depois da sua morte, quando ela tinha apenas 12 anos, coube à mãe, cabeleireira de reconhecidos méritos, contribuir para o seu percurso artístico, levando-a a visitar colecções públicas e privadas ou fazendo-lhe companhia sempre que os seus clientes eram homens. Aos 14 já ganhava o suficiente para se sustentar como retratista, embora o padrasto, que odiava, lhe ficasse com o dinheiro.
Aprende sobretudo sozinha, apesar de ter recebido conselhos de artistas consagrados como Joseph Vernet. As visitas ao Louvre, para ver os grandes mestres da pintura, e mais tarde à Flandres, já depois de casada com Jean-Baptiste Pierre Le Brun, um negociante de arte que se tornou seu agente e também beneficiou largamente do seus sucesso, foram determinantes.
Os seus “professores” são pintores como Rubens, Rafael, Van Dyck. “Ela vê tudo isto mas acaba por criar um estilo muito próprio”, diz Seabra Carvalho, apontando para o retrato que está agora no MNAA e que mostra a condessa de Verdum – Vigée Le Brun escreve nas suas memórias que se trata da sua primeira e melhor amiga – num traje campestre, muito informal, com um véu transparente e delicado sobre os ombros: “Há nesta pintura uma certa estaticidade vinda do retrato de aparato, mas ela está muito humanizada. Vigée Le Brun consegue nos seus retratos uma aproximação sensorial ao modelo que lhes dá, depois, uma graciosidade muito particular, um sentimento de intimidade. Há neles um lado feminino muito forte, mesmo quando o sujeito é masculino.”
A sua clientela, lembra o historiador de arte, é a que perde a revolução (Maria Antonieta é executada na guilhotina, tal como o marido, Luís XVI), mas nem isso a impede de continuar a trabalhar. Quando consegue regressar a França, em 1804, já com Napoleão Bonaparte no poder, vem mostrar o que o resto da Europa lhe ensinou. E abrir os salões da sua casa a escritores e intelectuais como Balzac e Chateaubriand.
Sobrevivera a toda a espécie de rumores – dizia-se no tempo de Maria Antonieta que dormira com os seus clientes homens ou que entrara na Academia Real por influência dos reis e não por mérito; mais tarde, já em Roma, corria que se recusara a pintar o retrato do Papa porque o Vaticano queria obrigá-la a usar um véu – e de preconceitos com a sua arte intacta. Passaram mais de 230 anos sobre o retrato que o Museu de Arte Antiga tem agora na parede, mas o seu lado espontâneo, sedutor, está todo lá.